segunda-feira, setembro 29, 2014

Melhor dar do que receber

Maior Prazer Dar que Receber  

Uma das leis cómicas da vida é a seguinte: é amado não quem dá, mas quem exige. Quer dizer, é amado aquele que não ama, porque quem ama dá. E compreende-se: dar é um prazer mais inesquecível do que receber; a pessoa a quem damos, torna-se-nos necessária, quer dizer que a amamos.
Dar é uma paixão, quase um vício. A pessoa a quem damos, torna-se-nos necessária.

Cesare Pavese, in 'O Ofício de Viver'




 (Albino Moura)

Encontra-se, no acto de dar, a descoberta de uma inesperada alegria, a de ver reflectido no rosto de quem recebe o prazer de receber. Ainda o "dar" se desenha e já experimentamos a antecipação do sorriso, o brilho do olhar, e assim sorrimos também, de olhar igualmente brilhante.

 

domingo, setembro 28, 2014

Os teus olhos luminosos

Não me peças palavras, nem baladas,
Nem expressões, nem alma... Abre-me o seio,
Deixa cair as pálpebras pesadas,
E entre os seios me apertes sem receio.

Na tua boca sob a minha, ao meio,
Nossas línguas se busquem, desvairadas...
E que os meus flancos nus vibrem no enleio,
Das tuas pernas ágeis e delgadas.

E em duas bocas uma língua... — unidos,
Nós trocaremos beijos e gemidos,
Sentindo o nosso sangue misturar-se.

Depois... — abre os teus olhos, minha amada,
Enterra-os bem nos meus; não digas nada.


José Régio

(Jack Vettriano)




De mim não queiras vãs promessas,

Nem doçura falsa, nem rodeios…
Cerra os teus olhos luminosos
E aperta-me de encontro ao teu peito

Nas nossas bocas ávidas, gulosas
As nossas línguas se enredem, ansiosas…
E que os meus mamilos enrijeçam, ao toque
Das tuas mãos quentes e sedosas.

E os nossos corpos num… - unidos,
Em trocas de carícias e fluídos,
O teu e o meu sexo encaixando-se.

Por fim… - o arrepio, o cansaço,
O descanso no aperto de um abraço.

Maria Eu



Salvia Divinorum

Ainda que os dias amoleçam na calidez outonal, pode-se gelar por dentro na (ante)visão das perdas.




































(Angel - Giuseppe Sanmartino)


Aurora de la muerte
(Salvia divinorum)


Fue fumar y esfumarte
de tu mundo y de ti
hacia tu mundo oscuro.
Fue tan sólo un momento
que no tuvo principio y que no acabará.
Fue conforme el arder, ser un humo fragante,
una lumbre tan sólo
con las hojas resecas de la salvia quemada.
Fue de plata y tiniebla la funeral aurora,
fue encontrar un camino
en el fondo más cruel del pozo ciego,
fue fundar residencia
en el mismo reverso de la incrédula carne,
contemplar la semilla del terror
germinada en corola de una flor sin raíces.
Fue morir y vivirlo,
fue partir y quedarse,
fue brillar un segundo
de la muerte en el negro filamento,
apagado de luz misericorde. 
© Vicente Gallego

sábado, setembro 27, 2014

Arder

(Claire street art)


Consome-me este fogo que me queima as entranhas. O desejo de ter as tuas mãos na minha carne fremente... arder, arder, para logo me afogar na saliva dos beijos, no fluxo do orgasmo.

 

sexta-feira, setembro 26, 2014

Frágil


 (Lauren Semivan)

De vez em quando regresso a ela, à Clara. Nunca se tivera em grande conta. A educação rígida fizera-a temerosa dos outros e de si própria. Combatera ferozmente esse temor com a avidez da leitura, a música, as visitas a museus, as viagens. Brilhou a liderar grupos, a contar histórias, a desdobrar-se em mulheres que não era. 
Continua a não se ter em grande conta, a Clara. Ninguém adivinha como queria, apenas, que lhe segurassem as mãos, sem dizer nada, deixando-a ser aquilo que é, frágil. 


quinta-feira, setembro 25, 2014

Menina

(Auguste Renoir)

