quinta-feira, dezembro 31, 2015

Desejos

(Joan Miro)

Que em 2016 tenham tudo o que desejo para mim. Muita música, livros fantásticos,vento a despentear o cabelo, muitas gargalhadas, areia sob os pés, mar a perder de vista, bolo de canela, sol na pele, lareira em dias frios, tisanas de frutos vermelhos, toques de mãos, beijos doces e beijos intensos, abraços de fazer disparar o coração e abraços de apaziguar o coração, mimo para dar e receber, intensidade, tranquilidade, trabalho q.b. e uma vida aproveitada até ao tutano.


quarta-feira, dezembro 30, 2015

2=1

(Jack Vettriano)

Oración

Habítame, penétrame.
Sea tu sangre una como mi sangre.
Tu boca entre a mi boca.
Tu corazón agrande el mío hasta estallar.
Desgárrame.
Caigas entera en mis entrañas.
Anden tus manos en mis manos.
Tus pies caminen en mis pies, tus pies.
ardeme, árdeme.
Cólmeme tu dulzura.
Báñeme tu saliva el paladar.
Estés en mí como está la madera en el palito.
Que ya no puedo así, con esta sed
Quemándome.

Con esta sed quemándome.

La soledad, sus cuervos, sus perros, sus pedazos.

Juan Gelman






Corres, livre, no meu sangue, alteroso como as ondas de uma maré viva. Ardes-me nas veias, na pele que é a tua pele, branca, pontilhada de sinais, os meus e os teus, como estrelas de uma só constelação. Quando fecho os olhos, são os teus que cerro para nos vermos do lado de dentro.

domingo, dezembro 27, 2015

Conto triste de Natal

(imagem daqui)

Manuel era invulgarmente irrequieto. Parecia sempre que a alma traquina não lhe cabia no corpo franzino e aqueles não eram tempos em que aos meninos se permitia ir além de rígidas regras. Era logo pela manhã, bem cedo como convinha, que a mãe o empurrava porta fora, sapatos e casaco herdados do irmão a pouco agasalhar pés e tronco, estômago forrado com migas de broa e leite, a caminho da escola. Ora, Manuel não gostava particularmente daquela sala com carteiras de madeira onde se encravavam tinteiros de porcelana branca com uma pena. Ah, a pena! Que martírio usá-la sem sujar o papel! As mãos doridas do frio e das palmatoadas da professora, mulher severa e com uma urgência enorme em ter os meninos das quatro classes domesticados, a papaguear o "a,b,c" e a somar, subtrair e dividir. Talvez por isso ele ficava de olhar perdido a sonhar com os campos verdes onde corria livremente e os jogos de futebol com a bola de trapos que fizera dos restos das fazendas que a mãe usava para costurar os vestidos das irmãs e os aventais da Luzia. A Luzia era uma mulher rubicunda e bondosa que cozinhava qualquer coisa com tanto amor que fosse o que fosse que saía dos seus tachos era um manjar. Escusado será dizer que muitos eram os dias em que os sonhos o faziam desviar-se do caminho para as aulas e ficar na companhia do Sr. Arlindo e do seu rebanho de ovelhas, ou no quintal da Sra. Joaquina a marcar golos numa baliza feita de pedras do caminho juntamente com os outros gazeteiros. Nenhuma destas faltas passava impune e era a mãe que o recebia de cinto em riste para umas valentes vergastadas. "Hás-de aprender a não me faltar ao respeito!", gritava. E Manuel nunca entendia como é que não ir à escola significava faltar ao respeito à mãe. "Ninguém dirá que eu não sei educar os meus filhos, ouviste, meu fedelho?". Estas palavras doíam-lhe tanto como o cinto a cortar-lhe a pele das pernas. 
No ano em que fazia oito anos não passara para a 2.ª classe. As mãos andavam sempre inchadas dos encontros com a palmatória e as pernas marcadas de vermelho pelo couro do cinto. Ainda assim, era no campo que se refugiava. 
Chegado o Natal, a casa tinha o cheiro dos doces da Luzia e era ela que lhe passava a mão perfumada de canela no cabelo e murmurava "Meu menino. Meu menino.", fazendo-o sorrir. Era costume deixarem um sapato junto à lareira no dia 24 de Dezembro. Iam-se deitar e, logo pela manhãzinha, iam espreitar o que o Menino Jesus lá deixara. Nunca era muito. Um carrinho de madeira, um pião, uns rebuçados. Nesse ano, procedeu de igual forma, o coração em alvoroço pela ansiedade. Ao acordar, ainda mal o sol se levantara, correu para o sapato. Manuel não entendeu a razão pela qual nele só encontrou uma dúzia de castanhas. O olhar duro da mãe não lhe deixou margem para perguntas. Pegou nas castanhas, atirou-as para a lareira, e fugiu porta fora à procura do Sr. Arlindo. 

