segunda-feira, dezembro 26, 2016

Rabiscos


Tinham-lhe dito que seguisse a primeira estrela. Assim o fez. Não que fosse muito de obedecer. Lembrava-se bem dos castigos que a professora Lurdes lhe aplicava quando, menina pequena de bata branca, empinava o nariz e fingia não a ouvir mandá-la parar de ler o livro que trazia de casa e escondia por baixo do caderno aborrecido de aritmética. Era ler à socapa e desenhar em qualquer pedacinho de folha branca. Era nos cabeçalho dos textos de História, no verso dos desenhos aguarelados, nos quadrados do rodapé das equações... Meninas de cabelos compridos e pestanas longas, flores exóticas, paisagens com mar e coqueiros. Um dia, até se aventurou a rabiscar n'Os Lusíadas! 
Sacrilégio! E logo uma mulher nua, de "lácteas tetas"! 
Pois se era assim que o Canto II dizia, como deveria tê-la feito? Custou-lhe os intervalos de uma semana, a proeza, e uma folha arrancada, solenemente, na frente da turma horrorizada. O diabo! Decerto era o diabo que a tentava a retratar a impudica nudez das ninfas, habitantes de um canto que lhes tinha sido interditado do estudo.
Seguiu, então, a estrela primeira e entrou-lhe a memória alma adentro, avivando os desenhos arquivados, onde cada traço vinha completando o esquiço que continuava ali, naquele céu azul petróleo a encimar os recortes dos montes, a sua vida ainda inacabada. 
(enquanto recordava, pegara num recibo de gasolina e rabiscara, maquinalmente, uma praia banhada por um mar revolto)

sábado, dezembro 24, 2016

Um Natal muito feliz!


Seja quente, com mantas e com abraços
Seja doce, com bolos e com beijos
Seja alegre, com gargalhadas e sorrisos
Seja feliz!

quarta-feira, dezembro 21, 2016

Cumplicidade

(Marc Chagall)

Ouviu, por acaso, as palavras da mulher da mesa ao lado, num tom de voz um pouco mais alto do que seria de esperar para uma confidência em pleno salão de chá: "-Existo para além de mim." 
Suspendeu a torrada que segurava na mão direita e parou de mexer o chá de rooibos, surpreendida. Talvez se ouvisse mais um pouco, pensou, entendesse o que significavam.
Desviou discretamente o olhar para observar os ocupantes da mesa. Uma mulher e um homem nos cinquenta olhavam-se com ternura cúmplice, as mãos aflorando-se ao de leve. Entendeu.



sexta-feira, dezembro 16, 2016

Da urgência das palavras

(LASZLÓ LAKNER)

Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício

Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição

Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsinore

E há palavras nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmos só amor só solidão desfeita

Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar.

in «Uma Grande Razão», de Mário Cesariny





Quando calas as palavras que te sobem, impulsivas, à boca
Quando as sufocas, julgando-as, manietando-as 
ali mesmo, aprisionadas onde foram pensadas 
Quando acabas por matá-las, porque incómodas
enterrando-as bem fundo, uma e outra vez
És tu que imerges na escuridão de Elsinore
no cortejo desolado e infausto de Hamlet.

Maria Eu

domingo, dezembro 11, 2016

Casa meio vazia, meio cheia

(Andrew Wyeth)

Subiu as escadas duas a duas. Havia de subi-las três a três, como quando era menina, mas à primeira experiência descobrira que de menina só lhe sobrava a memória.
O terraço continuava soalheiro e as floreiras mantinham luxuriantes sardinheiras, enquadradas por grades pintadas de um verde que em tempos fora escuro. A fechadura da porta da cozinha cedeu ao rodar da chave com um estalido grave, acompanhado pela agudez do chiar das dobradiças. Esbofeteou-a o odor acre. Porque doíam, os cheiros que agora se instalavam onde outrora havia o aroma  dos biscoitos de laranja e canela, dos assados de Domingo, da roupa acabada de passar a ferro. A cozinha, sempre cheia de taças com fruta, cambos de cebolas e alhos pendurados em ganchos nas paredes, ao lado dos chouriços curados em longos fumeiros de Inverno, esvaziara-se. Os ganchos vazios projectavam uma sombra ameaçadora nos azulejos brilhantes à luz branca da florescente. O longo corredor que leva aos quartos e à sala grande (Ah! A sala grande dos Natais em família! Quantos risos de meninos e sons de conversas felizes guarda!) tem que ser percorrido apalpando as paredes. Fundiram-se as lâmpadas dos apliques. Entra no seu quarto. Continua tudo igual. Nas molduras que habitam a cómoda, os jovens mantêm-se jovens, os meninos ainda são meninos e os que morreram continuam vivos. Abre, a custo, as contras das janelas, empenadas pela falta de uso. Libertas, as janelas filtram o sol da tarde que ainda vai curta. Roda-lhes o fecho e deixa entrar a vida toda: pássaros chilreantes, grilos e ralos cantores, a mãe a chamá-la para o lanche de leite com cevada e pão com geleia, e ali, bem ao alcance das suas mãos, a nespereira. Sim, a mesma que sabem dar frutos amarelos e suculentos, em cujo tronco se recosta uma velha e cansada escada de madeira.


