segunda-feira, dezembro 28, 2020

José e Maria


(Yvonne Boag)

José vira Maria pela primeira vez numa feira semanal. Rapariga trigueira, com uma trança a contornar-lhe o rosto de olhos grandes e expressivos, olhara-o sem intenção e corara, ao sentir que era observada.

Fora amor à primeira vista e, depois de um namoro de alguns meses, José atreveu-se a falar com o pai, pedindo-a em casamento.

Houve boda e a lua de mel foi passada no quarto, a não ser para irem buscar qualquer coisa para comer à cozinha, não se largavam. Maria nem imaginava que se podia gostar tanto de não sair de um quarto durante 3 dias!

Nem um ano passou quando nasceu Inês. Os dias corriam mansos, mas humildes. Eis senão quando se anunciou outra criança. Fizeram as contas à vida. Dezembro estava já ao virar da esquina e havia que viajar se era para mudarem de terra. Não foi de burro, a mudança, que o destino era distante e tinham que levar os parcos haveres para a casa prometida. O velho camião do António Chapo acomodou a família e Maria, entalada entre José e a porta, olhava a paisagem a desembrulhar-se, feita de matas, rios, campos de milho, enquanto Inês dormia sobre a sua barriga  inchada de 5 meses.

Chegados, era noite, só as estrelas brilhavam e, não foram os faróis, nem para estenderem os colchões teriam luz.

Adezembrou. José saía de madrugada e voltava para jantar, exausto do novo trabalho. Quase nem se dava conta do quanto Maria embarrigava. Naquela noite de 24, disse-lhe ela: Ai, José, que vai nascer!

E foi ele, José, que ajudou ao parto de uma menina pequena, em esperneios e choros tão altos que as vizinhas vieram e trouxeram mantas tricotadas, leite com mel e caldos de galinha. E todas diziam que aquela menina tinha uma grande força, e haveria de ser uma grande mulher.

Ana, foi o nome que lhe deram. Ana, a guerreira, assim a conheceram.


(Madredeus - coisas pequenas . o paraíso . haja o que houver)

segunda-feira, dezembro 14, 2020

Saudade


 (Jessica Tremp)


A mordedura insidiosa da saudade deixa um sabor agridoce a sangue, como  se tivesse afiado propositadamente os dentes para os cravar no coração. 


                          (Paul Desmond Feeling Blue 1996)

sábado, dezembro 05, 2020

Do correr dos dias

 

O dia acordou gelado e branco. Nem os pássaros ousam cantar, aninhados nos castanheiros quase despojados das folhas, que agora atapetam o campo.

Um cão ruidoso diverte-se a perseguir a própria cauda provocando gargalhadas a um grupo de crianças, vigiadas de perto pelo olhar atento e terno de uma senhora de cabelos brancos.

Ao longe, na curva mais pronunciada da estrada que bordeja o terreno, ouvem-se, de quando em vez, os pneus de um automóvel em gritaria, queixando-se do excesso de velocidade, em aderência forçada ao asfalto.

Nuvens carregadas de cinzento trazem bátegas grossas que o vento transforma em látegos.

O cão corre aos zigue-zagues, e as crianças arrastam a senhora pela mão, entre gritinhos estridentes.

Restam os castanheiros, quase desnudos, estoicos, debaixo da chuva grossa e fria.


(Cannonball Adderley - Autumn Leaves)

sexta-feira, dezembro 04, 2020

Sei um ninho / Sei um rio

 

Sei um ninho

E o ninho tem um ovo

 E o ovo, redondinho,  

Tem lá dentro um passarinho

Novo.


Mas escusam de me atentar:

Nem o tiro, nem o ensino

Quero ser um bom menino

E guardar  

Este segredo comigo

E ter depois um amigo 

Que faça o pino

A voar…

Miguel Torga



(Amy Judd)



Sei um rio

E o rio tem ondas

E as ondas, redondas,

Têm dentro os teus olhos

Doces

 

Não me peçam que os revele

Não os digo, ou os indico

Serei mulher de sigilo

Fica o lugar comigo    

E depois terei uns olhos

Em que se afundem

Os meus

Maria Eu



(Yann Tiersen - Sur le fil piano)

domingo, novembro 15, 2020

Coração






Há um sinal pequeno
uma estrela do lado 
esquerdo do peito

Refulge, a estrela
sinal pequeno do lado
esquerdo do peito

Um coração bate
por baixo da estrela

O coração refulge.


