segunda-feira, agosto 31, 2015

Poesia nas mãos

(Jack Vettriano)


Não reparara nela a não ser porque se sentava precisamente na mesa fronteira à minha. Lia um livro que, pela mancha do texto visível à pouca distância, me pareceu ser de poesia. De vez em quando, ao ruído da porta a abrir-se, levantava os olhos, logo regressando a um alheamento a tudo o que se passava no salão de chá. Observei-a. Nos cinquenta, formas arredondadas, casaco preto de corte discreto, deixando antever o vermelho do vestido, da mesma cor dos lábios. Mantinha-se discreta e concentrada até que... A porta abriu-se, uma vez mais, e ela, uma outra vez, olhou naquela direcção. O olhar brilhou como se tomado da luz de mil estrelas, as mãos, levemente trémulas, fecharam o livro. O homem que entrara sorria, eivado de nítida ternura e, aproximando-se, apertou-lhe as mãos nas suas, sussurrou-lhe algo ao ouvido e saíram, abraçados. Na mesa, ficaram o livro e uma nota de cinco, por de mais excessiva para pagar o café. Haveria, decerto, mais poesia naquelas mãos do que no livro inteiro.


Dual

(Catriona Grant)


Enquanto descia as escadas, a cada dia, aprumado para trabalhar, o seu outro eu despia-se e subia-as, degrau a degrau, regressando ao quarto, aguardando o final da tarde para se lhe reunir de novo e, então, ser feliz.



sábado, agosto 29, 2015

Aos vindouros

(André Kertész)


AOS QUE VIEREM DEPOIS DE NÓS 

Bertolt Brecht 
(Tradução de Fernando Peixoto) 

É verdade, eu vivo num tempo sombrio! 
Uma palavra sem malícia é sinal de tolice. 
Uma testa sem rugas é sinal de indiferença. 
Aquele que ri 
Ainda não recebeu a terrível notícia. 

Que tempos são esses, quando 
Falar sobre árvores é quase um crime 
Pois significa silenciar sobre tanta injustiça? 
Aquele que atravessa a rua tranquilo 
Já está inacessível aos amigos 
Que passam necessidades? 

É verdade: eu ainda ganho bastante para viver. 
Mas acreditem: é por acaso. 
Nada do que faço 
Me dá o direito de comer quando tenho fome. 
Estou sendo poupado por acaso. 
(Se a minha sorte me deixa, estou perdido.) 

Me dizem: come e bebe! 
Fica feliz por teres o que tens! 
Mas como é que eu posso comer e beber 
Se a comida que como, tiro de quem tem fome? 
Se a água que bebo, faz falta a quem tem sede? 
Mas mesmo assim, eu como e bebo. 

Eu queria ser um sábio. 
Nos livros antigos está escrito o que é a sabedoria: 
Se manter afastado dos conflitos do mundo 
E passar sem medo 
O curto tempo que se tem para viver; 
Seguir seu caminho sem violência; 
Pagar o mal com o bem; 
Não satisfazer os desejos, mas esquecê-los. 
Sabedoria é isso! 
Mas eu não consigo agir assim! 
É verdade, eu vivo num tempo sombrio! 

Eu vim para a cidade no tempo da desordem 
Quando a fome reinava. 
Eu vim para o convívio dos homens no tempo da revolta 
E me revoltei ao lado deles. 
Assim se passou o tempo 
Que me foi dado viver sobre a Terra. 

Eu comi o meu pão no meio das batalhas. 
Para dormir, eu me deitei entre os assassinos. 
Fiz amor sem muita atenção 
E não tive paciência com a Natureza. 
Assim se passou o tempo 
Que me foi dado dado viver sobre a Terra. 

No meu tempo as ruas conduziam ao lodo, 
E as palavras me denunciavam ao carrasco. 
Eu podia muito pouco, mas o poder dos patrões 
Era mais seguro sem mim, espero. 
Assim se passou o tempo 
Que me foi dado dado viver sobre a Terra. 

As forças eram limitadas. 
O objectivo permanecia a uma longa distância. 
Era nitidamente visível, mas para mim 
Quase fora do alcance. 
Assim se passou o tempo 
Que me foi dado dado viver sobre a Terra. 