terça-feira, dezembro 06, 2016

Sonata para um homem forte


Chegou antes da hora. Pela porta entreaberta via-o. Segurava-se, em equilíbrio periclitante, à mesa baixa da sala de estar onde repousavam as molduras com fotografias de filhos, netos e bisnetos, lado a lado com a jarra de camélias brancas. Reparou que se baixava para calçar os sapatos enquanto resmungava de si para si, quem sabe maldizendo o reumatismo que agora lhe tolhe pernas e mãos, dificultando-lhe os mais comezinhos gestos rotineiros. Ainda se sentiu tentada a entrar e oferecer ajuda, mas veio-lhe à memória o homem forte e sobranceiro de outrora, aquele que franzia o sobrolho à mínima tentativa de lhe afastarem empenos do caminho, e retirou-se, pé ante pé.


sábado, dezembro 03, 2016

Do alheamento da realidade





  • (Daniel Jean-Baptiste)



  • "Dois jovens peixes vão nadando, e a certa altura encontram um peixe já velho que vai em sentido oposto, lhes faz um gesto de saudação e diz: "Vivam, rapazes! Que tal está a água?". Os dois peixes jovens nadam mais um pouco e depois um vira-se para o outro e diz: "Que raio de coisa é a água?"."

    Do manifesto A Utilidade do Inútil, de Nuccio Ordine.


    Moves-te a cada dia num alheamento da realidade em que imerges. Talvez isso signifique que a aceitas tal como te é servida, sem te aperceberes que não contas para a elaboração do cardápio.



    sexta-feira, novembro 25, 2016

    O estranho caso de Tagik, o berbere contador de histórias - A rainha Aliyyah


    (Tamara Natalie Madden)



    Havia tanto tempo que Jabalamar, o escudeiro do rei, se não via longe do seu amo que dera em perseguir a rainha. Convencera-se que aquele diplomata não passava de um charlatão que, como outros antes dele, ficara ofuscado pela beleza negra e radiosa de Aliyyah, encontrando um subterfúgio para afastar o rei. Enviara, por isso, um pássaro azul de entre aqueles que costumavam esvoaçar pelo palácio e vinham comer à sua mão, com o intuito de o encontrar, guiando-o de volta à ilha.

    Enquanto isso, a rainha Aliyyah ouvia as estórias do diplomata, de olhar desperto e coração inquieto pelo seu rei que tanto se demorava. 

    - E como haveis ficado tão sabedor das coisas desses mundos distantes, Senhor?

    Com um sorriso misterioso, qual prestidigitador, o estrangeiro retirou da túnica um livro com capa de couro velho e título gravado a ouro

    - Eis um dos mais belos registos dessas coisas, Alteza!

    - “O homem das quatro vidas”, leu a rainha.

    E, como um grão de areia do deserto do Sahara soprado pela mais forte das tempestades, Aliyyah viu-se transportada para uma biblioteca onde as estantes ligavam o chão a um tecto tão alto que tocava o céu





    O estranho caso de Tagik, o berbere contador de histórias

    quinta-feira, novembro 24, 2016

    Lenda

    O amor é o amor
    O amor é o amor - e depois?!
    Vamos ficar os dois
    a imaginar, a imaginar?..

    O meu peito contra o teu peito,
    cortando o mar, cortando o ar.
    Num leito
    há todo o espaço para amar!

