segunda-feira, dezembro 26, 2016

Rabiscos


Tinham-lhe dito que seguisse a primeira estrela. Assim o fez. Não que fosse muito de obedecer. Lembrava-se bem dos castigos que a professora Lurdes lhe aplicava quando, menina pequena de bata branca, empinava o nariz e fingia não a ouvir mandá-la parar de ler o livro que trazia de casa e escondia por baixo do caderno aborrecido de aritmética. Era ler à socapa e desenhar em qualquer pedacinho de folha branca. Era nos cabeçalho dos textos de História, no verso dos desenhos aguarelados, nos quadrados do rodapé das equações... Meninas de cabelos compridos e pestanas longas, flores exóticas, paisagens com mar e coqueiros. Um dia, até se aventurou a rabiscar n'Os Lusíadas! 
Sacrilégio! E logo uma mulher nua, de "lácteas tetas"! 
Pois se era assim que o Canto II dizia, como deveria tê-la feito? Custou-lhe os intervalos de uma semana, a proeza, e uma folha arrancada, solenemente, na frente da turma horrorizada. O diabo! Decerto era o diabo que a tentava a retratar a impudica nudez das ninfas, habitantes de um canto que lhes tinha sido interditado do estudo.
Seguiu, então, a estrela primeira e entrou-lhe a memória alma adentro, avivando os desenhos arquivados, onde cada traço vinha completando o esquiço que continuava ali, naquele céu azul petróleo a encimar os recortes dos montes, a sua vida ainda inacabada. 
(enquanto recordava, pegara num recibo de gasolina e rabiscara, maquinalmente, uma praia banhada por um mar revolto)

sábado, dezembro 24, 2016

Um Natal muito feliz!


Seja quente, com mantas e com abraços
Seja doce, com bolos e com beijos
Seja alegre, com gargalhadas e sorrisos
Seja feliz!

quarta-feira, dezembro 21, 2016

Cumplicidade

(Marc Chagall)

Ouviu, por acaso, as palavras da mulher da mesa ao lado, num tom de voz um pouco mais alto do que seria de esperar para uma confidência em pleno salão de chá: "-Existo para além de mim." 
Suspendeu a torrada que segurava na mão direita e parou de mexer o chá de rooibos, surpreendida. Talvez se ouvisse mais um pouco, pensou, entendesse o que significavam.
Desviou discretamente o olhar para observar os ocupantes da mesa. Uma mulher e um homem nos cinquenta olhavam-se com ternura cúmplice, as mãos aflorando-se ao de leve. Entendeu.



sexta-feira, dezembro 16, 2016

Da urgência das palavras

(LASZLÓ LAKNER)

Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício

Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição

Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsinore

E há palavras nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmos só amor só solidão desfeita

Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar.

in «Uma Grande Razão», de Mário Cesariny





Quando calas as palavras que te sobem, impulsivas, à boca
Quando as sufocas, julgando-as, manietando-as 
ali mesmo, aprisionadas onde foram pensadas 
Quando acabas por matá-las, porque incómodas
enterrando-as bem fundo, uma e outra vez
És tu que imerges na escuridão de Elsinore
no cortejo desolado e infausto de Hamlet.

Maria Eu

domingo, dezembro 11, 2016

Casa meio vazia, meio cheia

(Andrew Wyeth)

Subiu as escadas duas a duas. Havia de subi-las três a três, como quando era menina, mas à primeira experiência descobrira que de menina só lhe sobrava a memória.
O terraço continuava soalheiro e as floreiras mantinham luxuriantes sardinheiras, enquadradas por grades pintadas de um verde que em tempos fora escuro. A fechadura da porta da cozinha cedeu ao rodar da chave com um estalido grave, acompanhado pela agudez do chiar das dobradiças. Esbofeteou-a o odor acre. Porque doíam, os cheiros que agora se instalavam onde outrora havia o aroma  dos biscoitos de laranja e canela, dos assados de Domingo, da roupa acabada de passar a ferro. A cozinha, sempre cheia de taças com fruta, cambos de cebolas e alhos pendurados em ganchos nas paredes, ao lado dos chouriços curados em longos fumeiros de Inverno, esvaziara-se. Os ganchos vazios projectavam uma sombra ameaçadora nos azulejos brilhantes à luz branca da florescente. O longo corredor que leva aos quartos e à sala grande (Ah! A sala grande dos Natais em família! Quantos risos de meninos e sons de conversas felizes guarda!) tem que ser percorrido apalpando as paredes. Fundiram-se as lâmpadas dos apliques. Entra no seu quarto. Continua tudo igual. Nas molduras que habitam a cómoda, os jovens mantêm-se jovens, os meninos ainda são meninos e os que morreram continuam vivos. Abre, a custo, as contras das janelas, empenadas pela falta de uso. Libertas, as janelas filtram o sol da tarde que ainda vai curta. Roda-lhes o fecho e deixa entrar a vida toda: pássaros chilreantes, grilos e ralos cantores, a mãe a chamá-la para o lanche de leite com cevada e pão com geleia, e ali, bem ao alcance das suas mãos, a nespereira. Sim, a mesma que sabem dar frutos amarelos e suculentos, em cujo tronco se recosta uma velha e cansada escada de madeira.


terça-feira, dezembro 06, 2016

Sonata para um homem forte


Chegou antes da hora. Pela porta entreaberta via-o. Segurava-se, em equilíbrio periclitante, à mesa baixa da sala de estar onde repousavam as molduras com fotografias de filhos, netos e bisnetos, lado a lado com a jarra de camélias brancas. Reparou que se baixava para calçar os sapatos enquanto resmungava de si para si, quem sabe maldizendo o reumatismo que agora lhe tolhe pernas e mãos, dificultando-lhe os mais comezinhos gestos rotineiros. Ainda se sentiu tentada a entrar e oferecer ajuda, mas veio-lhe à memória o homem forte e sobranceiro de outrora, aquele que franzia o sobrolho à mínima tentativa de lhe afastarem empenos do caminho, e retirou-se, pé ante pé.


sábado, dezembro 03, 2016

Do alheamento da realidade





  • (Daniel Jean-Baptiste)



  • "Dois jovens peixes vão nadando, e a certa altura encontram um peixe já velho que vai em sentido oposto, lhes faz um gesto de saudação e diz: "Vivam, rapazes! Que tal está a água?". Os dois peixes jovens nadam mais um pouco e depois um vira-se para o outro e diz: "Que raio de coisa é a água?"."

    Do manifesto A Utilidade do Inútil, de Nuccio Ordine.


    Moves-te a cada dia num alheamento da realidade em que imerges. Talvez isso signifique que a aceitas tal como te é servida, sem te aperceberes que não contas para a elaboração do cardápio.