Vocês, que vão emergir 
Das ondas em que nos afogamos. 
Pensem, quando falarem das nossas fraquezas, 
Dos tempos sombrios de que tiveram a sorte de escapar. 
Nós existíamos através das lutas de classes, 
Mudando mais de país do que de sapatos, 
Desesperados quando só havia injustiça 
E não havia revolta. 

Nós sabemos: 
O ódio contra a baixeza 
Também endurece o rosto; 
A cólera contra a injustiça 
Também faz a voz ficar rouca. 
Infelizmente nós, 
Que queríamos preparar o terreno para a amizade, 
Não pudemos ser, nós mesmos, bons amigos. 

Mas vocês, quando chegar o tempo 
Em que o Homem seja amigo do Homem, 
Pensem em nós 
Com simpatia.





Assim se esperava que aqueles que viessem pudessem escapar aos tempos sombrios. Contudo, os tempos são, ainda, por estes dias, de sombra.

sexta-feira, agosto 28, 2015

A(des)gosto

(ALEX CRÉTEY)


Não sei se o mês de Agosto, de que gosto, existe mesmo quando se abate o desgosto.


quarta-feira, agosto 26, 2015

A melhor selfie de sempre

(imaem de Artivism)


Vincent Van Gogh, Edvard Munch, Leonardo da Vinci, Johannes Vermeer. Tudo a molho e fé em Deus, para entrarem numa selfie. Loucura? Talvez, mas que a ideia deu origem a uma bela ilustração, isso deu!
E respeitaram as proibições de selfie-stick.



segunda-feira, agosto 24, 2015

domingo, agosto 23, 2015

A ferida aberta da memória


(Rogier V, Der Weyden)

"A memória é uma ferida vasta", escreve Chico Buarque, citado pela Isabel

Sinto a memória agudamente. Arde-me um aflorar de dedos, esfria-me uma palavra dura, enternece-me um abraço, inebria-me um perfume. 
Recordo uma ferida que demorou meses a curar. Sentia a carne aberta a pulsar, intensamente, a cada dia, a cada noite. 
A minha memória, tal como a ferida, pulsa, incapaz de cura para o tropel de emoções.


sábado, agosto 22, 2015

Anjo

(Pierre Auguste Renoir)


- Coitadinha, não sabia nadar bem e depois, sabes como é, o rio é padrasto!

Abafava as palavras e confundia padrasto com filho da puta, decerto. O rio tinha levado Mariana, catorze anos, loira seráfica de modos doces. Eram férias e sempre vinha com os tios passar uns dias. Ela, que vivia na cidade grande, cheia de olheiras e sem cor nas faces, aproveitava para apanhar sol na areia grossa do rio e refrescar-se na água de fundões e remoinhos. Um anjo a banhos, diziam. Um anjo no Céu, afirmavam agora. 

- Que Deus a tenha!

Dizem que, desde então, a cada dia, pela noitinha, há um anjo loiro e pálido a nadar graciosamente nas águas revoltas do rio.



quinta-feira, agosto 20, 2015

Pessegueiro


(imagem daqui)


A casa continuava ali, aparentemente igual. Já secara a buganvília que emoldurava a varanda e a horta não era trabalhada. O pessegueiro, porém, erguia-se orgulhosamente verde, a copa a sombrear a janela daquele que um dia fora o seu quarto. Quando era menina de caracóis loiros tinha por costume plantar todos os caroços de pêssego depois de comer, em mordidelas ávidas, o fruto amarelo de laivos arroxeados. Um deles germinara e crescera aquela árvore, quem sabe para proteger a janela onde se debruçara a fumar os primeiros cigarros e a olhar o céu em sonhos de adolescente. Já há muitos anos que os pais se tinham mudado para uma casa maior, mais bonita e confortável, rodeada de árvores e vinhedos. Era naquela, no entanto, que ecoavam as suas gargalhadas de menina, o bater acelerado do coração na primeira paixão, aos 13 anos, as vozes alegres das mulheres da casa a cantar na cozinha. Tudo tão vívido que lhe chegou às narinas o cheiro dos biscoitos de limão alinhados em tabuleiro untado com manteiga, a cada Domingo.