    Na nossa carne estamos
    sem destino, sem medo, sem pudor,
    e trocamos - somos um? somos dois? -
    espírito e calor!
    O amor é o amor - e depois?!

    Alexandre O´Neill




    (Marc Chagall)


    Chamaram-lhe Celeste por ter vindo ao mundo sob um céu estrelado de Outono. Ninguém soubera como fora possível sobreviverem, mãe e filha, naquele descampado, desamparadas de conforto e de calor humano.
    Cresceu arredia, sempre de sapatos na mão, calcorreando os campos, trepando às árvores, enfeitando-se de grinaldas de malmequeres amarelos.
    Um dia, chegou à aldeia um homem-estátua. Olhar brilhante, poucas falas, como convém a um imitador de estátuas que se preze, e uma mala pequena que dizia ser portadora de todos os seus bens. Tinha a particularidade de caminhar com os pés nus. Os sapatos, reluzentes de tão bem engraxados, atava-os pelos cordões à pega da mala.
    O homem-estátua e Celeste encontraram-se junto ao rio, quando ele mergulhava os pés, cansados da posição estática que mantivera horas a fio, e ela colhia os malmequeres mais bonitos. Anoitecia, era Outono, e o céu enchia-se de estrelas amarelas como as flores que coloriam os cabelos de Celeste, brilhantes como o olhar do homem-estátua.
    Diz quem por ali passava que deram as mãos e voaram.



    terça-feira, novembro 22, 2016

    Estio


    O estio que finalmente chegara não impedia a nespereira de se enfeitar de flores. Há muito que a árvore crescia, generosa em frutos amarelos agridoces, a ombrear-lhe a janela do quarto. Nela moravam pardais, cantavam melros e arrulhava o casal de rolas que lhe embalava as sestas preguiçosas das férias de Verão. Encostada ao tronco robusto, já com cicatrizes de podas e uma ou outra riscadas pela Maria Inês e pelo José, estas em forma de coração trespassado por uma seta ou da palavra "amo-te" ladeada pelos nomes de ambos, encontrava-se a escada de madeira. Pobre dela, abandonada ao frio e ao calor, agora sem outro préstimo que o de lhe recordar o tempo em que o pai a subia para colher as nêspera mais bonitas para a sua menina.


    sábado, novembro 19, 2016

    Inquieto coração

    (imagem daqui)


    Era de noite e não chovia. Não havia nuvens a perturbar o brilho da lua nem sequer uma brisa a despentear as árvores. Tudo estava quieto e belo. Porque seria, então, que a Clara se inquietava o coração?


    domingo, novembro 13, 2016

    Ervilhas


    Andrea Kowch

    - Ontem vi-o!
    As duas mulheres estavam sentadas na cozinha, cada uma debruçada sobre o seu alguidar de barro, as mãos nervosas a esventrar vagens de onde caíam pérolas verdes, engrossando o contraste no fundo laranja.
    - Viu quem, Joana? Credo! O seu falecido?
    O rosto de Joana abriu-se num sorriso rasgado.
    - Abrenúncio, menina! Qual falecido? Jasus, minha Nossa Senhora de Fátima, o que lhe passou na cabeça!
    Após uma leve hesitação, sem nunca parar a tarefa de fazer crescer o monte de ervilhas, acrescentou:
    - Eu vi foi o outro, menina!
    - Ai! Oh, mulher, explique-se que eu já não percebo nada!
    Baixando a voz, os olhos a brilhar, a revelação:
    - O meu amor tardio. Sim, menina, que eu não morri nem fui enterrada com o Joaquim!
    E, sem parecer ralar-se com o ar estupefacto da outra, alheou-se do verde das vagens, gordas de prenhas, perdida na lembrança do ontem.


    quarta-feira, novembro 02, 2016

    Refrega

    (Carolee Schneemann)

    Veio a saudade e mordeu-a. Mastim bicéfalo de presas aguçadas, abriu-lhe o peito, o ventre. Tentou conter o sangue e as vísceras com as mãos, apertando os rasgos profundos, enquanto pontapeava violentamente o monstro. Rangia os dentes na dor furiosa da luta, arquejando e cuspindo palavras incoerentes. Veio-lhe à memória o ritual voodoo de um filme antigo, marioneta empurrada a vontade alheia, cúmplice de um modelo seu distante. Ficou no chão, na refrega da luta, ferida, despida de defesas, na inércia dolorosa que antecede a rendição.