Ana Rita olha-me com altivez, do alto do seu metro e trinta. Uns olhos verdes intensos e um cabelo ruivo, faiscante, a realçar o rostinho branco e sardento que coroa o seu corpo frágil de menina de oito anos. 
- Cheguei agora da minha aula de violino, sabes? diz-me.
Eu sei. Sei, também, que faz ballet, aprende Alemão, faz equitação e ainda tem aulas de pintura. Vive mesmo ali ao lado, a Ana Rita, e vejo-a a sair logo pela manhãzinha e a regressar bem para lá das oito da noite, umas vezes de tutu, outras de botas de montar, outras, ainda, com a caixa do violino. É a D.ª Agostinha que a vai buscar ao colégio privado onde estuda e a traz para casa, ajudando-a com o peso extra da mochila. A mãe não consegue chegar do gabinete de arquitectura antes das nove e o pai anda num corre corre em viagens constantes. É muito empertigada, a Ana Rita. Hoje está assim, confiante, afinal as aulas começaram e não tem tempo para respirar de tantas actividades extra a tomarem-lhe o espírito e o corpo. Há pouco tempo, porém, corriam as férias de Verão, colégio encerrado, vinha até à sebe que separa a sua casa da minha e perguntava-me, com ar perdido:
- O que achas que posso fazer? Não sei o que fazer! 
- Brinca! Tens um jardim tão bonito, um cão, brinquedos! respondia-lhe.
Não passava muito tempo sem que me arrancasse à leitura.
- Não sei brincar assim. Aborreço-me. Não sei estar sozinha sem fazer nada.
E a menina desafiadora ficava frágil e perdida.
De repente, lembrei-me de quando a escola acabava às 4 da tarde e as brincadeiras iam até à hora de jantar, sem cavalo, violino, professora particular ou ballet. De quando um ramo de árvore era esse cavalo, e se dançava ao som de cantorias estridentes, entre risinhos patetas de alegria e nunca nos aborrecíamos. 




quarta-feira, setembro 24, 2014

Sonho


 (Eugène Boudin)

"A cidade estendia os braços das igrejas para o céu: Do cais ele via as ladeiras, as casas velhas e enormes. As luzes brilhavam lá em cima e nuvens alvas corriam como bandos de carneiros. Pareciam também com os dentes de Joana. António Balduíno toda vez que arranja uma cabrocha diz a ela:
- Seus dentes parecem nuvens...
(...)
Ele se perdia olhando o casario negro da cidade. Havia uma estrela bem em cima da sua cabeça. Não sabia qual era, mas estava bonita, grande, brilhando num pisca-pisca. Ele nunca havia visto aquela estrela. A Lua apareceu muito grande e derrubou pelos fundos das casas uma luz tão esquisita que ele não conheceu mais a cidade. Pensou que era um marinheiro e havia chegado a um porto estrangeiro. (...) As nuvens corriam pelo céu. Eram carneiros. Alvos, enormes carneiros."

Jorge Amado, in Jubiabá



O sonho faz das nuvens alvos carneiros e dos homens marinheiros.

terça-feira, setembro 23, 2014

segunda-feira, setembro 22, 2014

Cartas de amor


 Bonaparte, incendiado de amores por sua mulher, Josefina, escreve-lhe arrebatadas cartas desde o campo de batalha. Imagina-a nos braços de outro amante e, desdenhando da força que o impunha como líder determinado, mal consegue disfarçar a mistura de paixão e de ciúme que o tomam.
(composição de vários retratos de Josefina)
Já não vos amo: pelo contrário, detesto-vos. Sois uma desgraçada, verdadeiramente perversa, verdadeiramente tola, uma verdadeira Cinderela. Nunca me escreveis; não amais o vosso marido; sabeis quanto prazer as vossas cartas lhe dão e ainda assim não podeis sequer escrever-lhe meia dúzia de linhas, rabiscadas apressadamente. Que fazeis o dia todo, Madame? Que coisa é assim tão importante que vos rouba o tempo para escrever ao vosso devotado amante? Que afeição abala e põe de lado o amor, o terno e constante amor que lhe prometestes? Quem será esse maravilhoso novo amante que vos ocupa todos os momentos, tiraniza os vossos dias e vos impede de dedicar qualquer atenção ao vosso esposo? Cuidado, Josefina: uma bela noite as portas abrir-se-ão e eu surgirei. Na verdade, meu amor, estou preocupado por não receber notícias vossas; escrevei-me neste instante quatro páginas plenas daquelas palavras agradáveis que me enchem o coração de emoção e alegria. Espero poder em breve segurar-vos nos meus braços e cobrir-vos com um milhão de beijos, candentes como o sol do Equador.  
Bonaparte




sábado, setembro 20, 2014

Casa

(Miroslava Zaharieva)

