sexta-feira, outubro 31, 2014

Primavera... no Outono

(Botticelli - Primavera)

Nem a brisa das novas flores que em regato rutilante Botticelli põe nas mãos da Primavera, vogando no seu regaço…Só esta cascata de alegria inteira, e o que diz a dança das cordas, repete o cascadear do piano saltitante, anunciando o florescer da estação.

Luís Alves da Costa, in Fragmentos Musicais, colecção o chão da palavra/poesia, Vega Ed




Pois que estamos no Outono, festejemos a Primavera!

domingo, outubro 26, 2014

Parto mas fico

 (Gennady Privedentsev)

Tempo  

O tempo é um velho corvo
de olhos turvos, cinzentos.
Bebe a luz destes dias só dum sorvo
como as corujas o azeite
dos lampadários bentos.

E nós sorrimos,
pássaros mortos
no fundo dum paul
dormimos.

Só lá do alto do poleiro azul
o sol doirado e verde,
o fulvo papagaio
(estou bêbedo de luz,
caio ou não caio?)
nos lembra a dor do tempo que se perde.

Carlos de Oliveira, in 'Colheita Perdida'




O meu tempo é, por agora, um sorvedouro onde me deixo enrolar, sem força anímica para emergir. O meu tempo é absurdo, por estes tempos. Talvez porque me falta, o tempo, seja tempo de dizer, não que parto mas que fico, aqui ao lado, a remar contra a maré.

 

sábado, outubro 25, 2014

Caminho



(Henri Cartier Bresson)

You say I am repeating
Something I have said before. I shall say it again.
Shall I say it again? In order to arrive there,
To arrive where you are, to get from where you are not,
You must go by a way wherein there is no ecstasy.
In order to arrive at what you do not know
You must go by a way which is the way of ignorance.
In order to possess what you do not possess
You must go by the way of dispossession.
In order to arrive at what you are not
You must go through the way in which you are not.
And what you do not know is the only thing you know
And what you own is what you do not own
And where you are is where you are not.

T.S. Eliot, in Four Quartets
                  

Tu dirás que estou a repetir
Algo que disse antes. Di-lo-ei de novo.
Dil-lo-ei de novo? Para chegares aí
Para chegares onde estás, para saíres de onde não estás,
Deves seguir por um caminho onde não há êxtase.
Para chegares ao que não sabes
Deves seguir  por um caminho que é o da ignorância.
Para possuíres o que não possuis
Deves seguir pelo caminho da despossessão.
Para chegares ao que não és
Deves seguir pelo caminho onde não estás.
E o que não sabes é a única coisa que sabes
E o que possuis é o que não possuis
E onde estás é onde não estás.

T.S. Eliot, in Quatro Quartetos, tradução de Maria Amélia Neto para Ed. Ática




Porque só partindo do nada, despojando-nos de tudo o que julgávamos saber, perceberermos como caminhar em direcção ao conhecimento.

Preparação da colheita


(Egon Schiele)

Never harvest thoughtlessly or without considering the proper time to do it. There's a time to watch over the fruits, a time to see them getting ripe and only then are they ready for you to pick them up.

(há metáforas que soam melhor em Inglês, ainda que sejam na mesma ácidas)



quarta-feira, outubro 22, 2014

Medida para a saudade

(Joanna Borowiec)


"- Como se mede a saudade?" perguntou-lhe.
"- Mede-se em bem-quereres!" respondeu.
"- Tenho milhares de milhões de bem-quereres de saudade!" disse, então.



segunda-feira, outubro 20, 2014

Do arrebatamento


 (Susan Merrell)

Clara, sempre ela, continua a assombrar-me. Recordo como abraçava a paixão, num arrebatamento que fazia acreditar haver um cataclismo prestes a acontecer. Então, ela cravava a paixão na carne, fundo, para que não fosse levada por um furacão ou um maremoto. Por sua vez, a paixão olhava-a, espantada, hesitava em aceitar esse abraço que era de vida ou morte, deixando Clara numa agitação aflita que só acalmava a espaços, quando a paixão, adoçando os gestos, se rendia a um aflorar de dedos, a um toque de lábios.


domingo, outubro 19, 2014

Nem sempre viver, nem sempre morrer

(Isabel Barranco)
Viver sempre também cansa!