Cresceu, o Manuel, numa dureza só. Fez a 4.ª classe já a trabalhar. Deu muitos presentes de Natal mas nunca teve prazer em recebê-los. Envelheceu acreditando que a mãe nunca o amou. Amou muito mas pouco foi capaz de o mostrar.


quarta-feira, dezembro 23, 2015

Boas Festas, "minhas" pessoas dos blogs!

Ora cheguem-se aqui ao ecrã! Vá, não tenham medo! Vejam os meus votos de Boas Festas com carinho. Eu sou a criatura roxa. Quase no final, se encostarem bem a bochecha ao ecrã, vão sentir a minha saudação especial! Que tenham umas Festas muito felizes, com tudo a que têm direito, incluindo milhares de sorrisos!

sábado, dezembro 19, 2015

Tangles

(Garth Knight)*

Will you tangle me in tangles of enchantment?
Will you let me tangle you in my tangles?
Tangle me! Tangle me! Will you?




*Garth Knight transforma a arte do bondage numa nova arte.

quinta-feira, dezembro 17, 2015

Do nono dia de clausura


(Charles Courtney Curran)

Ao nono dia de clausura, entristeceu. As janelas tinham perdido luz e o alento de trespassá-las com o olhar desvanecera-se. Descalçara-se para ouvir o silêncio. Deitou-se em cima da cama feita de lavado pela Elisa. Nunca soubera o que usava para lavar a roupa que deixava nela o cheiro da sua infância. À memória, acorriam os estendais enormes, de arame, com milhentas pregadeiras de madeira a esticarem os lençóis alvos depois de serem esfregados no tanque. Encantava-a ver as mãos sábias das mulheres a esfregar a roupa na pedra do lavadouro, as mesmas mãos que a içavam para que se pudesse sentar no rebordo mais largo. Achavam-lhe graça, assim pequena, toda alegre, sempre a fazer perguntas e a gargalhar a cada salpico que a atingisse. Mas agora era a Elisa que lavava a roupa na máquina e não havia como ela lhe pegar ao colo. Também não podia rir com os salpicos da água, a não ser que a dita máquina avariasse ou, sei lá, fosse alvejada por um daqueles cowboys dos filmes que (re)via de quando em vez, deixando-a cheia de buracos. O cheiro. Era do cheiro de que queria lembrar-se. De olhos fechados rememorava cada gesto. O pousar da bacia vermelha ajoujada de roupa, as mãos que separavam lençol a lençol entrando na água com eles nas mãos, a dança agitada, o ensaboar com sabão azul. Era isso! Sabão azul! No dia seguinte perguntaria à Elisa onde tinha arranjado sabão azul para lavar à máquina.


segunda-feira, dezembro 14, 2015

Paisagem 2

(Daqui)