Tinham-lhe ensinado que um tijolo era um tijolo e que, fazendo argamassa, colocando-a a segurar tijolo com tijolo, ergueria uma parede. Ergueria, talvez, mais do que uma parede, uma casa, e nela se fecharia, forte, desde que não lhe deixasse portas ou janelas. Tornou-se uma construtora extraordinária. Admiravam-lhe a arte, a segurança dos alicerces, a perfeição das paredes sem fissuras, a segurança inabalável.
Naquele Verão a terra tremeu, um terramoto sem memória. Abriu-se uma junta de tal forma que o sol entrava a rodos casa adentro. 
- Ai é assim, o sol dentro de casa? perguntou-se, sentindo o calor na pele branca. 
Deitou-se ao trabalho e rasgou uma porta, duas portas, logo se seguindo um número infinito de janelas. Disseram-lhe que o Estio estava aí, rondando, mas isso não a deteve. Viesse o frio! Agora, era Verão!

sexta-feira, setembro 19, 2014

Dos sonhos sem dono

(Irena Chrul)


Sentava-se na sala, sapatos de meio tacão, vestido abaixo do joelho, o cão no regaço. Tudo muito próprio. 
A cabeça?  A cabeça esvoaçava em aviões de papel com sonhos dentro!



Tu



 (Jacques Dumont le Romain)

És chuva na areia sequiosa 
Rio a traçar desenhos sinuosos 
Mar em fúria nas minhas arribas
Gaivota pousada no meu peito 

A ti me dou
Por ti me perco
Em ti desabrocho
De ti renasço




quinta-feira, setembro 18, 2014

Verde, Cesário




Lúbrica 

Mandaste-me dizer,
No teu bilhete ardente,
Que hás de por mim morrer,
Morrer muito contente.

Lançastes, no papel
As mais lascivas frases;
A carta era um painel
De cenas de rapazes!

Ó cálida mulher,
Teus dedos delicados
Traçaram do prazer
Os quadros depravados!

Contudo, um teu olhar
É muito mais fogoso,
Que a febre epistolar
Do teu bilhete ansioso:

Do teu rostinho oval
Os olhos tão nefandos
Traduzem menos mal
Os vícios execrandos.

Teus olhos sensuais,
Libidinosa Marta,
Teus olhos dizem mais
Que a tua própria carta.

As grandes comoções
Tu neles, sempre, espelhas;
São lúbricas paixões
As vívidas centelhas...

Teus olhos imorais,
Mulher, que me dissecas,
Teus olhos dizem mais
Que muitas bibliotecas!


Cesário Verde, in 'O Livro de Cesário Verde'


(Damian Loeb)

quarta-feira, setembro 17, 2014

Nudez



 (Jesus Navarro)

Vivera no Jardim do Éden crente que a sua nudez era natural e bela. Quando descobriu a verdade, decidiu nunca mais andar nua.

Natação


(Eric Zener)


Peceras de amor

Nuestros cuerpos de peces
Se deslizan uno al lado del otro.
Tu piel acuática nada en el sueño
Junto a la mía
Y brillan tus escamas en la luz lunar
Filtrándose por las rendijas.
Seres traslúcidos flotamos
Confinados al agua de nuestros alientos confundidos.
Aletas de piernas y brazos se rozan en la madrugada
En el oxígeno y el calor
Que sube de las blancas algas
Con que nos protegemos del frío.
En algún momento de la corriente
Nos encontramos
Lúcidos peces se acercan a los ojos abiertos
Peces sinuosos reconociéndose las branquias agitadas.
Muerdo el anzuelo de tu boca
Y poco después despierto
Pierdo la aleta dorsal
Las extremidades de sirena.