    domingo, outubro 30, 2016

    Constelação



    Maria Antónia costumava olhar-se ao espelho regularmente para verificar se a constelação de sinais estrelados na sua pele branca se completava. Havia um trapézio por acabar na coxa direita e, sem saber bem porquê, teimava em julgar que um dia seria assinalada com aqueles que faltavam.
    Até que encontrou José e se amaram em horas longas de paixão. Foi num desses dias, em que a sua coxa direita repousava, desnuda, junto à coxa esquerda dele, que viu, claramente vistos, os sinais que lhe faltavam bem ali, na pele branca daquele homem, completando o trapézio e luzindo uma cauda. A pele dela e a dele, um só céu.


    segunda-feira, outubro 24, 2016

    Dormir, talvez nem sequer sonhar

    (Francine Van Hove)

    Não venhas sentar-te à minha frente, nem a meu lado;
            Não venhas falar, nem sorrir.
    Estou cansado de tudo, estou cansado
            E quero só dormir.
    Dormir até acordado, sonhando
            Ou até sem sonhar,
    Mas envolto num vago abandono brando
            A não ter que pensar.
    Nunca soube querer, nunca soube sentir, até
            Pensar não foi certo em mim.
    Deitei fora entre ortigas o que era a minha fé,
            Escrevi numa página em branco, «Fim».
    As princesas incógnitas ficaram desconhecidas,
            Os tronos prometidos não tiveram carpinteiro
    Acumulei em mim um milhão difuso de vidas,
            Mas nunca encontrei parceiro.
    Por isso, se vieres, não te sentes a meu lado, nem fales,
            Só quero dormir, uma morte que seja
    Uma coisa que me não rale nem com que tu te rales —
            Que ninguém deseja nem não deseja.
    Pus o meu Deus no prego. Embrulhei em papel pardo
            As esperanças e ambições que tive,
    E hoje sou apenas um suicídio tardo,
            Um desejo de dormir que ainda vive.
    Mas dormir a valer, sem dignificação nenhuma,
            Como um barco abandonado,
    Que naufraga sozinho entre as trevas e a bruma
            Sem se lhe saber o passado.
    E o comandante do navio que segue deveras
            Entrevê na distância do mar
    O fim do último representante das galeras,
            Que não sabia nadar.

    Fernando Pessoa





    Inadvertidamente, entra-lhe o cansaço porta adentro. Não aquele cansaço morno depois das tarefas diárias, mas uma dormência que vem de dentro para fora, um desejo enorme de fechar os olhos às minudências da vida, às horas passadas numa voragem que esgota o corpo e a alma. Apetece-lhe não ser mais ombro e ser ela a encostar a cabeça e repousar.

    terça-feira, outubro 18, 2016

    Dorme, meu menino

    O Somno de João

    O João dorme... (Ó Maria,
    Dize áquella cotovia
    Que falle mais devagar:
    Não vá o João, acordar...)

    Tem só um palmo de altura
    E nem meio de largura:
    Para o amigo orangotango
    O João seria... um morango!
    Podia engulil-o um leão
    Quando nasce! As pombas são
    Um poucochinho maiores...
    Mas os astros são menores!

    O João dorme... Que regalo!
    Deixal-o dormir, deixal-o!
    Callae-vos, agoas do moinho!
    Ó mar! falla mais baixinho...
    E tu, Mãe! e tu, Maria!
    Pede áquella cotovia
    Que falle mais devagar:
    Não vá o João, acordar...

    O João dorme... Innocente!
    Dorme, dorme eternamente,
    Teu calmo somno profundo!
    Não acordes para o mundo,
    Póde affogar-te a maré:
    Tu mal sabes o que isto é...

    Ó Mae! canta-lhe a canção,
    Os versos do teu irmão:
    «Na Vida que a Dor povoa,
    Ha só uma coisa boa,
    Que é dormir, dormir, dormir...
    Tudo vae sem se sentir.»

    Deixa-o dormir, até ser
    Um velhinho... até morrer!

    E tu vel-o-ás crescendo
    A teu lado (estou-o vendo
    João! Que rapaz tão lindo!)
    Mas sempre, sempre dormindo...