                                
(Dhafer Youssef - Whirling Birds Cerimony)

quinta-feira, novembro 12, 2020

Estranhava-se

 


Eram as folhas. As folhas tinham caído sem pré-aviso e faziam um ruído debaixo dos pés dos transeuntes que soava ao que mil coelhos produziriam a comerem, cada um, uma cenoura.

Irritavam-na ruídos que se sobrepunham aos habituais: vozes, risos e choros de crianças, um ou outro automóvel, a chuva a bater nas vidraças…

Talvez fosse da cada vez mais insidiosa solidão, fruto de um tempo a que chamavam de “novo normal”, essa irritação. “Novo normal”! Como se se pudesse apelidar de normal, fosse ele novo ou velho, à morte da vida social, à separação das famílias, à reclusão forçada.

Estranhava-se. Estranhá-la-iam?


(Alex & Will Delta Blues - Hard Times)

quinta-feira, outubro 29, 2020

Partir

(imagem daqui)

Havia anos que Maria Clara planeava cuidadosamente a sua fuga. Sabia, até, de cor, o que levar na pequena mala azul. Duas mudas de roupa, escova de dentes, creme de rosto, perfume, dois livros (aí, seria difícil escolher) e o poema que um dia lhe escreveram , a caneta azul, numa folha amarelo-desmaiado. 

Foi num dia como outro qualquer. Fora trabalhar cedo, almoçara com as amigas, regressara a casa à hora habitual, cumprimentara a vizinha do lado enquanto apanhava a roupa, iniciara o jantar... e, de repente, desligou o fogão, dirigiu-se ao quarto, abriu o armário, pegou na mala azul e saiu.

Não houve bilhete de despedida, nem sms, nem telefonema, apenas um pedaço de carne mal passada na frigideira.


(Esther - YannTiersen)

domingo, outubro 25, 2020

O Amor tudo cura

(John Hoppner)

Naquele tempo, era a escuridão. Apenas o brilho pontual no olhar de um ou outro sonhador servia de alento a todos quantos acalentavam a esperança de, um dia, verem a luz de um sol que lhes contavam dar cor aos dias e calor à pele.

Andava, então, Cupido em alegres brincadeiras, ignorante, ainda, da existência de Psique. Belo e estouvado, corria pelas nuvens, quando uma delas, de formato irregular, lhe travou a corrida, fazendo-o tropeçar e cair, sem lhe dar tempo a agitar devidamente as asas e voar. Escusado será dizer que a queda foi abrupta e, aterrar num planeta escuro e desconhecido deixara-o confuso, para além de dorido.

Valeram-lhe dois pontos de luz até aos quais se guiou, num voo de altos e baixos, em ziguezague, os olhos de Psique! 

 para a ver iluminada, Cupido encontrou forças para invocar os Deuses e dar à Terra a luz do Sol. 

Ficou, assim, provado que o amor pode curar todos os males, até o das trevas. 



                                 

terça-feira, outubro 06, 2020

Parcimónia


Geria a sua vida com parcimónia. Cérebro com coração subordinado, dias a compasso certo, guarda roupa alinhado e discreto, olhar contido.

Um dia, comprou um par de botas vermelhas.



(Pamela Sienna)

Parcimónia? Definam parcimónia!


quarta-feira, setembro 09, 2020

Trazido pelo vento - último

 Não fora aquela varanda debruçada sobre a rua, ainda teria o meu coração intacto.

Amiga, mas para que querias tu um coração desses?

quinta-feira, agosto 27, 2020

Trazido pelo vento VII

 Este ano, foi míldio na vinha, cancro nos castanheiros e psila africana nos citrinos!