Gioconda Belli



Só na água nadam, lado a lado, os peixes. Se privados dela, sufocam, longe dos nenúfares e longe, também, dos anzóis.

terça-feira, setembro 16, 2014

O Desafio da Rainha

Ora então, vamos lá ao desafio!|
Consiste em responder a algumas questões (e nomear outros cinco bloggers para responder às mesmas). Nunca respondi a um desafio mas Sua Alteza Real, a que tem uma ervilha, assim o determinou e eu, sua súbdita, obedeço. 
Assim:

1- O que você  não sai de casa sem levar

Brincos (grandes, de preferência); relógio; anel (grande, de preferência); carteira com tanta tralha que me causa tendinite!!! Desde tesoura até caneta de feltro, anda por lá tudo à mistura!

2- Animal favorito
  
Cavalo. Imponente, orgulhoso, belo!

3- Sapatos favoritos 

De saltos altos, preferencialmente compensados e abertos à frente, no Verão. Botas de cano alto, no Inverno. (Sim, também uso aqueles menos giros, tipo sapatilha, para trabalhar porque senão fico que nem posso, né?)

 4- Produto de maquilhagem indispensável

Lápis de olhos, rimmel e batôn de cor forte (vermelho; rosa choque; laranja; roxo)

5- Maior sonho

Este sonho é muito grande. Não cabe num post. (Para além de ser uma coisa que iria parecer pretensiosa... Como nunca vou conseguir realizá-lo, mais vale não contar!) 

6- Maior defeito

Preguiça. Sou tãããâo preguiçosa! Trabalho sob pressão e sempre angustiada...

7- O que me irrita nas pessoas

Não me olharem nos olhos quando falam comigo. Dá-me sempre a sensação de duplicidade. E, na sequência disso, a falsidade, o adiar da verdade...

8- Comida favorita

Meu Deus, o que eu gosto de comer! Diria, talvez, rojões à moda do Minho e pudim Abade de Priscos.

9- Doce ou salgado

Tudo! E agridoce, já agora!  

10- O que te deixa feliz

Ver os que amo felizes.

11- Escolher cinco blogues para este desafio

Aqui é que tudo se complica... Deixo esta parte à vontade de alguns dos que vierem ao meu canto, se lhes apetecer entrar na brincadeira.

Trauteio


(Giovanni Boldini)

Clara sai de casa em passos leves e dançados. Trauteia, baixinbo, uma canção de amor. Está apaixonada, vê-se no brilho do olhar, na cadência do andar, no rasgar do sorriso. Sabem-lhe a beijos, as palavras. 
Clara sabe que o amor é breve, por isso, vai beijar até que as palavras lhe soçobrem na boca e acreditar que o agora é para sempre.




Para além da pele

Não é minha, esta pele que me recobre. Não é minha!



"If you want to touch the invisible, penetrate the visible as deeply as you can."   Max Beckmann

segunda-feira, setembro 15, 2014

Insónia



 (Kansuke Yamamoto)

O que há de insuportável na insónia? Será o apurar dos sentidos? Ouvir o mais surdo dos ruídos, ver uma borboleta nocturna na escuridão que envolve o espaço exíguo entre o vidro da janela e a persiana, saborear o doce de marmelo da vizinha através do perfume que nos chega por debaixo da porta de entrada, sentir com agudeza invulgar o roçar do lençol na pele nua? Ou será o martelar do pensamento que não se cala no torpor do sono que se anuncia mas não vem?

domingo, setembro 14, 2014

Vindima amorosa

CONTINUUM: A LOVE POEM
going for grapes with  

 ladder and pail in         
the first slashing rain       

of September    rain      
steeping the dust          
in a joyous squelch   the sky  
standing up like steam     
from a kettle of grapes     
at the boil    wild fox grapes
wickedly high    tangled in must 

of cobweb and bug spit          
going for grapes    year           
after year    we two with        
ladder and pail stained            
with the rain of grapes           
our private language  
             
                           
Maxine Kumin


(The Vines California Landscape - Monique Straub, PSA)

CONTINUUM: UM POEMA DE AMOR
Ir apanhar uvas e levar

uma escada e um balde
ao cair das primeira chuvas intensas

de Setembro            a chuva
macerando a poeira

num alegre silenciador  do céu
evolando-se como o vapor

de uma chaleira de uvas
em ebulição     as uvas raposa*selvagens
num local perversamente alto    enroscadas

em teias de aranha e cuspo de insectos
procurando uvas       ano
após ano        nós dois com
uma escada e um balde tingido
pela chuva de uvas
a nossa linguagem secreta


*variedade de uva nativa dos Estados Unidos.