    Depois, um dia virá
    Que (dormindo) passará
    Do berço, onde agora dorme,
    Para outro, grande, enorme:
    E as pombas que eram maiores
    Que João... ficarão menores!

    Mas para isso, ó Maria!
    Dize áquella cotovia
    Que falle mais devagar:
    Não vá o João, acordar...

    E os annos irão passando.

    Depois, já velhinho, quando
    (Serás velhinha tambem)
    Perder a cor que, hoje, tem,
    Perder as cores vermelhas
    E for cheiinho de engelhas:
    Morrerá sem o sentir,
    Isto é deixa de dormir...
    Acorda e regressa ao seio
    De Deus, que é d'onde elle veio...

    Mas para isso, ó Maria!
    Pede áquella cotovia
    Que falle mais davagar:

    Não vá o João, acordar...

    António Nobre, Só



    (Kate Summers)

    Acordou, o João. Viu-se só, pernas trémulas, olhar perdido na casa grande e fria. Percorre o corredor manquejando, mão direita a repousar na anca dorida. Onde, a mãe? Onde a canção de embalar? Onde a infância, a juventude, a idade adulta de mãos firmes? O quarto é já ali, na porta entreaberta. Há uma cama em vez de um berço. Deita-se devagar. Quem sabe, dorme! Quem sabe, sonha com o canto da cotovia!


    quinta-feira, outubro 06, 2016

    Escrevi-te

    (Ana Barros)

    Escrevi-te! Estranhou a mensagem no ecrã do telemóvel. Escrevi-te!? Como assim? Foi clicando nas aplicações em busca das palavras e nada! Respondeu com uma pergunta: Devias estar sem rede. Não recebi nada! Em troca, o ecrã negro. Nem um ok, nem um smile. Os alertas do Facebook e do Instagram fizeram-na esquecer a estranheza.
    Abriu a porta de casa, fechando-a atrás de si de imediato. Estava calor e queria livrar-se da roupa, tomar um duche, pôr uma t-shirt, e esticar-se no sofá. Olhou instintivamente para o enorme espelho que ampliava a sala, ao accionar o interruptor. Escrito a marcador preto, sobressaindo à luz branca dos leds, um pequeníssimo texto: Há pássaros que voam janelas adentro e trazem consigo rios, montanhas, mares e areais doirados. (Um dia prometi que te escrevia. Hoje foi o dia.)


    quinta-feira, setembro 29, 2016

    Brincadeira


    A mulher lia o jornal, em pose descontraída, folheando-o vagarosamente na mesa da esplanada, onde uma chávena de café vazia, com uma marca vermelha de batôn na borda, repousava virada para ela. A menina surgiu ao lado dela, passitos pequeninos mas rápidos. Ria-se e batia palmas. Abriu-se um sorriso na cara da leitora do jornal, fechado e arrumado de seguida. Começou uma brincadeira entre as duas. Uma conversa entrecortada por (sor)risos, mãos a bater umas nas outras, pés a imitar sapateados. De repente, a menina olhou fixamente a parceira de folia e disparou:
    - “Tu tens muitos anos?”
    A mulher, sempre a sorrir, respondeu:
    - “Tenho, pois! Mesmo muitos!”
    - “Ah! Tens muitos mas sabes brincar mesmo bem!”, disse a menina.

    E ali ficaram, brincando.

    sábado, setembro 24, 2016

    Primavera

    (Mart Adam)

    Havia uma flor nos lábios dela quando dizia Primavera. E de onde houvera um deserto quando dissera Verão, gelo ao pronunciar Inverno ou ramos nus soletrando Ou-to-no, brotava agora uma corola rubra.


    sábado, setembro 17, 2016

    Invisível

    (Norman Rockwell)

    Quando se tornou invisível, decidiu nunca mais permitir que mandassem em si. Foi então que, pela primeira vez desde há muito tempo, viu a sua imagem reflectida nos olhos de outra pessoa.


    sexta-feira, setembro 16, 2016

    Combustão



    (
    Alberto Burri )

    Combustion


              If a human body has two-hundred-and-six bones
    and thirty trillion cells, and each cell
    has one hundred trillion atoms, if the spine
    has thirty-three vertebrae—
    if each atom
    has a shadow—then the lilacs across the yard
    are nebulae beginning to star.
    If the fruit flies that settle on the orange
    on the table rise
    like the photons
    from a bomb fire miles away,
    my thoughts at the moment of explosion
    are nails suspended
    in a jar of honey.
                               