Abandonadas, as paredes brancas escureciam, as contras  das janelas empenavam e as portas, entreabertas, deixavam entrar as trepadeiras daninhas que se iam enroscando nas lembranças sem as conseguirem estrangular.


quarta-feira, agosto 19, 2015

Luz



“Não acendas a luz, a tua pele ilumina-me! Amámo-nos a noite inteira e de manhã dizes: “Amo-te mais do que nunca.” Desde o princípio, foi a exaltação, a desordem, a bebedeira dos sentidos, a concentração natural no que desejamos agora, a música toda dos corpos surpreendidos. Mas hoje não tenho palavras. Apenas idade, raízes que rebentam. Encontrei em ti um guia para a minha queda, que talvez exista, perfumada e ondulante.”


Casimiro de Brito





Acende a luz! Quero ver o seu reflexo em cada recanto da tua pele! Beijámo-nos, tocámo-nos, fundimo-nos um no outro horas a fio e não precisas dizer nada... Somos loucura, emoção, sobressalto permanente, numa dança tribal ao ritmo de tambores em corpos aturdidos.

Hoje, descobri as palavras para te definir e, no entanto, não as vou dizer. Vou apenas afundar o meu rosto no teu peito, imprimir os meus traços na tua pele. Encontrei em ti a parceria perfeita para a minha queda, que é real, doce e perturbante.

Maria Eu

terça-feira, agosto 18, 2015

Salvamento de sapo atleta em fim de tarde



Era uma vez um sapo atrevido. Veio de mansinho, aproximou-se da beira da piscina e "pimba"! Lá se lançou em salto esmerado, qual atleta olímpico.



Sem meias medidas, cruzou a água azul num estilo perfeito. Mariposa, pois então!



No final da prova, cansado que estava, nem sair podia. Qual heroína de BD, empunhei a rede e zás, num instante se viu a secar-se na relva.



Os Sapos

Enfunando os papos,
Saem da penumbra,

Aos pulos, os sapos. 
A luz os deslumbra. 
Em ronco que aterra, 

Berra o sapo-boi: 
—Meu pai foi à guerra! 
—Não foi! —Foi! —Não foi! 

O sapo-tanoeiro, 
Parnasiano aguado, 
Diz: — Meu cancioneiro 
É bem martelado. 

Vede como primo 
Em comer os hiatos! 
Que arte! E nunca rimo 
Os termos cognatos! 

O meu verso é bom 
Frumento sem joio 
Faço rimas com 
Consoantes de apoio. 

Vai por cinqüenta anos 
Que lhes dei a norma: 
Reduzi sem danos 
A formas a forma. 

Clame a saparia 
Em críticas céticas: 
Não há mais poesia, 
Mas há artes poéticas... 

Urra o sapo-boi: 
—Meu pai foi rei —Foi! 
—Não foi! —Foi! —Não foi! 

Brada em um assomo 
O sapo-tanoeiro: 
— A grande arte é como 
Lavor de joalheiro. 

Ou bem de estatuário. 
Tudo quanto é belo, 
Tudo quanto é vário, 
Canta no martelo. 

Outros, sapos-pipas 
(Um mal em si cabe), 
Falam pelas tripas: 
—Sei! —Não sabe! —Sabe! 

Longe dessa grita, 
Lá onde mais densa 
A noite infinita 
Verte a sombra imensa;
Lá, fugindo ao mundo, 
Sem glória, sem fé, 
No perau profundo 
E solitário, é 

Que soluças tu, 
Transido de frio, 
Sapo-cururu 
Da beira do rio. 

Manuel Bandeira


Estranheza



Eram-lhe estranhas as lágrimas que sulcavam o rosto fechado. Nada sabia do desgosto. E, porém, o sorriso que costumava habitar-lhe os lábios desaparecera e empapava-se-lhe o vestido de tantas as gotas de água que lhe brotavam dos olhos. 


segunda-feira, agosto 17, 2015

Um chumbo na asa

(Alex Crétey)


Maria Antónia entreabriu a porta do amplo terraço com o máximo cuidado. Tinha por visita, usualmente pelo meio da tarde, duas rolas de papo branco e asas mosqueadas. Saía devagar, não fosse espantá-las, e sentava-se na espreguiçadeira, livro nas mãos, a perder-se nas palavras embalada pelo arrulhar doce.
Estranhou não as ver no poiso habitual, um fio eléctrico que atravessava a quinta, bem no canto esquerdo Norte, rasando o catavento em forma de galo altivo. Sentou-se mas a leitura parecia não lhe prender devidamente a atenção sem a música costumeira das aves. Inquietou-se.