Maxine Kumin, traduzida por Maria Eu

sábado, setembro 13, 2014

sexta-feira, setembro 12, 2014

Partir


 (René Magritte)

- Vais-te embora? perguntou-lhe, ainda no entorpecimento das carícias.
- Não, vou partir!


Quadro(s)



Já não há quadro preto. Já não há, até, quadro verde. Nem giz. O giz que, dizias, te fazia alergia e te punha os nervos em pé quando arranhava o quadro. Há quadro branco e caneta de feltro. Há, também, quadro interactivo sala sim, sala não. Projector e tudo! 
O João não quer ir escrever no quadro branco com caneta de feltro. O João quer escrever em word. Que não, que tem que usar o pc. O computador está avariado e o projector só emite negrume.
O João tem letra ilegível. Escreve com lentidão. O João nem sabe o que é giz e nunca viu um quadro preto mas sabe teclar como niguém, corrigidos os erros automaticamente. 
No branco, fica uma mancha azul com traços irregulares e trémulos, sem corrector.  



Choveria em Santiago



Salvador Allende adivinhava que iria chover em Santiago do Chile, naquele 11 de Setembro de 1973.

quarta-feira, setembro 10, 2014

Paixão

 (Marc Chagall - lovers in moonlight)


A pele arrepia-se na antecipação das palavras
Delas nasce o desejo que invade o corpo
Nelas encontro mãos, boca, sexo, fluídos
Por elas o meu sangue corre mais célere nas veias
E nessa torrente,  navegas o meu corpo como batel
Perdes-te nos redemoinhos, nas ondas alterosas
Naufragas ao fustigar das bátegas da paixão.

Maria Eu

terça-feira, setembro 09, 2014

Fêmea



 (Michael Kienzle)

In Celebration of my Uterus

Everyone in me is a bird.
I am beating all my wings.

(...)
Sweet weight,
in celebration of the woman I am
let me carry a ten-foot scarf,
let me drum for the nineteen-year-olds,
let me carry bowls for the offering
(if that is my part).
Let me study the cardiovascular tissue,
let me examine the angular distance of meteors,
let me suck on the stems of flowers
(if that is my part).
Let me make certain tribal figures
(if that is my part).
For this thing the body needs
let me sing
for the supper,
for the kissing,
for the correct
yes. 


Anne Sexton, in the poem In Celebration of my Uterus 

 Em Celebração do meu Útero

Tudo em mim é um pássaro.
Adejo com todas as minhas asas.

(...)

Doce peso
em celebração da mulher que sou
deixa-me levar uma echarpe de três metros,
deixa-me tocar o tambor pelas que têm dezanove anos,
deixa-me levar taças para oferecer
(se é isso o que me toca).
deixa-me estudar o tecido cardiovascular,
deixa-me calcular a distância angular dos meteoros,
deixa-me chupar o pecíolo das flores
(se é isso o que me toca).
Deixa-me imitar certas figuras tribais
(se é isso o que me toca).
Pois o corpo precisa disso,
que me deixes cantar
para a ceia,
para o beijo,
para a correcta
afirmação.


Anne Sexton, no poema Em Celebração do meu Útero, traduzido por Jorge Sousa Braga







Mulher, ser uterino, terreno lavradio.