                                        I peel the orange
    for you, spread the honey on your toast.
    When our skin touches
    our atoms touch, their shadows
    merging into a shadow galaxy.
    And if echoes are shadows
    of sounds, if each hexagonal cell in the body
    is a dark pool of jelly,
    if within each cell
    drones another cell—
                       The moment the bomb explodes
    the man’s spine bends like its shadow
    across the road.
    The moment he loses his hearing
    I think you are calling me
    from across the house
    because my ears start to ring.
    From the kitchen window
                   I see the lilacs crackling like static
    as if erasing, teleporting,
    thousands of bees rising from the blossoms:
    tiny flames in the sun.
    I lick the knife
    and the honey pierces my tongue:
                          a nail made of light.
    My body is wrapped in honey. When I step outside
                              I become fire.


    Sara Eliza Johnson





    Combustão

          Se o corpo humano tem duzentos e seis ossos
    e trinta triliões de células e cada célula
    tem cem triliões de átomos, se a coluna vertebral
    tem trinta e três vértebras—
    se cada átomo
    tem uma sombra—então os lilases do outro lado do pátio
    são nebulosas começando a fulgir.
    Se as moscas da fruta que poisam na laranja
    pousada na mesa se erguem
    como fotões
    do incêndio
    de um bombardeamento a milhas de distância,
    Os meus pensamentos no momento da explosão
    são unhas suspensas 
    num frasco de mel.
                       Eu descasco a laranja
    para ti, barro o mel na tua torrada.
    Quando a nossa pele se toca
    os nossos átomos se tocam, as suas sombras
    confundindo-se numa galáxia de sombra.
    E se os ecos são sombras
    de sons, se cada célula hexagonal do corpo
    é um poço escuro de geleia,
    se dentro de cada célula
    pulsa uma outra célula
                   No momento em que a bomba explode
    a coluna do homem curva-se como a sua sombra
    sobre a estrada.
    No momento em que ele ensurdece
    Eu julgo que tu me chamas
    do outro lado da casa
    porque os meus ouvidos começam a vibrar.
    Da janela da cozinha
                 eu vejo os lilases faiscando, estáticos
    como que apagando, transmutando,
    milhares de abelhas a erguerem-se das flores:
    minúsculas chamas na luz do sol.
    Eu lambo a faca
    e o mel terebra a minha língua
                  uma unha feita de luz.
    O meu corpo está coberto de mel. Quando saio para a luz
                  incendeio-me.

    Sara Eliza Johnson traduzida por Maria Eu

    segunda-feira, setembro 12, 2016

    Da relativização da perda


    (Andres Serrano)

    Maria Inês subiu os degraus de acesso à porta de entrada, escancarada de par em par. Apesar de não conhecer a casa, soube para onde se dirigir. O cheiro forte a flores e cera, assim como o eco das vozes femininas a responderem ao terço, indicavam o local do velório. Na sala, envolta numa semi-penumbra, o féretro ao centro e, a rodeá-lo, a fila de cadeiras  onde as mulheres se sentavam, rezando ao mote da Dona Regina, mulher rubicunda, corada, com ar levemente debochado, de quem se dizia suspirar nos braços do Padre João depois da missa das sete. De pé, à cabeceira do defunto, Dona Ana recebia os pêsames, olhos secos e fixos num ponto indefinido, boca apertada num rito amargo. Também Maria Inês a abraçou, murmurando um "sinto muito pela sua perda", sentindo-lhe a distância polida no agradecimento breve. Sentou-se, por momentos, numa das cadeiras mais perto de uma das janelas cobertas por pesados cortinados de riscas castanhas e beijes, mesmo atrás da enlutada. Foi no momento em que se levantava para a despedida que entraram as irmãs Valença, conhecidas pela sua absoluta falta de tacto. Entre beijos ruidosos e suspirosos "coitadinha", "pobrezinha", perguntou, uma delas, de chofre: "Como consegue não chorar, Ana?". A sala gelou. Até as preces passaram a sussurros. Ouviu-se, então, a voz rouca e arrastada de Dona Ana: "A quem perdeu um filho para o mar e outro para o fogo, não sobram lágrimas para chorar o marido que morreu de doença prolongada!"


    terça-feira, setembro 06, 2016

    As cores do amor


    AMOR VIOLETA

    O amor me fere é debaixo do braço,
    de um vão entre as costelas.
    Atinge meu coração é por esta via inclinada.
    Eu ponho o amor no pilão com cinza
    e grão de roxo e soco. Macero ele,
    faço dele cataplasma
    e ponho sobre a ferida.