Eis que um ruído seco, logo seguido de outros semelhantes, lhe feriu o ouvido que procurava o canto. Caçadores! Abrira a caça às rolas… Ferida nas asas que sentia por dentro, entrou em casa. Não voltaria a ler na varanda. Não este Agosto!


sábado, agosto 15, 2015

Filomena

(Pablo Picasso)

Filomena levanta-se a custo do sofá ao chamamento da filha para a mesa do almoço. Ampara-se com as duas mãos nos braços forrados a tecido verde musgo, balança um pouco o corpo e, murmurando “oupa”, ergue-se. Vai andando devagar, a mão direita espalmada nas costas. Doem-lhe “as cruzes”.
- Mãe! Oh, mãe! Então? Olhe que a sopa arrefece!
A filha não se dá conta como lhe é penoso andar, agora, nem que seja aquele bocadinho de corredor, da sala à cozinha. Mas é bom tê-la ali, ainda que por pouco tempo. Nas férias vem sempre e alivia-lhe a tarefa de cozinhar. Já pouco faz, comparando com o tempo em que os horários do marido a forçavam a pôr o pequeno-almoço na mesa às 6:00 horas, o almoço ao meio-dia e o jantar às 19:30. As filhas, essas tinham abalado cedo, logo que fizeram a escola primária. Na aldeia não havia como estudarem. Doutoras, as suas meninas. Deram-lhe netos e bisnetos que vinham de quando em vez alegrar a casa grande, agora vazia de traquinices e jogos infantis. Intimamente, porém, cansava-se depressa de tanta confusão. Os mais pequenos não se aquietavam com nada a não ser com aquelas tabletes, ou lá como lhes chamavam, aquelas maquinetas fininhas ondem se via tudo, até o primo Zé, desde Berlim. Muito bonitos mas atrapalhavam-lhe o sono da tarde e insistiam em ver desenhos animados na hora sagrada da telenovela (perdera o primeiro beijo de Paulo e Mariana). E, afinal, nem lhe davam os beijos todos que ela lhes pedia, correndo para os braços da mãe.
- Mamã, a bivó está-me sempre a chatear!

Era bom, mas pouco de cada vez.


quarta-feira, agosto 12, 2015

Pássaros

(Celeste Henriquez)


- Pai, venha para dentro! Olhe como tem os braços arrepiados de frio! Vá, venha!
- Senta-te tu aqui um bocadinho. Estou a contar os pássaros.
- A contar os pássaros? Ora, o disparate! Eles são tantos que nunca lhes vai ter a conta.
- Anda para aqui e vais ver como faço. Se te sentares do lado da grade, tiras-me o vento.

Puxou uma cadeira e sentou-se. O rosto enrugado do pai abriu-se num sorriso.

- A minha menina! Estás cá hoje?
- Estou, pois, desde há uns dias. Não se lembra? Então, ontem, até fomos dar um passeio pela quinta. Fomos ver as uvas a aprontarem-se para a vindima.
- Estava aqui a pensar nos pássaros. Nos pássaros e nos filhos deles. São amigos dos filhos. A minha mãe não gostava de mim.
- Como assim, não gostava de si? Gostava, claro!

A cara dele ficou sombria e os olhos encheram-se-lhe de lágrimas.

- Eu sei que não gostava. Batia-me. Uma vez, de tão cansado de apanhar que eu estava, fui procurar um poço, daqueles muito fundos, para me atirar.
- Não diga isso da avó! Ela tinha muitos filhos, estava cansada, era só isso.
- Os outros podiam fazer tudo, eu não. Apanhava logo. (...) Já viste aquela rolinha? Olha que linda, ali a arrulhar. Vieste agora, foi? Ficas para o jantar?

Ficaram ali, a ver os pássaros. Afinal, não era preciso saber contar e ela tirava-lhe o vento que atravessava as grades.


terça-feira, agosto 11, 2015

Azul cobalto

(Joan Miro - Blue III)

Ajoelhara-se no chão, frente ao roupeiro, para melhor abrir a gaveta de baixo. Começou por puxá-la sem grande força mas concluíra que, ou estava empenada por não ser aberta há muito tempo, ou havia alguma coisa a bloqueá-la. Com ambas as mãos sacudiu o puxador em movimentos enérgicos até que sentiu uma leve cedência em simultâneo com o esvoaçar de um papel dobrado em direcção aos seus joelhos. 
Era isso, então! Um papel!
Pegou-lhe. Desdobrado, revelou ser uma carta, escrita a caneta de tinta azul cobalto, em letra elegante e notoriamente feminina. 