"Viver sempre também cansa!
O sol é sempre o mesmo e o céu azul
ora é azul, nitidamente azul,
ora é cinza, negro, quase verde...
Mas nunca tem a cor inesperada.
O Mundo não se modifica.
As árvores dão flores,
folhas, frutos e pássaros
como máquinas verdes.
As paisagens também não se transformam.
Não cai neve vermelha,
não há flores que voem,
a lua não tem olhos
e ninguém vai pintar olhos à lua.
Tudo é igual, mecânico e exacto.
Ainda por cima os homens são os homens.
Soluçam, bebem, riem e digerem
sem imaginação.
E há bairros miseráveis, sempre os mesmos,
discursos de Mussolini,
guerras, orgulhos em transe,
automóveis de corrida...
E obrigam-me a viver até à Morte!
Pois não era mais humano
morrer por um bocadinho,
de vez em quando,
e recomeçar depois, achando tudo mais novo?
Ah! se eu pudesse suicidar-me por seis meses,
morrer em cima dum divã
com a cabeça sobre uma almofada,
confiante e sereno por saber
que tu velavas, meu amor do Norte.
Quando viessem perguntar por mim,
havias de dizer com teu sorriso
onde arde um coração em melodia:
"Matou-se esta manhã.
Agora não o vou ressuscitar
por uma bagatela."
E virias depois, suavemente,
velar por mim, subtil e cuidadosa,
pé ante pé, não fosses acordar
a Morte ainda menina no meu colo..."


(José Gomes Ferreira)


E às vezes queres morrer
Queres fenecer, sei lá
E às vezes já não queres
Morrer, quero dizer
Talvez queiras dormir
Num sono demorado
Protelar o devir
Preferindo sonhá-lo...

(Maria Eu)


 

sábado, outubro 18, 2014

Efeméride em dia errado

 ( Veronica Byers)

Maria cumpriu um  ano a oito de Outubro. Tão pequena, ainda, nem se lembrou. Talvez porque foi um dia particularmente feliz, esse, com tanta atenção e cuidados que não haveria bolo com velas capaz de superar tanta felicidade. 
Já se firma nas pernas, a miúda, vacilando apenas de quando em vez. Ergue-se, curiosa, em bicos de pés, agarrada à amurada, para espreitar a vida. Sente uma raiva surda nas gengivas e os dentes rompem, na ânsia de morder. De brincadeira em brincadeira, vai tacteando o terreno hostil do mundo em que se move, à conquista dos que a acompanhem nesta aventura que é crescer.



Nota: A Maria agradece aos que a fazem crescer a cada dia.

De tanto bater, o meu coração incendiou-se



(Christian Schloe - roubado daqui)

"Ah, e dizer que isto vai acabar, que por si mesmo não pode durar. Não, ela não está se referindo ao fogo, refere-se ao que sente. O que sente nunca dura, o que sente sempre acaba, e pode nunca mais voltar. Encarniça-se então sobre o momento, come-lhe o fogo, e o fogo doce arde, arde, flameja. Então, ela que sabe que tudo vai acabar, pega a mão livre do homem, e ao prendê-la nas suas, ela doce arde, arde, flameja."

Clarice Lispector, in "Onde Estiveste de Noite - Manifesto da Cidade" 





Incendeia-se, agora, num acto de entrega que adivinha final. Amanhã, só restarão cinzas. Amanhã, soprará um vento forte que levará o incêndio, a entrega, as cinzas. Ficarão as mãos, livres, para atiçar outros fogos que não o seu.

sexta-feira, outubro 17, 2014

Coragem

(Marwane Pallas)


Um dia... Um dia virar-te-ás orgulhosamente, descerás as calças, e urinarás no sol! Um jacto vigoroso, dourado, a marcar território!



quarta-feira, outubro 15, 2014

Branca de neve



 (Agata Kosmala)

"- Espelho meu, espelho meu, haverá alguém mais absurda do que eu?"