    Adélia Prado

    (Mark Rothko)

    AMOR AZUL
    O amor atinge-me no olhar,
    ali, onde a íris reage à luz.
    Fere-me o coração assim, iluminado.
    Levo-o nas mãos até ao mar azul
    a um tempo doce e feroz. Mergulho-o,
    diluo-o na espuma das ondas
    e abismo-me nele, inteira.

    Maria Eu


    domingo, setembro 04, 2016

    Declaração de amor

    (Carolyn Weltman)

    Meu Homem. Meu embondeiro. Meu cravo vermelho.  Meu perfume. Minha escada. Minha estrela. Minha chuva de Verão. Minha fogueira de Inverno. Meu ombro. Meu colo. Meu abraço imenso. Minhas mãos ternas. Meu presente. Meu amigo. Meu amante. Meu amor.


    sábado, setembro 03, 2016

    Não foi Setembro. Quem sabe, Outubro...

    (Lester Rapaport)


    Doeu-lhe Agosto como há muito lhe não doía mês algum. Abateu-se sobre ela uma solidão acompanhada, feita de conversas sobre receitas de salmão e bolo de chocolate, risos agudos, músicas de altifalantes e buzinas em cortejos festivos de casamentos. Sacudia a cabeça como que a tentar acordar daquela dor fina que lhe tolhia as pernas e lhe dava um leve esgar de sarcasmo permanente nos lábios. Desejou Setembro. Porém, entrado o novo mês, apenas as pernas começaram a sentir um pequeno alívio, fruto do milagroso gel de aloé vera que Joana espalhava, a cada fim de tarde, com mãos leves e quentes. Quem sabe, em Outubro...


    terça-feira, agosto 23, 2016

    Estranhamente



    Vinha-lhe a urgência da fuga. Havia a rotina, enfadonha, das horas cheias de minudências, de ruído, de pessoas com rosto mas sem nome. Ansiava por Agosto, pelas manhãs mais longas de sono, pelo sol a morder-lhe a pele branca, pelos pés na erva, os pêssegos vermelhos e lisos colhidos directamente do pessegueiro, as uvas pintadas de negro na espera de Setembro.
    Estranhamente, nesses dias lânguidos em que apenas os trinados dos pássaros e um ou outro cão ladrando perturbavam a leitura adiada de obras escolhidas com o cuidado de onze meses, nesses dias, sentia uma inesperada inquietude, uma falta da voragem em que julgara afundar-se sem salvação.


    sexta-feira, agosto 19, 2016

    Uma esplanada em Agosto


    Sentou-se na esplanada onde sempre regressava a cada Verão. O sol punha um brilho particular no rio que se espraiava logo ali, com mansidão, abrigando famílias inteiras de patos bravos e um ou outro esquife em remadas rápidas. A incursão rápida e inesperada de um menino, em correria desenfreada na perseguição de um Fox Terrier, fez perigar a paz dos veraneantes, tendo alguns saltado das cadeiras para formarem uma barreira entre o pequeno e o empedrado que ladeia a água. A tranquilidade foi restaurada, se bem que não tardou um ruído irritante de buzinas. Inquietaram-se de novo os que repousavam frente às chávenas de café e às bebidas frescas. Um cortejo automóvel seguia, devagar, um Mercedes Benz antigo (o modelo não sei dizer, já que não sou dada a esses detalhes), descapotável, de onde esvoaçavam fitas e véus. Pararam mesmo ali, que o chafariz é ponto de honra nas fotos de casamento, e a noiva, (des)ajudada por três raparigas vestidas de azul forte, em equilíbrio periclitante nuns sapatos de salto agulha, eclodiu do casulo de tule, qual borboleta, desembaraçando-se do véu. O noivo... Bem, o noivo não teve ajuda e, ao tentar sair com elegância, tropeçou aparatosamente no longo véu pousado no banco. 
    "Começas já a cair?", diz a noiva em voz estridente.
    "A culpa foi tua!", grita o noivo, ainda a levantar-se e a sacudir o fato cinzento.
    Abriu a carteira, pegou numa moeda de um euro e poisou-a na mesa para pagar o café.
    Era Agosto! Afinal, tocava ao longe uma concertina e estava de férias. Sorriu.