Ai, homem, com tanta doença nas culturas, que não te dê a ti o bériberi! 

domingo, agosto 16, 2020

Trazido pelo vento II


O problema não é usar a máscara cirúrgica. Pior do que isso, é não poder tirar a máscara por detrás dessa...

quarta-feira, julho 29, 2020

Ver-se por dentro




Maria Clara respirava devagarinho, olhos fechados na penumbra do quarto, o corpo suado da noite quente. Quem a visse diria que ainda dormia, de tão quieta. 

Clarinha! Clarinha! Oh, filha, até fiquei preocupada de te ver assim!
Estava a ver-me por dentro, mãe!

Vinham-lhe à memória as palavras da mãe e a gargalhada sonora que soltara com a resposta, enquanto se via por dentro, tal como em menina.


(Ludovico Einaudi-Fly)

quinta-feira, julho 23, 2020

O Verão acontece



Era o tempo do calor, das noites mal dormidas na ânsia da manhã fresca e das vozes alegres do José, da Maria e do Francisco junto à sua janela. A nespereira já sem frutos, mas explodindo em verde, o Pantera a arranhar-lhe a porta do quarto, pronto para lhe saltar aos ombros e mostrar a língua rosada como que a fazer-lhe caretas.
Há quantos anos fora? Quantos Verões? 
As brincadeiras mil em correria pelos campos amarelados de malmequeres que se transformavam em coroas de reis e rainhas, os braços grossos e longos das oliveiras que lhes serviam de casa e castelo, os muros vencidos à custa de arranhões e feridas nos joelhos, a leveza dos dias, embora longos, alimentada a café com leite e pão com marmelada caseira.

O Verão acontece, ainda. A memória enche-o de cheiros, vozes e rendilhados recortes.


(Debussy - Deux Arabesques (Harpe) - Héloïse de Jenlis)

terça-feira, julho 21, 2020

O lugar certo



o lugar do amor
é aqui pai

o lugar certinho para te beijar
sem ter medo
que não tenho
sabes bem
só tenho medo do que não tem amor
e fujo para os teus olhos
quando vejo sombras em lugar de sol

o lugar do amor
é aqui

li num livro que não é teu
é de um outro António que fala de coisas
como tu
ou tu é que falas como ele

o lugar certo
para dormir nos teus braços
na "ignorância da morte"

António Teixeira Castro



(Joan Miró)


De quando em vez, vinha o eco do riso, a lembrança do amor que nunca morre. O cheiro a after-shave (que isso de perfumes sofisticados, filha, não é para mim) e a café, o abraço apertado, as mãos fortes aternurando-se no seu cabelo. Fora ali, o lugar do amor...



(Yann Tiersen - The Long Road)

quinta-feira, julho 02, 2020

Da espera



Desde sempre que Maria se habituara a esperar. Ajustava o corpo ao sofá que começara por ser castanho-escuro com flores e, de ano para ano, clareara até um bege desmaiado, onde as ramagens teimavam em resistir.
Esperara por José, quando ele se atrasava para o jantar. Esperara por ele, ainda, noite dentro, adormecendo em leituras longas. Esperara, em vão, quando ele saiu para uma viagem curta de trabalho e nunca mais voltou.
Esperara pelos filhos, nos dias que o verão prolongava até as estrelas esmaecerem. Esperara por eles sem sucesso, tantos fins-de-semana, a solidão a morder-lhe os olhos em lágrimas.
Esperara pela morte, sem medo, até que ela veio, em jeito terno, levando-a ao colo.

Joana apaixonou-se pelo sofá, assim que o viu na montra da loja do Sr. Joaquim dos estofos.
Tão bom que deve ser para esperar, pensou!


