domingo, outubro 30, 2016

Constelação



Maria Antónia costumava olhar-se ao espelho regularmente para verificar se a constelação de sinais estrelados na sua pele branca se completava. Havia um trapézio por acabar na coxa direita e, sem saber bem porquê, teimava em julgar que um dia seria assinalada com aqueles que faltavam.
Até que encontrou José e se amaram em horas longas de paixão. Foi num desses dias, em que a sua coxa direita repousava, desnuda, junto à coxa esquerda dele, que viu, claramente vistos, os sinais que lhe faltavam bem ali, na pele branca daquele homem, completando o trapézio e luzindo uma cauda. A pele dela e a dele, um só céu.


segunda-feira, outubro 24, 2016

Dormir, talvez nem sequer sonhar

(Francine Van Hove)

Não venhas sentar-te à minha frente, nem a meu lado;
        Não venhas falar, nem sorrir.
Estou cansado de tudo, estou cansado
        E quero só dormir.
Dormir até acordado, sonhando
        Ou até sem sonhar,
Mas envolto num vago abandono brando
        A não ter que pensar.
Nunca soube querer, nunca soube sentir, até
        Pensar não foi certo em mim.
Deitei fora entre ortigas o que era a minha fé,
        Escrevi numa página em branco, «Fim».
As princesas incógnitas ficaram desconhecidas,
        Os tronos prometidos não tiveram carpinteiro
Acumulei em mim um milhão difuso de vidas,
        Mas nunca encontrei parceiro.
Por isso, se vieres, não te sentes a meu lado, nem fales,
        Só quero dormir, uma morte que seja
Uma coisa que me não rale nem com que tu te rales —
        Que ninguém deseja nem não deseja.
Pus o meu Deus no prego. Embrulhei em papel pardo
        As esperanças e ambições que tive,
E hoje sou apenas um suicídio tardo,
        Um desejo de dormir que ainda vive.
Mas dormir a valer, sem dignificação nenhuma,
        Como um barco abandonado,
Que naufraga sozinho entre as trevas e a bruma
        Sem se lhe saber o passado.
E o comandante do navio que segue deveras
        Entrevê na distância do mar
O fim do último representante das galeras,
        Que não sabia nadar.

Fernando Pessoa





Inadvertidamente, entra-lhe o cansaço porta adentro. Não aquele cansaço morno depois das tarefas diárias, mas uma dormência que vem de dentro para fora, um desejo enorme de fechar os olhos às minudências da vida, às horas passadas numa voragem que esgota o corpo e a alma. Apetece-lhe não ser mais ombro e ser ela a encostar a cabeça e repousar.

terça-feira, outubro 18, 2016

Dorme, meu menino

O Somno de João

O João dorme... (Ó Maria,
Dize áquella cotovia
Que falle mais devagar:
Não vá o João, acordar...)

Tem só um palmo de altura
E nem meio de largura:
Para o amigo orangotango
O João seria... um morango!
Podia engulil-o um leão
Quando nasce! As pombas são
Um poucochinho maiores...
Mas os astros são menores!

O João dorme... Que regalo!
Deixal-o dormir, deixal-o!
Callae-vos, agoas do moinho!
Ó mar! falla mais baixinho...
E tu, Mãe! e tu, Maria!
Pede áquella cotovia
Que falle mais devagar:
Não vá o João, acordar...

O João dorme... Innocente!
Dorme, dorme eternamente,
Teu calmo somno profundo!
Não acordes para o mundo,
Póde affogar-te a maré:
Tu mal sabes o que isto é...

Ó Mae! canta-lhe a canção,
Os versos do teu irmão:
«Na Vida que a Dor povoa,
Ha só uma coisa boa,
Que é dormir, dormir, dormir...
Tudo vae sem se sentir.»

Deixa-o dormir, até ser
Um velhinho... até morrer!

E tu vel-o-ás crescendo
A teu lado (estou-o vendo
João! Que rapaz tão lindo!)
Mas sempre, sempre dormindo...

Depois, um dia virá
Que (dormindo) passará
Do berço, onde agora dorme,
Para outro, grande, enorme:
E as pombas que eram maiores
Que João... ficarão menores!

Mas para isso, ó Maria!
Dize áquella cotovia
Que falle mais devagar:
Não vá o João, acordar...

E os annos irão passando.

Depois, já velhinho, quando
(Serás velhinha tambem)
Perder a cor que, hoje, tem,
Perder as cores vermelhas
E for cheiinho de engelhas:
Morrerá sem o sentir,
Isto é deixa de dormir...
Acorda e regressa ao seio
De Deus, que é d'onde elle veio...

Mas para isso, ó Maria!
Pede áquella cotovia
Que falle mais davagar:

Não vá o João, acordar...

António Nobre, Só



(Kate Summers)

Acordou, o João. Viu-se só, pernas trémulas, olhar perdido na casa grande e fria. Percorre o corredor manquejando, mão direita a repousar na anca dorida. Onde, a mãe? Onde a canção de embalar? Onde a infância, a juventude, a idade adulta de mãos firmes? O quarto é já ali, na porta entreaberta. Há uma cama em vez de um berço. Deita-se devagar. Quem sabe, dorme! Quem sabe, sonha com o canto da cotovia!


quinta-feira, outubro 06, 2016

Escrevi-te

(Ana Barros)

Escrevi-te! Estranhou a mensagem no ecrã do telemóvel. Escrevi-te!? Como assim? Foi clicando nas aplicações em busca das palavras e nada! Respondeu com uma pergunta: Devias estar sem rede. Não recebi nada! Em troca, o ecrã negro. Nem um ok, nem um smile. Os alertas do Facebook e do Instagram fizeram-na esquecer a estranheza.
Abriu a porta de casa, fechando-a atrás de si de imediato. Estava calor e queria livrar-se da roupa, tomar um duche, pôr uma t-shirt, e esticar-se no sofá. Olhou instintivamente para o enorme espelho que ampliava a sala, ao accionar o interruptor. Escrito a marcador preto, sobressaindo à luz branca dos leds, um pequeníssimo texto: Há pássaros que voam janelas adentro e trazem consigo rios, montanhas, mares e areais doirados. (Um dia prometi que te escrevia. Hoje foi o dia.)