Ah! Não era assim, na história! Era "mais bela do que eu"... 



terça-feira, outubro 14, 2014

Ressurreição



 (Walter Schönenbröcher)

Arrancaram-lhe os olhos e passou a ver com as pontas dos dedos. Cortaram-lhe os dedos e passou a usar os lábios para sentir. Roubaram-lhe o corpo, prostraram-na, tentaram matá-la, mas ergueu-se acima dele, num halo de luz.

segunda-feira, outubro 13, 2014

Das castas



 (Trak Wendisch - The Inquisitor)

Existe uma casta cujas pessoas nunca riem à gargalhada, só sorriem, nunca comem com vontade, só com extrema delicadeza, nunca correm, só aceleram o passo, e nunca, mas nunca se tratam por tu.
De quando em vez, decidem agraciar as castas inferiores com uma ou duas visitas, uma ou duas trocas de palavras. Porém, logo regressam às suas casas com protecção contra intrusos, onde tomam um prolongado banho para não sentirem o cheiro do seu passeio inusitado. 
Podem, agora, julgar com propriedade, diria mesmo, com assertividade, essa "gentinha"!



domingo, outubro 12, 2014

Mitos

(Tina Imel)

E, certo dia, descobriu que, afinal, havia monstros debaixo da cama.
 

sábado, outubro 11, 2014

Celas


(Nguyen Thai Tuan)

A CELA


O problema não são apenas os senhores da escravatura. O problema é que os escravos se reconhecem como tal. Os senhores talvez se pudessem derrotar. Mas como vencer os muros de quem ignora a liberdade e dentro de si ergue a cela que o encerra?

Jorge Roque, in Cão Celeste, n.º 4, Lisboa, 2013




A cada dia somos prisioneiros de nós mesmos. A cada dia nos rendemos ao poder. Ao poder do(s) outro(s), os que se instalaram nele à custa dos que se encerram dentro de si.

sexta-feira, outubro 10, 2014

Do amor

(Victoria Selbach)

Passara creme no corpo, perfumara-se, calçara as meias de liga acabadas de comprar. O vestido era discreto, as botas de cano alto nada extravagantes. 
Despiu o vestido de uma só vez, a roupa interior em gestos rápidos e nervosos, as botas num repente. Deixou as meias.
"Tira as meias." disse-lhe ele."Quero sentir as tuas pernas."
E ela tirou-as.

quarta-feira, outubro 08, 2014

Da nostalgia

(Tom Van de Wouwer)


Há o tempo em que as maçãs rescendem à doçura do açúcar misturado com canela. Um tempo breve em que os sentidos estão sempre despertos, o olhar brilha mais, o sorriso é mais aberto e, no travesseiro, há sempre a forma das nossas cabeças juntas.


terça-feira, outubro 07, 2014

Foi a saudade

(Nini Theilade - Ballets Russes, 1935)

Quis Achar Teu Corpo  

Quis achar no teu corpo uma loucura nova
alguma coisa viva
que lá não estava
e que era só minha
e que eu te emprestava.

Então, deu-me saudade
do tempo em que teu corpo
fruta à prova
já era, por si só, uma loucura nova.

Renata Pallottini, in 'Ao Inventor das Aves'




Para além da saudade, encontro o teu corpo, a cada vez uma loucura nova.

Viver


(Pere Borrell Del Caso)

A Coragem no Gesto de Viver  

O solitário gesto de viver
não demanda a coragem que há na faca,
na ponta do punhal e até no grito
de quem fala mais alto e está coberto
de razões, de certezas, de verdades.
O gesto de viver se oculta em dobras
tão íntimas do ser, que o desfazê-las
é mais que indelicado, é violência
que nem sequer se pode conceber.
O gesto de viver é só coragem,
mas, de tal forma próprio e incomparável,
que não se exprime em verbo, imagem, mímica
ou qualquer outra forma conhecida
de contar, definir ou explicar.
A coragem no gesto de viver
está em coisas simples, por exemplo,
na diária decisão de levantar.
E mais, em se vestir e trabalhar
por entre espadas, punhos e navalhas,
peito aberto, sem armas, passo firme,
e à noite, ainda intacto, regressar.