(Mísia - Sem saber)

terça-feira, junho 09, 2020

Permanência


(Marc Chagall)

It is here

What sound was that?
I turn away, into the shaking room.
What was that sound that came in on the dark?
What is this maze of light it leaves us in?
What is this stance we take,
To turn away and then turn back?
What did we hear?
It was the breath we took when we first met.
Listen. It is here.
Harold Pinter

ESTÁ AQUI
Que som foi esse?
Viro-me para a sala trémula.
Que som foi esse que veio com a escuridão?
Que labirinto de luz é este em que nos deixa?
Que atitude adoptamos,
Fugir para depois regressar?
O que é que ouvimos?
Foi o suspiro que demos quando nos vimos pela primeira vez.
Ouve. Está aqui.
Harold Pinter traduzido por Maria Eu


domingo, maio 24, 2020

Davam-se as mãos


(Fabian Perez)


Dava-lhe a mão
como se nela estivesse
o mundo inteiro

Segurava-lhe a mão
como se dela viesse
o mundo inteiro

E havia museus
Filmes em tela gigante
Livros antigos
Passos de milongas

Davam-se as mãos
Davam-se, inteiros.

Maria Eu



(Por una cabeza - Carlos Gardel)

quinta-feira, maio 21, 2020

Avatares

      (imagem daqui)


Há algum tempo que se abrigara no espaço quarto, sala, cozinha. Os ecrãs tornaram-se a ligação ao trabalho, à cultura, às pessoas. Tudo lhe parecia estranho, anódino. Para além de que, as pessoas tinham o estranho hábito de se esconderem por detrás de avatares. Deu-lhe para analisar os ditos, numa das reuniões intermináveis (essas, continuavam a arrastar-se, tal como as presenciais, com os discursos repetidos, empolados e narcisistas do costume).
O Dr. Reinaldo de Matos, de rosto pálido e boca cerrada, sempre enfatiotado e com o cabelo cuidadosamente alinhado, aparecia com um boneco bronzeado, cabelo ondulado e crespo e uma t-shirt preta; a Dr.ª Susana, da contabilidade, a morena de rabo-de-cavalo dos fatinhos pretos, azuis, ou castanhos, óculos transparentes e sapatos de meio tacão, estrelava um loiro platinado, óculos escuros e uma blusa verde alface com folhos; por último, a Ritinha! Ah, a Ritinha costumava rir-se da Dr.ª Susana a toda a hora. Ai que direitinha, ai que passadinha a ferro, ai que óculozinhos sem sal! Pois não é que o seu avatar é uma rapariga loira, de rabo-de-cavalo, com blusa branca e fato saia e casaco preto?
Só o José, das compras, lhe fazia companhia com a câmara ligada. Grande José!
Será que ele também ouve o "Va Pensiero"?




(Coro virtuale "Va pensiero" ("Nabucco" di G. Verdi) - International Opera Choir)

terça-feira, maio 12, 2020

Dos amores antigos

(imagem daqui)


Enquanto ele lhe entrançava a ternura no cabelo, os olhos de ambos reflectiam a luz de um amor antigo.


segunda-feira, abril 20, 2020

Constatações prosaicas




Da varanda, estranha-se o silêncio da praça.

Há uma espécie de angústia a tolher os olhares dos vizinhos, em cumprimentos mais calorosos do que aqueles a que nos acostumaram.

“Vi um menino, mamã!” -ouve-se do andar de cima –“Vi-o a correr com o cão! Também quero ir à rua!”

Nem as gaivotas se atrevem a pousar junto ao lago, depois de mais de vinte quilómetros de voo. Nem elas se fazem ao céu desde a praia.



domingo, março 01, 2020

Improbabilidade


(Foto in - Arthur Edelman @iamarthuredelman)


