terça-feira, outubro 18, 2016

Dorme, meu menino

O Somno de João

O João dorme... (Ó Maria,
Dize áquella cotovia
Que falle mais devagar:
Não vá o João, acordar...)

Tem só um palmo de altura
E nem meio de largura:
Para o amigo orangotango
O João seria... um morango!
Podia engulil-o um leão
Quando nasce! As pombas são
Um poucochinho maiores...
Mas os astros são menores!

O João dorme... Que regalo!
Deixal-o dormir, deixal-o!
Callae-vos, agoas do moinho!
Ó mar! falla mais baixinho...
E tu, Mãe! e tu, Maria!
Pede áquella cotovia
Que falle mais devagar:
Não vá o João, acordar...

O João dorme... Innocente!
Dorme, dorme eternamente,
Teu calmo somno profundo!
Não acordes para o mundo,
Póde affogar-te a maré:
Tu mal sabes o que isto é...

Ó Mae! canta-lhe a canção,
Os versos do teu irmão:
«Na Vida que a Dor povoa,
Ha só uma coisa boa,
Que é dormir, dormir, dormir...
Tudo vae sem se sentir.»

Deixa-o dormir, até ser
Um velhinho... até morrer!

E tu vel-o-ás crescendo
A teu lado (estou-o vendo
João! Que rapaz tão lindo!)
Mas sempre, sempre dormindo...

Depois, um dia virá
Que (dormindo) passará
Do berço, onde agora dorme,
Para outro, grande, enorme:
E as pombas que eram maiores
Que João... ficarão menores!

Mas para isso, ó Maria!
Dize áquella cotovia
Que falle mais devagar:
Não vá o João, acordar...

E os annos irão passando.

Depois, já velhinho, quando
(Serás velhinha tambem)
Perder a cor que, hoje, tem,
Perder as cores vermelhas
E for cheiinho de engelhas:
Morrerá sem o sentir,
Isto é deixa de dormir...
Acorda e regressa ao seio
De Deus, que é d'onde elle veio...

Mas para isso, ó Maria!
Pede áquella cotovia
Que falle mais davagar:

Não vá o João, acordar...

António Nobre, Só



(Kate Summers)

Acordou, o João. Viu-se só, pernas trémulas, olhar perdido na casa grande e fria. Percorre o corredor manquejando, mão direita a repousar na anca dorida. Onde, a mãe? Onde a canção de embalar? Onde a infância, a juventude, a idade adulta de mãos firmes? O quarto é já ali, na porta entreaberta. Há uma cama em vez de um berço. Deita-se devagar. Quem sabe, dorme! Quem sabe, sonha com o canto da cotovia!


23 comentários:

  1. E agora, Maria, que só me apetecia
    embalar o meu pai...

    Boa noite, Maria
    Beijos

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    1. Como apetece embalá-los...

      Beijos, Teresa, e um bom dia :)

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  2. One of my favorite Leonard Cohen songs.
    Thank you.
    xx

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  3. Cumpriram-se as palavras da mãe. :)

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  4. Mais um testemunho do quanto as palavras, ditas, lidas, cantadas são uma forma de embalar sentidos.
    Boa noite, Maria.

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    1. Amo as palavras. São alento diário!

      Bom dia e um beijo :)

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  5. Bonito mas tão triste ...
    Fica um beijo Maria :)

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    1. A vida é triste tantas vezes...

      Beijos, I (gosto de te "ver") :)

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  6. Maria, belo e doloroso este Post.

    "A velhice não se enjeita/Como o lixo da calçada/País que os velhos rejeita/Não é país, não é nada." Zeca Afonso

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    1. "De velho se torna a menino."
      Obrigada, Legionário!

      Beijinhos :)

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  7. nã sou João, nem menino, mas dormia agora um soninho :)
    muito bom
    beijos Tutu linda.

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    1. Oh, papão, vai-te embora, lá de cima do telhado! Deixa dormir o menino, um soninho descansado!
      Obrigada, Stormy!

      Beijinhos :)

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  8. Uma beleza este "confronto" que fazes entre Nobre (tão só: o João?) e o teu texto (tão cru e verdadeiro: a condição humana). Comoves-me, Maria.
    Bj.

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    1. Grata pelas tuas sempre reconfortantes palavras, Agostinho!

      Beijinhos :)

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  9. Entre o
    "acordou"
    e a "cotovia"
    vai uma vida
    que pode até ser a minha
    Maria

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