    terça-feira, agosto 09, 2016

    Gaivotas em terra


    (Ana Barros)


    Primeiro a estranheza. Aquele som estridente a ecoar no quarto, a luz ainda tímida, a entrar pelas frinchas da persiana. Depois, olhos abertos, sentidos já a despertar do torpor do sono, o mesmo som. Gaivotas! A mais de 30 quilómetros do mar, na cidade praticamente deserta dos seus e invadida por estranhos, as gaivotas faziam uma festa e lembravam-lhe que era tempo de ir ver o mar.



    quinta-feira, agosto 04, 2016

    Tacto

    (Dora Maar,  Picasso's lover, by Man Ray)


    Tinha um tacto de tal forma apurado que só precisava do coração para sentir cada linha do corpo dele.


    sexta-feira, julho 29, 2016

    Escreveu-lhe uma carta

    (Roderic O'Conor)

    Escreveu-lhe uma carta. Nunca gostara de escrever, muito menos cartas. Saíam-lhe sempre palavras em atropelo. Estranho, como quando falava tinha um discurso tão articulado e, ao correr da pena, era como se houvesse um travão nos seus dedos. Ainda assim, escolheu um papel amarelo com linhas (tinha que ter linhas porque senão nunca acertaria na direcção certa, ora subindo, ora descendo, num desencontro absurdo), uma esferográfica preta de ponta fina, sentou-se à secretária e começou:

    Hoje, esteve um calor tórrido. Lembrei-me das nossas férias na praia. De vez em quando lembro-me desses meses de Verão, em que tudo parecia tão simples. Ou era mesmo tudo simples? Sabes, aquele vestido laranja com cintura descaída e alças finas que costumavas usar ao Domingo? Fiz um igual. Visto-o em casa, quando a saudade aperta e o mar está tão longe que nem sequer há gaivotas a cruzar o céu. Vai parecer-te bizarro, eu sei, mas continuo a usar manteiga de cacau na pele. Não para me proteger do sol, como antigamente (torrávamos, isso sim, com aquela gordurazinha, no calor), mas para sentir o cheiro da adolescência descuidada e feliz. Isto tudo para te dizer que me faltas. Faltas-me tanto que me dói, bem ali, sob a pele, do lado esquerdo do peito.



    quarta-feira, julho 27, 2016

    Mapa amoroso

    (Gustav Klimt)

    Há, nas mãos dele, o mapa do corpo dela.
    Há, no corpo dela, o mapa das mãos dele.
    Há, em ambos, o caminho que os leva ao encontro um do outro.



    sexta-feira, julho 22, 2016

    quarta-feira, julho 20, 2016

    domingo, julho 17, 2016

    Ternura


    Maria Antónia não era particularmente bonita, particularmente elegante, particularmente inteligente, nem particularmente culta. Era, porém, particularmente terna. A essa ternura, Maria Antónia devia o brilho do olhar que lhe emoldurava o rosto. Era dessa ternura que fazia dádiva.


    sexta-feira, julho 15, 2016

    O poder das palavras

    (Ivan Aivazovsky)

    Carrying Our Words

    We travel carrying our words.
    We arrive at the ocean.
    With our words we are able to speak
    of the sounds of thunderous waves.
    We speak of how majestic it is,
    of the ocean power that gifts us songs.
    We sing of our respect
    and call it our relative.


    Ofelia Zepeda
    (translated into English from O’odham by the poet)




    Transportando as nossas palavras

    Viajamos transportando as nossas palavras.
    Chegamos ao oceano.
    Com as nossas palavras somos capazes de dizer
    dos sons das ondas retumbantes.
    Falamos de quão majestoso é,
    do poder do oceano que nos oferta cânticos.
    Cantamos a nossa reverência
    e apelidamo-lo de nosso semelhante.

    Ofelia Zepeda (traduzida da versão em Inglês por Maria Eu)