Reynaldo Valinho Alvarez, in 'O Solitário Gesto de Viver'


Viver, sem medo, de peito aberto às balas!

segunda-feira, outubro 06, 2014

domingo, outubro 05, 2014

Canção do amor total II - Sylvia

 (Sylvia Plath)
Sylvia Plath (1932-1963), mulher de uma escrita intensa, profunda, confessional, dada a depressões que a levam a várias tentativas de suicído. De um amor à primeira vista, casa (1955) com Ted Hughes, vivendo apaixonados e prolíferos em versos onde sentimentos fortes explodiam.
 (Ted Hughes e Sylvia Plath)
Ted não resiste, porém, ao encanto de Assia Wevill, uma refugiada alemã e, em 1962, Sylvia parte para Londres com os dois filhos pequenos, após a separação.
No ano seguinte, suicida-se em casa, enquanto os seus filhos dormiam, metendo a cabeça no forno, após ligar o gás.
A Love Song de Ted Hughes é um grito, um arrancar do coração, das entranhas desse amor que os construiu e os destruiu. A Love Song de Sylvia é, também, um grito. Um grito mais fundo ainda, talvez, porque reconhece a loucura da rapariga que o escreve, Sylvia, ainda tão menina, tão frágil, ferozmente frágil, diria, apesar de parecer contraditório. 
(Tragicamente, Hughes perderá Assia que se suicida copiando Sylvia e metendo a cabeça no forno, matando também a filha de ambos e, mais tarde, o filho que tivera com Sylvia também se enforca, pondo termo à vida.)

Mad Girl's Love Song

I shut my eyes and all the world drops dead; 
I lift my lids and all is born again. 
(I think I made you up inside my head.) 

The stars go waltzing out in blue and red, 
And arbitrary blackness gallops in: 
I shut my eyes and all the world drops dead. 

I dreamed that you bewitched me into bed 
And sung me moon-struck, kissed me quite insane. 
(I think I made you up inside my head.) 

God topples from the sky, hell's fires fade: 
Exit seraphim and Satan's men: 
I shut my eyes and all the world drops dead. 

I dreamed that you bewitched me into bed 
And sung me moon-struck, kissed me quite insane. 
(I think I made you up inside my head.) 

God topples from the sky, hell's fires fade: 
Exit seraphim and Satan's men: 
I shut my eyes and all the world drops dead. 

I fancied you'd return the way you said, 
But I grow old and I forget your name. 
(I think I made you up inside my head.) 

I should have loved a thunderbird instead; 
At least when spring comes they roar back again. 
I shut my eyes and all the world drops dead. 
(I think I made you up inside my head.) 
 
Syilvia Plath 
 
 (Margarita Sikorskaia)
 
Canção de Amor de uma Rapariga Louca
 
Cerro os olhos e o mundo inteiro morre
Abro as pálpebras e tudo renasce
(Acho que te inventei dentro da minha cabeça.)

Valsam as estrelas, em vermelho e azul
Entra, galopando, uma escuridão arbitrária:
Cerro os olhos e o mundo inteiro morre.

Sonhei que me enfeitiçavas até à cama
Me alucinavas cantando; me beijavas enlouquecido.
(Acho que te inventei dentro da minha cabeça.)

Abate-se Deus do céu; suaviza-se o fogo do inferno:
Desaparecem os serafins e os homens de Satã:
Cerro os olhos e o mundo inteiro morre.

Imaginei que voltarias  como prometeste
Ah, mas envelheço e esqueço o teu nome.
(Acho que te inventei dentro da minha cabeça)

Deveria ter amado um falcão, em vez de ti
Pelo menos, com a primavera, regressam aparatosamente
Cerro os olhos e o mundo inteiro morre:
(Acho que te inventei dentro da minha cabeça.) 
 
