domingo, outubro 22, 2017

A fuga breve

(imagem retirada da internet, sem referência de autor)

Vénus, declaradamente enregelada pelo vento oeste, músculos hirtos do equilíbrio periclitante na concha, tinha-se cansado da posição estática, dos olhares de admiração sem retorno. Sabia que as mulheres tinham alma rebelde. Outras lhe fariam companhia, decerto, numa aventura fora dos museus, longe dos holofotes da fama. Paris não era longe! Ouvira dizer que, a Mona Lisa, se começava a notar um progressivo apagamento do sorriso. Sandro* compreenderia a sua inquietude. Afinal, ele criara-a! Aproveitou a calada da noite e uma distracção do guarda (sorridente, ele, a sussurrar palavras de amor ao telemóvel) para se escapulir. No vestiário, encontrou roupa das guias. Ainda experimentou um par de sandálias, mas os seus pés não suportaram a prisão das tiras de couro. Descobriu que, por estranha magia, bastava fechar os olhos e pensar num local para se encontrar nele. Foi assim que se viu na Piazza del Duomo e, num outro instante, em pleno Louvre, desafiando a Gioconda para uma fuga. Tentou-a com o vestido amarelo que levara consigo, uns sapatos de tacão, e com um relógio Swatch há muito abandonado na secção de perdidos e achados da Galleria degli Uffizi.
- Et maintenant? perguntou-lhe a parceira.
- Haia! A "Mona Lisa do Norte"!
A rapariga com brinco de pérola não pensou duas vezes perante o desafio. Perdeu o ar melancólico, soltou os cabelos, enfiou as calças e a blusa sem mangas que lhe levavam e, com uma gargalhada reprimida há séculos, exclamou:
- Bora lá buscar a mais louca de todas! A única que tem o seu próprio museu!
Quando se deram conta, a Cidade do México estava à vista, e Frida Kahlo, com um toucado de flores, completou a quadrilha.

A vaidade, porém, prendeu-as de novo, quando um pintor lhes pediu, com voz sedutora, que posassem as quatro, tão  parecidas com deusas, no sofá do aparthotel onde se hospedava. Ainda hesitaram, mas Frida derreteu-se com as doces palavras de Diego (tal e qual o Rivera) e a ela ninguém contradizia.

*Sandro Botticelli



domingo, outubro 15, 2017

Infância

(Yana Ilieva)


                                                              Inocência
                                                              Núcleo
                                                              Felicidade
                                                              Ânsia
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terça-feira, outubro 10, 2017

Nascer gaivota

(Marc Chagall)

Era nas pequenas coisas que o amor fazia questão em manifestar-se: uma luz inexplicável no olhar, o coração acelerado, um humedecer de lábios, o eco de um riso à toa. Naquele dia, sentou-se à mesa da esplanada, atrevido, e contou-lhe de uma praia onde se nascia gaivota. Foi então que, sem surpresa, lhe cresceram asas e voou com ele.


domingo, outubro 01, 2017

Maria da Conceição

(George Clausen)

Corria o ano de 1950, Maria da Conceição tinha dez anos feitos há poucos dias quando a levaram do casebre de duas assoalhadas onde vivia com os pais e cinco irmãos. Num saco de serapilheira, três pares de cuecas de pano cru, duas combinações de terylene azul claro, um vestido azul escuro muito lavado, já com manchas brancas de tanto ser esfregado no tanque de pedra, e três pares de meias passajadas. A mãe não lhe dissera grande coisa, só a levantara mais cedo que o costume. Vem aí uma senhora da vila buscar-te, rapariga. Diz que te tem visto na missa e que lhe pareces de bom tamanho para a ajudares na lida da casa. Bem falta nos faz, mais uma jorna! Ela não percebera muito bem o que aquilo queria dizer até se ver puxada pelo braço para dentro de um automóvel branco por uma senhora gorda, com um cheiro tão doce que até o estômago se lhe revoltara. Minha mãe! Minha mãe! Chamara. Mas a mãe olhara-a sem pestanejar, e voltara-lhe as costas antes que desaparecesse na primeira curva da estrada.
Precisara de um banco para chegar à tábua de passar a ferro e engomar as blusas de linho fino da menina Carlota. Vê lá como as deixas, rapariguinha! Lava bem as mãos antes de lhes tocares! A menina vai usá-las para ir para o Liceu!

Maria da Conceição lembrou-se disso, hoje, enquanto abotoava a blusa de seda, que passara impecavelmente a ferro ontem à tarde, diante da janela debruada a cortinas de cores alegres da sua cozinha branca. Senhora de si mesma!
Suspirou, deixou as más lembranças para trás, e saiu para ir votar.