Ao sexto dia de clausura, já não tinha uma janela debruçada sobre o jardim dos mortos. Para trás ficaram as gerberas, as hidranjas e os fetos, não mais entrançados ou orgulhosamente erectos, antes tombados e em desarranjo, varridos pelo vento. Nesses dois dias de diferença, não avistara casacos coloridos. Dera conta, sim, de muitos casacos negros, todos juntos e em passo lento, seguindo um féretro. Também eram portadores de flores, o que tornava o cortejo fúnebre estranhamente alegre, pontuado por manchas coloridas de grandes coroas e ramos. Pensara para com os seus botões, não muitos porque o vestido era de fecho e só tinha dois na gola, que fazia falta uma banda naquela cerimónia. Uma coisa ao estilo de Nova Orleães, com clarinetes, saxofones e violinos, muitos cânticos e dança bastante. 
Mas agora, a janela, bem, era mais uma porta com varanda a bordejá-la,tinha toda uma outra vista. Sentou-se e, de chávena de chá de rooibos na mão, deu por si a olhar as centenas de outras janelas e portas envidraçadas que se perfilavam mesmo ali ao pé. Algumas quase pousavam na copa das árvores, enquanto outras ficavam bem acima da sua linha de visão, outras, ainda, quase pareciam um prolongamento da sua. Nunca se pensara a olhar os outros por detrás dos vidros. A clausura aguçara-lhe a curiosidade. Ocupava-se de pequenos nadas que iam do carreiro imenso de formigas em equilíbrio no varandim, até ao polícia que multava afanosamente os automobilistas prevaricadores das regras de estacionamento no largo bem defronte. 
Sorveu mais um gole de chá, levantou-se, e deixou os vizinhos tranquilos.


sábado, dezembro 12, 2015

Paisagem

(Beatriz Guzman Velasquez)

Há algum tempo que não se dava ao tempo de ficar sentada junto a uma janela. É Sábado e não pode sair nem fazer nada de muito relevante a não ser ficar sentada. Fá-lo, por isso, à janela. 
Das que se rasgam nas paredes de sua casa, sabe bem que veria uma praça ampla com meninos a brincar sob a vigilância atenta dos pais, ouve-lhes as gargalhadas entrecortadas pelo chamamento de “Luísa!”, “Diogo!”, “Maria!”, de quando em vez. Há também pássaros, muitos, nas árvores que agora se arredondam de ouro e cobre. Há, até, por vezes, uma gaivota que, inexplicavelmente, vem molhar as patas cansadas no lago da praça distante do mar.
Desta, a que lhe calhou em sorte ao quarto dia de clausura, que até ao terceiro a vista era outra e até enchia a alma de sol, avistava um cemitério. Eram onze horas, não mais, quando se agitaram os corredores das sepulturas. Os vivos enxamearam o lugar dos mortos com casacos coloridos e flores. Observou-os, aos donos dos casacos portadores de flores, na azáfama do enfeite. Não pararam em introspectiva meditação, nada que se assemelhasse a um reviver de recordações, apenas procuravam a melhor posição na jarra para um ramo de feto, uma gerbera, uma hidranja. A espaços, afastavam-se para ver o efeito do arranjo, deitando alguns um olhar disfarçado à campa do vizinho, como que a conferir se estaria mais bonita.
Pelas doze horas, não mais, não restavam nenhuns donos de casacos coloridos a alegrar a janela, apenas hastes de flores e fetos em orgulhoso entrance a florir campas cinzentas.



(Frank Sinatra, cem anos)

segunda-feira, dezembro 07, 2015

Golpe de asa

(J. M. W. Turner)

Foi gaivota. Rasou o rio, primeiro, sem que a assustasse o vento a fazer a água agitar-se e a levantar o malhoco. Planava uma e outra vez, pousando a espaços na ponte. A cada vez, aventurava-se em voos mais longos. A foz ali tão perto. O sonho de cruzar o mar a encher-lhe a quilha, a ritmar-lhe o bater de asas. Seguia aquela outra, sempre em reviravoltas de piloto experimentado, regressando mais tarde com o mar nos olhos e histórias de ondas alterosas onde também voavam peixes.
Atreveu-se a ir. Havia nevoeiro e a ronca ensurdecia-a mas nada a demoveu. Inebriada pelo cheiro a maresia, voou mais longe do que nunca, lá em baixo, a água encarneirada com malha branca. Avistava a gaivota aventureira e traçava o rumo na sua esteira. Na excitação, nem sentiu o golpe do arame que se soltara do grande navio, rodopiando ao sabor do vento norte, muito menos se deu conta do vermelho que lhe salpicava a alvura das penas. Morria e nada a movia a não ser continuar.


