sexta-feira, julho 29, 2016

Escreveu-lhe uma carta

(Roderic O'Conor)

Escreveu-lhe uma carta. Nunca gostara de escrever, muito menos cartas. Saíam-lhe sempre palavras em atropelo. Estranho, como quando falava tinha um discurso tão articulado e, ao correr da pena, era como se houvesse um travão nos seus dedos. Ainda assim, escolheu um papel amarelo com linhas (tinha que ter linhas porque senão nunca acertaria na direcção certa, ora subindo, ora descendo, num desencontro absurdo), uma esferográfica preta de ponta fina, sentou-se à secretária e começou:

Hoje, esteve um calor tórrido. Lembrei-me das nossas férias na praia. De vez em quando lembro-me desses meses de Verão, em que tudo parecia tão simples. Ou era mesmo tudo simples? Sabes, aquele vestido laranja com cintura descaída e alças finas que costumavas usar ao Domingo? Fiz um igual. Visto-o em casa, quando a saudade aperta e o mar está tão longe que nem sequer há gaivotas a cruzar o céu. Vai parecer-te bizarro, eu sei, mas continuo a usar manteiga de cacau na pele. Não para me proteger do sol, como antigamente (torrávamos, isso sim, com aquela gordurazinha, no calor), mas para sentir o cheiro da adolescência descuidada e feliz. Isto tudo para te dizer que me faltas. Faltas-me tanto que me dói, bem ali, sob a pele, do lado esquerdo do peito.



quarta-feira, julho 27, 2016

Mapa amoroso

(Gustav Klimt)

Há, nas mãos dele, o mapa do corpo dela.
Há, no corpo dela, o mapa das mãos dele.
Há, em ambos, o caminho que os leva ao encontro um do outro.



sexta-feira, julho 22, 2016

quarta-feira, julho 20, 2016

domingo, julho 17, 2016

Ternura


Maria Antónia não era particularmente bonita, particularmente elegante, particularmente inteligente, nem particularmente culta. Era, porém, particularmente terna. A essa ternura, Maria Antónia devia o brilho do olhar que lhe emoldurava o rosto. Era dessa ternura que fazia dádiva.


sexta-feira, julho 15, 2016

O poder das palavras

(Ivan Aivazovsky)

Carrying Our Words

We travel carrying our words.
We arrive at the ocean.
With our words we are able to speak
of the sounds of thunderous waves.
We speak of how majestic it is,
of the ocean power that gifts us songs.
We sing of our respect
and call it our relative.


Ofelia Zepeda
(translated into English from O’odham by the poet)




Transportando as nossas palavras

Viajamos transportando as nossas palavras.
Chegamos ao oceano.
Com as nossas palavras somos capazes de dizer
dos sons das ondas retumbantes.
Falamos de quão majestoso é,
do poder do oceano que nos oferta cânticos.
Cantamos a nossa reverência
e apelidamo-lo de nosso semelhante.

Ofelia Zepeda (traduzida da versão em Inglês por Maria Eu)


quarta-feira, julho 13, 2016

Ajude a cumprir o sonho da Carla

Este, é o sonho da Carla:

Aqui, pode ajudar a cumpri-lo! Já ultrapassou metade da verba necessária. Vá lá, não custa assim tanto! Faltam 20 dias!

sexta-feira, julho 08, 2016

Herberto Helder com pronúncia do Norte (Movimento "Queremos ouvir os bloggers a declamar poesia".)








(...)
A terra é alta.
Tu és o nó de sangue que me sufoca.
Dormes na minha insónia como o aroma entre os tendões
da madeira fria. És uma faca cravada na minha
vida secreta. E como estrelas
duplas
consanguíneas, luzimos de um para o outro
nas trevas.

Herberto Helder






Vincent van Gogh

Movimento "Queremos ouvir os bloggers a declamar poesia", criado pelo Pipoco Mais Salgado.

terça-feira, julho 05, 2016

Fomos mãos. Somos flores.


(daqui)




Nós fomos
mãos,
esvaziámos a treva, encontrámos
a palavra, que subia do verão:
flor.


Flor - uma palavra de cegos.
Os teus olhos e os meus olhos:
vão em busca de água.


Paul Celan






Nós somos
flores,
nascemos da luz, encontrámos
as mãos, que se tocaram:
carícia.

Carícia - o toque dos amantes.
As tuas mão e as minhas mãos:
vão em busca do amor.

Maria Eu, depois de ler Paul Celan

sábado, julho 02, 2016

Palmas ao acordar

Aos Domingos, as palmas chegavam mais tarde, lá pelas oito e meia. Era ao som de palmas que acordavam, nas camas de ferro que se perfilavam em linhas de quinze, encostadas às paredes laterais do dormitório. Palmas e rezas, claro, que as freiras não brincavam em serviço e, mesmo rezando, puxavam, em movimentos bruscos, os cobertores daquelas que se aninhavam no torpor do sono, enquanto alteavam a voz na "Avé Maria".