terça-feira, outubro 29, 2019

Era uma vez uma flor



(Mapplethorpe)


Para a Maria Eu

Porque los pájaros nacidos en jaula creen que volar es una enfermedad, de más en más hay pájaros rogando porque los  metan en una jaula.

Alejandro Jodorowsky


"voam em bando
os pássaros negros do teu cabelo,
mas não te digo nada para não te acordar. 
fico só olhando, 
adivinhando o rumo no bater das asas,
o crocito em coro sobrevoando o teu ventre, 
alto-ventre, 
baixo-ventre,
espero até os ver pousar.
imobilizo-me depois,
fico quieto,
na intimidade do teu quarto
respiro mais devagar.
já não sinto o dia, nem a dor,
nem o tempo, nem a voz,
apenas um sopro suave
e faço os pássaros voar"


Há palavras que nos beijam.

(The Cinematic Orchestra - Arrival of the birds)

domingo, outubro 27, 2019

Actuação final


(Amy Judd)


O palco era um velho amigo. Entre ela e ele não havia segredos. Crescera a praticar o equilíbrio corporal, a projecção da voz, a encarnação das personagens. Horas a fio, fora de tudo um pouco: mulher e amante; pobre e rica; doce e amarga; dócil e rebelde...
Cansada, era cansaço o que sentia, desse jogo de sol e sombras, de nunca ser ela, sendo sempre outras.

Tinha feito a actuação final. Não haveria mais diálogos, monólogos, público, palmas... Descalçou os sapatos vermelhos ainda sob a luz intensa do holofote. Pés nus, coração descompassado, subiu as escadas como uma sonâmbula. De lá de cima conseguia ver a mancha vermelha iluminada. Fechou os olhos e voou.



(Zbigniew Preisner, Lisa Gerrard, Dominik Wania - Melodies of my youth)

segunda-feira, outubro 21, 2019

Perdão

(Fernando Amorsolo)


Augusta subia a ladeira íngreme a custo, a mão direita a afagar os rins por cima da blusa de seda bege.
Entre dentes, desfiava um rol de pragas.
“Rais partam as malditas pedras mais quem se lembrou de mandar calcetar tão mal o diabo do caminho! Havia de se estrepar todinho cada vez que aqui passasse!”
Chegada à eira da casa grande, parou um pouco para regularizar a respiração e limpar o rosto suado com um lenço da mão. O lenço, de cambraia branca bordada, não merecia tal destino, mas do bolso daquela saia plissada preta, que habitualmente usava para ir à missa, só se esperava saíssem coisas finas.
Bateu palmas, enquanto gritava: “Oh, da casa! Oh, da casa!”
Bem que sabia haver uma campainha, toda moderna, na porta verde, ao cimo das escadas. Mas se esperavam que subisse mais uma vintena de degraus depois da ladeira, deviam estar doidos!
Ouviu uma voz respondendo, lá de dentro, “Já vai! Já vai, senhora!”
Uma cabeça de homem, ornada de farta e desordenada cabeleira branca, assomou à porta, apenas entreaberta.
“Augusta! És mesmo tu?” Havia espanto nas palavras.
“Sou eu, pois, seu velho covarde! Vim dizer-te que podes morrer em paz que eu, Augusta da Conceição, perdoo-te teres-me abandonado no altar, naquele dia 15 de Agosto de 1960!”
E foi assim, sem mais, que Augusta deu o recado e, de imediato, voltou a descer por onde viera, repetindo baixinho “Pronto! Pronto! Agora podemos morrer os dois descansados!”

A aldeia acordou, no dia seguinte, com o toque  a finados dos sinos. Augusta da Conceição e António Carriço tinham morrido durante a noite. Os sinos que não tinham repicado pelo seu casamento, faziam-no agora, que a morte os juntara.



(Hélène Grimaud - Mozart: Piano Concerto No. 23: II. Adagio)

segunda-feira, outubro 07, 2019

Espelho meu


(Zélia Salgado)


Há em mim tanto de ti que me olho ao espelho e te vejo. Há um mundo de palavras escritas em qualquer lugar, desde um semáforo à minha cama. Há um cheiro intenso ao teu perfume que, de quando em vez, parece perfumar os meus pulsos. Há uma queimadura na pele, dos teus lábios em beijos ardentes. Há um brilho nos olhos, do reflexo do brilho dos teus. Há a vontade  imensa de encostar a cabeça no teu peito e, simplesmente, não dizer nada, só sentir-te respirar.


(Etta James & B. B. King - There's Something on Your Mind)