sábado, dezembro 05, 2015

Férias grandes

(imagem daqui)

Os dias eram longos nas férias grandes e, no entanto, para Clarinha o tempo era sempre pouco. Levava aqueles dias num corrupio tal que chegava à noite em quebranto de pernas e de braços, chegando a adormecer entre a sopa e o prato principal do jantar. 
-Esta menina não pára! dizia o pai, enquanto lhe pegava ao colo para a ir deitar na cama onde a mãe a despia com cuidado, enfiando-lhe a camisa de noite a custo e metendo-a entre os lençóis.
Mas de manhã, qual passarinho laborioso, Clarinha levantava-se, lava-se num piscar de olhos, vestia os calções e a camisola, calçava as sandálias velhinhas e, bebendo o leite em goles sôfregos, agarrava no pão com manteiga e corria porta fora com um "até logo, mãe" pouco perceptível, com a boca cheia. 
E era vê-la a bater à porta da Dona Arminda e gritar "Oh, Joaninha! Joaninha! Anda brincar!". Depois, já eram duas a correr pela aldeia, batendo às portas do Zé, do João, da Paula e da Diana. Um bando de miúdos enchia os caminhos e os campos de correrias e gargalhadas, apenas interrompidas para o almoço porque o lanche era metido em sacas e saboreado à sombra de uma árvore ou em cima de um muro, sentados, de pernas a bambolear.



sexta-feira, dezembro 04, 2015

Anatomia de um romance

(Jack Vettriano)

Anatomia de um romance.

- deu-lhe um beijo rápido na face, encostando ao de leve o peito ao dela;
- beijou-lhe os dedos da mão direita, pedindo antes "Posso?";
- comeu torradas, nem se lembrando que não costumava fazê-lo;
- deu-lhe nome de pássaro marítimo;
- apertou-a nos braços e beijou-lhe a testa;
- deixou que os lábios descessem das pálpebras à boca;
- descalçou-se com ela e pisaram a areia;
- beijou-a vezes sem conta, intercalando os beijos com o nome dela;
- ajoelhou-se aos seus pés e chamou-lhe "minha Deusa";
- ajudou-a a despir-se de roupa e de pudores;
- completou o corpo dela com o seu corpo;
- abraçou-a, nua, como se sempre a tivesse abraçado;
- chamou-lhe "minha".



- deixou que o seu peito tocasse o dele, durante um beijo rápido;
- entregou-lhe, aos lábios, a mão trémula;
- partilhou as torradas com prazer;
- levou-o a ver o mar;
- enroscou-se nos braços dele;
- ergueu o rosto para ser beijada;
- descalçou-se para pisar a areia com ele;
- beijou-o vezes sem conta, ao som do seu nome dito com doçura;
- acariciou-lhe a cabeça quando o viu de joelhos frente a si;
- foi um só corpo com o corpo dele;
- abraçou-se a ele, nua, como se nunca tivesse abraçado antes;
- chamou-lhe "meu".


quinta-feira, dezembro 03, 2015

Ser ou não ser

(Francis Picabia)


Há uma clara distinção entre ser transparente e ser invisível. A transparência faz de nós seres mais directos e entendíveis ao passo que a invisibilidade nos torna inexistentes. O mesmo se passa relativamente aos seres opacos e aos seres densos. Enquanto os primeiros são um obstáculo à compreensão, os densos são um desafio à descoberta.
Existir requer densidade e transparência, por mais contraditório que se nos assemelhe.


Hoje, sinto-me mais invisível do que transparente.