Há muito tempo que Joana estava posta em sossego. O coração batia sempre ritmado, a um compasso saudável e controlado. As rotinas diárias eram cumpridas sem entusiasmo, mas com a dedicação suficiente para que ninguém pudesse acusá-la de negligência ou preguiça. Mesmo a casa era mantida escrupulosamente arrumada e limpa.
De entre as rotinas, a ida à biblioteca do pequeno jardim, logo ao virar da esquina do seu local de trabalho, era a favorita. Mesmo em pleno Inverno, o abrigo de vidro grosso permitia-lhe uma leitura tranquila.
Até que uma dia... Um dia, entra pelo abrigo dentro António José. Homem de grande estatura, cabelo comprido, grisalho, apanhado num rabo de cavalo, a encimar o rosto tisnado, marcado por algumas rugas, vestia de couro da cabeça aos pés. Só depois Joana o ligaria com a moto pesada estacionada no passeio em frente quase todos os dias. E não é que o homem tropeça, caindo aparatosamente aos seus pés, interrompendo-lhe a leitura da poesia de Maria Teresa Horta?
“Morrer de amor ao pé da tua boca (...)”
Estas palavras ainda nos olhos e António José a levantar-se, na sua frente, tão perto que os seus rostos quase se tocavam.
Não se sabe o que disseram, nem como ambos, de tão diferentes, se demoraram em palavras, sorrisos, e num apertar de mãos a eternizar-se na despedida. Sabe-se, sim, que Joana se atrasou naquele dia, contrariando a rotina, mas que as tarefas foram realizadas com tal entusiasmo que estavam prontas muito antes da hora de saída.



(JOHN LEE HOOKER - BAD LIKE JESSE JAMES)

quarta-feira, fevereiro 26, 2020

Alegria

(Ana Luísa Pinto)


Havia uma menina na varanda, toda ela graça e alegria. Era uma varanda antiga, numa casa grande, pintada de branco, escancarada de grandes janelas envidraçadas. Quando o sol vinha e a cobria de beijos, não havia vidro que não brilhasse, à semelhança dos olhos da menina.
Nem no rigor do Inverno deixavam de se ouvir as gargalhadas límpidas, percebendo-se, na amurada, o gorro vermelho de lã encimado por um pompom multicolor.
As árvores, embora a ritmo mais moderado, iam crescendo com ela (Clarinha, ouvira chamar-lhe) e pareciam inclinar-se para servir-lhe de protecção. Permitiam-lhe, ainda, ensaiar cantos, em coro com o chilreio do pássaro que, todos os anos, construía o ninho nesses ramos.
Frondosas, as árvores, fechadas, as vidraças, calado o pássaro, ausente, Clarinha. 
Foram tempos estranhos aos passantes, habituados que estavam a abrandarem o passo, à escuta.
Até que correu notícia do regresso. O pássaro desatou num canto tão melodioso e ininterrupto, que era impossível não parar a ouvi-lo. Ao fundo, uma voz alegre de rapariga, toda ela graça e alegria.


(Lola Marsh - She's a Rainbow)

domingo, fevereiro 23, 2020

Depois da luz, o abismo.

Benoit Rousseau

A luz da manhã, crua e enfarruscada, deixava a olho nu a sordidez do lugar que, durante a noite, lhe parecera belo e cálido. A cadeira onde se sentara, com ela ao colo, entre beijos e goles de vinho tinto, devia ter sido abandonada nalguma mudança de casa, contando com três protectores nas suas quatro pernas e revelando ferrugem corroendo as travessas das costas. Do candeeiro, agora apagado, restava a sombra esquálida, contrastando com a luz amarela ainda agora projectada nos amantes enlaçados. Deixou a garrafa vazia escorregar para o cimento marcado pelos milhares de percursos por ali calcorreados. Afinal, ela partira antes do último gole, antes da última carícia.
Levantou-se vagarosamente, a tristeza agarrada à pele como se tivesse sido tomado por um imenso cansaço, um desalento antigo de tanto doer. A ponte estava ali. Debruçou-se nela. O rio corria, impetuoso, formando ondas, galgando pedras. 
O rio... O rio ali tão perto...


(The Be Good Tanyas - Waiting Around to Die)

segunda-feira, fevereiro 17, 2020

Pontes

                                                                (Tony's world)

À medida que a saudade ficava mais funda, ia construindo uma ponte mar adentro, na esperança de que houvesse outra praia, onde outra ponte estivesse a ser construída. Não tardaria e seriam uma só.