Meu amor

Não vou escrever-te. O que escreveria, afinal, quando já te disse tudo? Dizer-te do meu coração em sobressalto ao (pre)sentir o teu perfume, da doçura na minha boca depois dos teus beijos, das mãos enlouquecidas nas horas roxas do sexo.
As palavras, meu amor, quero-as ditas.

Digo-tas amanhã, às seis da tarde, no banco sobranceiro ao rio.

Nenhuma assinatura. Uma carta numa gaveta, apenas.
Reparou que a madeira se inclinava ligeiramente para a direita. Voltou a dobrar o papel pelos vincos e viu que se encaixava perfeitamente na falha. Ao deslocar-se, tinha deixado a madeira com o empeno original. Fora um instrumento, afinal, aquela carta. Servira para endireitar a gaveta, nem mais, nem menos.
Retirou as roupas de Inverno da mãe. Estavam em bom estado para doar. Fechou a gaveta, agora com a carta dobrada no sítio preciso para que deslizasse na perfeição, levantou-se, pegou nas roupas e saiu. 




domingo, agosto 09, 2015

Da importância das mãos

(Chaekkyung em DeviantArt)

Ardente, o dia. Chegam fiapos cor de carvão trazidos pelo vento errático que cobrem o chão do terraço, o jardim, a água do poço. Há um corrupio de helicópteros, o ruído dos rotores das hélices a sobrepor-se ao habitual sossego do campo. É certo que os cães ladram ainda mais e os galos, estranhamente, cantam a espaços, estridulantes. Abafa-se. O céu, coberto de fumo, não deixa antever o sol que apenas se adivinha brilhante pela elevada temperatura. Maria Antónia vê a serra em chamas e entristece-se. Quantas vezes calcorreara os seus caminhos íngremes de mão dada com o pai. 
- Olha, menina, um bufo!
- O que é um bufo, pai?
- É aquele pássaro cinzento, ali, parecido com uma coruja.
- E aquilo ali, é o quê?
- É um lagarto, não lhe vês as escamas do dorso e a cauda? Deve estar a caçar algum insecto, por isso não lhe vemos a cabeça, escondida no meio da urze.
E era um sem fim de perguntas, a mão sempre apertada naquela outra, forte.
- Não há cobras aqui, pois não, pai?
- Ora, menina, se as houver eu dou-lhes com um pau que elas fogem logo! 
E ela acreditava que nunca, enquanto tivesse a sua mão assim segura, haveria perigo ou acidente que a atingissem.
Queimada, agora, a serra. Talvez porque já não havia nenhuns dedos à volta dos seus.


sábado, agosto 08, 2015

Puzzle

(makinglove - DeviantArt)


Há pessoas como peças de um puzzle. Umas parecem ter sido feitas com o fito de que outras se lhes encaixem na perfeição. 


sexta-feira, agosto 07, 2015

Balouço

(imagem do filme Vale Abraão, daqui)

O sol tinha-lhe mordido a pele com volúpia, deixando-lhe as marcas dos dentes nos mais íntimos recantos do pescoço, no recorte do colo... Afundara-se no vale em passos irregulares, contornando vinhas, seguindo borboletas, parando ao voo de um melro. Lembrara-se de Ema, tão bela, a mulher de Vale Abraão. Hesitante no passo, curiosa das coisas da vida. "Um estado de alma em balouço", não era, Agustina? Seria Ema, por instantes. Procurou no bolso o lenço, não de pano, como o dela, mas de papel. Abriu-o e estendeu-o no xisto de um socalco. Com um suspiro, sentou-se. Não havia vindimadores. Setembro ainda tardava. Havia aquele sol abrasador, o azul do rio e a dolência de uma canção longínqua, talvez de uma mulher na lida do campo, cuidando da horta, bem rente aos vinhedos.
Regressara com a primeira brisa, já o sol mergulhava nos montes. Arrepiara-se. Talvez fosse melhor ir buscar um casaco. Afastara-se do rio. Ao contrário de Ema que morrera nele, era à água ora verde, ora azul, que ia buscar a sua força.