segunda-feira, abril 24, 2017

La vie pas en rose

(René Magritte)

Sabia que estava vivo. O coração batia, ritmado, e o sangue coloria-lhe as veias que lhe mapeavam o corpo num emaranhado de linhas que, absurdamente, ao invés de vermelhas apareciam azuis na pele branca. Lembrou-se como se cortara com a navalha do pai, uma vez, quando miúdo, para ver se tinha sangue azul. Sorriu. Azul, como o que diziam ter a Rosarinho de Albuquerque, que se sentava na carteira à frente da sua nas aulas de Francês da Madame Rose. Era linda, a Rosarinho! Pena que olhasse todos com um ar tão… altivo.
Sabia que estava vivo, mas não era capaz de conjugar o verbo être no passé composé e a Rosarinho ria-se, todos se riam. Até o Petit Patapouf parecia troçar, em Francês, claro!
- Alberto! chamou uma voz feminina.
Quem seria aquela? Lembrava-lhe vagamente alguém. Talvez uma colega da turma? Ah! Quase de certeza que era uma daquelas que se sentavam lá atrás e nunca queriam ir ao quadro. Sim, uma dessas.
- Alberto! Então? Trouxe-te torta de cenoura. Tu sempre gostaste da minha torta de cenoura. Raro foi o fim de semana da nossa vida em comum em que não a fiz para sobremesa. Estás a falar Francês, homem? Para o que te havia de dar!



quinta-feira, abril 06, 2017

Micas

(Pierre Bonnard)

Micas espreguiçou-se dengosamente. O sol viera cedo, e a vida entrava-lhe toda pela janela dentro em cheiros (torradas, café, flores, relva cortada, perfumes almiscarados e frutados), ruídos (risos, conversas, motores em andamento e em travagens, chilreios nos mais diversos tons) e cores (o azul claríssimo do céu pincelado do branco das nuvens). Sentiu-se particularmente tentada a debruçar-se na janela e ver o fervilhar da rua primaveril. Saltou para as costas do sofá amarelo e sentou-se no parapeito já aquecido pela temperatura amena, o pêlo dourado e brilhante refulgindo como âmbar.
-Micas! Micas! chamou uma voz doce de menina.

- Deve ser a Clarinha! pensou Micas. E, num salto ágil e elástico, voltou ao chão, ronronando até às mãos ternas da dona.