(Losekes Blues Gang - That Kind of Feeling)

domingo, janeiro 26, 2020

Da reencarnação do Amor

(Raffaello's "The Triumph of Galatea" - detail)

Naquele tempo, andavam os Deuses em plena época criativa, pondo e dispondo da acção e da palavra para que o Livro dos Livros lhes servisse de memória, quando Hermione e Hispério se cruzaram. Iam ambos a caminho do mercado de escravos, ela, prisioneira de guerra, ele, nado e criado na casa de senhores caídos em desgraça do Rei e, por isso, enviado para venda. Cabeças baixas, nem se teriam olhado, não fosse o pantomineiro Cupido ter desatado a treinar a pontaria e crivá-los de setas. 
Foram tantas e tão certeiras que ficou escrito ser destino de ambos apaixonarem-se a cada reencarnação, mau grado esta primeira vez não passasse de olhares lânguidos e suspiros, logo cortados pela maior licitação que não calhou ser do mesmo comprador.
Mas Deuses são Deuses e o Livro dos Livros assim o ditava: A cada vida, Hermione e Hispério, não importava onde nascessem, ou como se chamassem, apaixonar-se-iam, levando menos ou mais longe o seu amor.

Sabe-se que, ainda há pouco, um homem e uma mulher se cruzaram e souberam que estavam predestinados a amarem-se.



 The Passion of Andalucía

terça-feira, janeiro 07, 2020

Arritmia

(Henri Matisse)


Havia anos, Maria Clara tinha entregue o seu coração a Pedro. Era um coração quase perfeito, não fora a súbita arritmia que o acometia sempre que na presença dele.
Levara-lho assim, vermelho vivo e arrítmico, num dia de frio invernoso, encostando o peito ao dele até que os batimentos se acertassem naquele peito que não era o seu. Não tardou em descobrir a falta que lhe fazia, em estando Pedro ausente. Parecia que uma dor muito funda se aninhava bem ali, no lugar vazio.
Quando, tempo volvido, lhe bateu um mensageiro à porta com uma encomenda cuidadosamente embrulhada numa caixa forrada a cetim preto, Maria Clara percebeu que, rutilando no fundo negro, um coração lívido, com uma ferida profunda de onde escorria sangue, era o seu. Dissera-lhe o portador que o homem de quem tomara a caixa lhe pedira que a informasse que não suportava mais o bater de dois corações que não tinham o mesmo ritmo.
Levou-o para o quarto, sentando-se com ele no regaço, hesitando em retomá-lo, quase como se temesse rejeitá-lo, de tanto que se lhe estranhara. O implante revelou-se penoso, mas não tardou que um súbito aconchego lhe consolasse  corpo e alma. Afinal, um coração só pode partilhar-se com alguém que saiba como dois ritmos em descompasso são predispostos às mais assombrosas melodias.



sexta-feira, janeiro 03, 2020

Da Felicidade

(Mark Rothko)


Felizes aqueles que fazem dos seus dias luz
Encanto de quantos se entregam à dor
Luzeiro dos tristes e dos alegres
Intensidade 
Cor
Inspiração
Deleite
Anelo
Dádiva
Epifania






(There's a Light - A long lost silence)

quarta-feira, janeiro 01, 2020

Sem Natal



E de repente, já não era Natal. Talvez não o tenha sido, nem a 25. Lá fora, a tangerineira substituíra o pinheiro manso que encantara gerações e o presépio jazia, deserto de mãos que o dispusessem, numa caixa de cartão.

Já viste o presépio, filha? E as luzinhas? Estou ansiosa por que venham os meninos para ver como reagem!
Alegrava-se na expectativa dos olhos imensos dos mais novos, embora franzisse um pouco o sobrolho quando o Menino Jesus ia parar ao lago, em banho prolongado, e as ovelhas ganhavam asas, pousando nos telhados das pequenas casas.
Bivó, foste tu que apanhaste o musgo?
Bivó, quando vem o Menino a sério pôr as prendas?
Bivó, desculpa! Não “resiti” e comi um Pai Natal da árvore!

Este ano, não houve Natal…