Sylvia Plath traduzida por Maria Eu 
 

sexta-feira, outubro 03, 2014

Canção do amor total I - Ted


   LOVE SONG

    He loved her and she loved him.
    His kisses sucked out her whole past and future or tried to
    He had no other appetite
    She bit him she gnawed him she sucked
    She wanted him complete inside her
    Safe and sure forever and ever
    Their little cries fluttered into the curtains

    Her eyes wanted nothing to get away
    Her looks nailed down his hands his wrists his elbows
    He gripped her hard so that life
    Should not drag her from that moment
    He wanted all future to cease
    He wanted to topple with his arms round her
    Off that moment's brink and into nothing
    Or everlasting or whatever there was

    Her embrace was an immense press
    To print him into her bones
    His smiles were the garrets of a fairy palace
    Where the real world would never come
    Her smiles were spider bites
    So he would lie still till she felt hungry
    His words were occupying armies
    Her laughs were an assassin's attempts
    His looks were bullets daggers of revenge
    His glances were ghosts in the corner with horrible secrets
    His whispers were whips and jackboots
    Her kisses were lawyers steadily writing
    His caresses were the last hooks of a castaway
    Her love-tricks were the grinding of locks
    And their deep cries crawled over the floors
    Like an animal dragging a great trap
    His promises were the surgeon's gag
    Her promises took the top off his skull
    She would get a brooch made of it
    His vows pulled out all her sinews
    He showed her how to make a love-knot
    Her vows put his eyes in formalin
    At the back of her secret drawer
    Their screams stuck in the wall

    Their heads fell apart into sleep like the two halves
    Of a lopped melon, but love is hard to stop

    In their entwined sleep they exchanged arms and legs
    In their dreams their brains took each other hostage

    In the morning they wore each other's face

   (Ted Hughes)



(Margarita Sikorskaia)


   
CANÇÃO DE AMOR

    Ele amava-a e ela amava-o.
    Os beijos dele sugavam-lhe todo o seu passado e todo o seu futuro, ou tentavam-no
    Ele não tinha qualquer outro apetite
    Ela mordia-o, roía-o, chupava-o
    Ela queria-o inteiro dentro dela
    Seguro e certo para todo o sempre
    Os seus  gemidos alvoroçando-se cortinas adentro

    Os olhos dela não deixavam que nada escapasse
    Os olhares dela prendiam-lhe as mãos, os pulsos, os cotovelos
    Ele agarrava-a com toda a força para que a vida
    Não a arrastasse para fora desse momento
    Ele queria que todo o futuro acabasse
    Ele a desabar, com os seus braços a rodeá-la
    Para fora daquele momento, para dentro do nada  
    Para todo o sempre  ou para o que quer que viesse 

    O abraço dela era uma enorme prensa 
    Que o imprimia até aos ossos
    Os sorrisos dele eram   o sótão de um palácio encantado
    Onde a realidade nunca entraria
    Os sorrisos dela eram mordidelas de aranha  
    Assim, ele permanecia tranquilamente deitado até que ela sentisse fome
    As palavras dele eram exércitos ocupantes 
    As gargalhadas dela eram tentativas de assassinato 
    Os olhares dele eram balas, dardejando vingança
    Os olhares de relance dela eram fantasmas nos cantos, com segredos terríveis
    Os sussuros dele eram chicotes e botas de montar  
    Os beijos dela eram advogados, escrevendo sem parar 
    As carícias dele eram o último dos anzóis de um náufrago  
    Os ardis de amor dela eram o ranger das fechaduras
    E os gritos profundos de ambos  arrastavam-se pelo chão
    Como um animal preso a uma enorme armadilha  
    As promessas dele eram a máscara de um cirurgião 
    As promessas dela arrancavam-lhe o escalpe 
    Ela mandaria fazer dele um broche  
    As promessas dele arrancaram-lhe todos os tendões
    Ele mostrou-lhe como fazer um nó de amor 
    As promessas dela mergulharam-lhe os olhos em formalina  
    Por detrás da sua gaveta secreta  
    Os gritos de ambos cravados na parede

    As cabeças de ambos separaram-se no sono como duas metades 
    De um melão mutilado, mas é difícil reprimir o amor
    No seu sono entrelaçado, trocaram braços e pernas 
    Nos seus sonhos, o cérebro de cada um fez o do outro refém 

    Pela manhã, cada um vestia o rosto do outro.   