À descoberta da música clássica Portuguesa



 (António Fragoso - foto retirada daqui)

Descobri António Fragoso pelas mãos de um pianista russo que veio para  Portugal há alguns anos, depois de muito ter estudado  a língua e a cultura Portuguesas.  De uma beleza tocante e de uma rara qualidade, as composições de Fragoso ainda nos impressionam mais ao saber que tinha apenas 21 anos quando morreu, em 1918, sendo considerado um compositor e pianista emblemático do período da 1ª República.
Ora oiçam!

segunda-feira, setembro 08, 2014

Asas

(Angel by Drömma - Lotta Lundberg)


 Acordou com a estranha sensação de que lhe tinham crescido asas...




sábado, setembro 06, 2014

A (re)invenção do mundo

(Juan Miró)

Sem dizer o fogo - vou para ele. Sem enunciar as pedras. Sei que as piso - duramente, são pedras e não são ervas. O vento é fresco: sei que é vento, mas sabe-me a fresco ao mesmo tempo que a vento. Tudo o que sei, já lá está, mas não estão os meus passos nem os meus braços. Por isso caminho, caminho, porque há um intervalo entre tudo e eu, e nesse intervalo caminho e descubro o meu caminho. Mas entre mim e os meus passos há um intervalo também: então invento os meus passos e o meu próprio caminho. E com as palavras de vento e de pedras, invento o vento e as pedras, caminho um caminho de palavras.

Caminho um caminho de palavras
(porque me deram o sol)
e por esse caminho me ligo ao sol
e pelo sol me ligo a mim
E porque a noite não tem limites
alargo o dia e faço-me dia
e faço-me sol porque o sol existe
Mas a noite existe
e a palavra sabe-o.

António Ramos Rosa, in Antologia Poética




(Re)Invento o mundo através das palavras: pinto de cor o horizonte, alaranjo o sol, aclaro  o azul do céu e do mar, avermelho as asas dos pássaros e não há árvore que não seja verde. (Re)Invento o mundo mas as palavras são livres e não consigo evitar a negritude da noite.

Um

(Jack Vettriano)


Foram um, sendo dois. Corpos feitos corpo, almas feitas alma, peças de um mesmo puzzle.
Foram carne e saliva. Foram sangue e suor, numa dança latina ardente e ritmada.  




sexta-feira, setembro 05, 2014

Insolúvel


"Não consigo pensar em nada. Não consigo entender como é que num mundo onde acontecem coisas que ainda me parecem maravilhosas, como alugar um carro num país e devolvê-lo noutro, tirar do congelador um peixe fresco que morreu há trinta dias ou pagar as contas sem sair de casa, não seja possível resolver um assunto tão trivial como uma pequena alteração na organização dos factos. Eu, simplesmente, não me conformo."

Samanta Schweblin, in Pássaros na Boca - Contos


(Masao Yamamoto)

Sabemos das viagens ao espaço, dos IPADs, dos IPODs, dos Androids, dos Iphones, da cura de doenças terríveis, das mãos biónicas, de tanta e tanta coisa... Mas no fundo, bem lá dentro do coração, sabemos também que há trivialidades insolúveis, como devolver a voz ao pássaro que deixou de cantar sem razão naquele ramo alto da figueira. 

quarta-feira, setembro 03, 2014

De uma certa saudade



 (Haris Lithos - Mediterranean Sea)

"E tu, porque não vens ter comigo, mesmo que seja em sonho, agora que as buganvílias começam a acordar em banho de roxo e ouro pálido e do céu baixo se solta um vento quase caricioso, que vai deixando dedadas mornas por aqui. (...) Esta sede de ti que não se extingue! (...) Sinto as pequenas vagas a esfrangalharem-se nos recifes, a marulharem ao longe. A pele escalavrada da memória dissolve-se nesta exaltação. Sorris-me. O teu torso desnudo no fundo azul da tarde mais azul (...) Parece que alguém lavra um campo, imagino os braços fumegantes da terra a abrirem-se de espanto, tal como em espanto e amor se abre outra vez o teu corpo."

Urbano Tavares Rodrigues, in Margem da Ausência




Há uma certa saudade que só tem remédio quando a terra é lavrada de novo, num ciclo em que ao arado manobrado por mão firme se segue o plantio no rasgão, fundo, ainda em estretores do embate das lâminas, ávido de semente.

Josefa e Johannes

Creio que Josefa jamais terá visto um Vermeer e que Vermeer nunca terá ouvido falar de Josefa. A primeira, portuguesa por parte do pai, espanhola por parte da mãe. O segundo de Delft, na Holanda.