    (Ted Hughes traduzido por Maria Eu)


 

Dos salvamentos



 (Michelangelo Buonarroti, detalhe d'A criação de Adão)

Nunca salvei um animal. 
Mas já dei a mão a alguém que precisava ser salvo.


 

quinta-feira, outubro 02, 2014

Constatação

(Joseph Lorusso)

Ilusoriamente, acreditamos que o mundo é redondo. Na realidade, o mundo é quadrado, com esquinas que escondem ameaças ao dobrá-las  e onde tropeçamos e caímos, irremediavelmente feridos , solitários na dor.



quarta-feira, outubro 01, 2014

Da música, apenas





O suporte da música

 o suporte da música pode ser a relação
entre um homem e uma mulher, a pauta
dos seus gestos tocando-se, ou dos seus
olhares encontrando-se, ou das suas

vogais adivinhando-se abertas e recíprocas,
ou dos seus obscuros sinais de entendimento,
crescendo como trepadeiras entre eles.
o suporte da música pode ser uma apetência

dos seus ouvidos e do olfacto, de tudo o que se
ramifica entre os timbres, os perfumes,
mas é também um ritmo interior, uma parcela
do cosmos, e eles sabem-no, perpassando

por uns frágeis momentos, concentrado
num ponto minúsculo, intensamente luminoso,
que a música, desvendando-se, desdobra,
entre conhecimento e cúmplice harmonia.


Vasco Graça Moura, in "Antologia dos Sessenta Anos"


Dos abraços e dos beijos

Abraça-me 


Abraça-me. Quero ouvir o vento que vem da tua pele, e ver o sol nascer do intenso calor dos nossos corpos. Quando me perfumo assim, em ti, nada existe a não ser este relâmpago feliz, esta maçã azul que foi colhida na palidez de todos os caminhos, e que ambos mordemos para provar o sabor que tem a carne incandescente das estrelas. Abraça-me. Veste o meu corpo de ti, para que em ti eu possa buscar o sentido dos sentidos, o sentido da vida. Procura-me com os teus antigos braços de criança, para desamarrar em mim a eternidade, essa soma formidável de todos os momentos livres que a um e a outro pertenceram. Abraça-me. Quero morrer de ti em mim, espantado de amor. Dá-me a beber, antes, a água dos teus beijos, para que possa levá-la comigo e oferecê-la aos astros pequeninos. Só essa água fará reconhecer o mais profundo, o mais intenso amor do universo, e eu quero que dele fiquem a saber até as estrelas mais antigas e brilhantes. Abraça-me. Uma vez só. Uma vez mais. Uma vez que nem sei se tu existes

Joaquim Pessoa, in 'Ano Comum'

(Ernst Ludwig Kirchner)

Beija-me

Beija-me. Quero sentir o calor dos teus lábios e afundar os meus olhos nos teus. Quando mergulho assim, em ti, apenas nós existimos, como se tu fosses eu e eu fosse tu, flores desabrochando no Jardim das Delícias, perfumando os recantos que nos servem de leito, agitados pelo vento que mistura pétala sobre pétala, aveludadas e rubras. Beija-me. Morde-me a carne a espaços delicados, prova-me o sangue, sente-me pulsar. Rouba-me a alma apenas nesses beijos, para me veres inteira, até ao fundo, e eu te ver também, nessa união total. Beija-me. Quero fundir-me contigo, num frémito último. Veste-me, antes, com o manto do teu abraço, para que possa levá-lo a agasalhar a Lua. Só esse manto, de carícias tecido, poderá revelar o mais terno, o mais ardente amor, e é à Lua que o quero desvendar. Beija-me. Mais uma vez. E outra vez mais porque eu sei que também queres esse beijo e que existes.

Maria Eu