Não teve Josefa a grandeza do holandês mas foi uma das quatro mulheres referenciadas como pintoras barrocas de relevo,  juntamente com Louise Moillon (França), Clara Peeters (Flandres) e Fede Galizia (Itália).

Josefa de Óbidos, nascida Josefa de Ayala Figueira (1630-1684), desde cedo revelou tendência para as artes, nomeadamente para a pintura e para a gravura em metal, lâminas de cobre e prata. O pai, Baltazar Gomes Figueira, também pintor com algumas encomendas, embora de pouco reconhecimento, fê-la apadrinhar por Francisco Herrera, El Viejo, figura da pintura barroca espanhola com algum destaque.

Rapariga determinada, não deixa que a enclausurem para a vida no convento para onde a mandaram aos 16 anos (embora seja no convento que aperfeiçoa a arte) e regressa a Óbidos, onde se destaca pelas obras que incluem naturezas mortas e painéis religiosos. 




Teria por volta de vinte anos quando fez a gravura da edição dos novos Estatutos da Universidade de Coimbra e foi, ainda, retratista da Família Real Portuguesa,  sendo de realçar os retratos da rainha D. Maria Francisca Isabel de Sabóia, mulher de D. Pedro II e da filha, princesa D. Isabel, o desta aquando do seu noivado com Vítor Amadeu, duque de sabóia, a quem terá sido enviado.




Houvesse televisão e internet no período Barroco e certamente Johannes e Josefa teriam comentado a obra um do outro no reduto dos seus lares ou, quem sabe, trocariam emails sobre técnicas de pintura.

 

terça-feira, setembro 02, 2014

Um brinco como ponto de luz


 (Rapariga com brinco de pérola - Johannes Vermeer)

Tropeça-se num filme. Recorda-se um quadro, um pintor. Procura-se uma imagem. Encontram-se as mais díspares. E se fizesse um post com elas? Há tantas e tão curiosas! Reúnem-se algumas e... descobre-se que alguém já teve a mesma ideia.
Rapariga com brinco de pérola é uma notável obra de Johannes Vermeer, célebre pintor holandês do séc. XVII. Até os mais ignorantes dos meandros da pintura clássica identificam o quadro da rapariga com sorriso doce, em cujo lóbulo da orelha esquerda brilha uma pérola, foco de luz, graças ao filme com o mesmo nome dirigido por Peter Webber. Estrelando Colin Firth como Vermeer e Scarlett Johansson como a rapariga do retrato, cria uma história romântica para explicar a origem da criação desta obra da qual, na realidade, nada se sabe.
Criadores diversos, mais ou menos irónicos, inspiraram-se neste quadro de Vermeer.

 (Dorothee Golz)

 (David Barto - Marge Simpson)

(Marco Pece - Lego)

(Moça Com Brinco de Pérola - Releitura , por Alberto de Moraes)


História de um amor triste



(Maggie Taylor)

A menina Joana rodava nos dedos o rosário negro, tão negro como o vestido que lhe cobria o corpo desde que a conhecia. Tinha um olhar triste e sempre vago. Lembrava-se de a ver na missa das oito, com aquele rosário. Só o cabelo lhe parecia ter mudado, sendo agora branco. As crianças costumavam segui-la, em bando, cantarolando umas palavras cruéis: Bruxa preta e feia, vai-te desta aldeia!
Perguntara à mãe o porquê do luto da menina Joana e recebera uma resposta enviesada que misturava viagens, primos, cartas e tuberculose. Na altura, ficou-lhe a ideia de que tinham morrido todos os primos de Joana. 
Sabia agora que, ainda menina, ela se tomara de amores por um primo direito, da mesma idade (dizem que teriam quinze anos, ambos) e que, quando os pais de um e de outro descobriram uma carta que ele lhe escrevera, o mandaram embarcado para o Brasil. Sem resistência física para aguentar a longa viagem, o rapaz começou a cuspir sangue e não resistiu, sendo o corpo atirado ao mar. Só uns meses depois chegou missiva à terra dando conta da desdita. Ouviram-se os gritos de Joana dias a fio e, quando voltou a sair, vestia o luto que nunca mais tirou.