domingo, fevereiro 28, 2016

Magnólias

(Frida Kahlo - Magnólias)



"Olhando de relance o dorso estrangulado das magnólias que hoje regurgitam pétalas", atapetando de branco e rosa a terra despida de qualquer outro artifício, não me tomou qualquer comoção. Já não me enternecem, as flores, nem as de Kahlo. Haveria magnólias em Coyoacán? 

Talvez deva considerar os malmequeres.




quinta-feira, fevereiro 25, 2016

Passeio de Domingo

(Bessie MacNicol - mãe e filha)

Habituara-se a que lhe segurasse a mão aos Domingos de manhã, enquanto andavam pela rua, depois de lhe ter ajeitado o laço no cabelo e endireitado as pregas da saia (sempre em desarranjo, as malditas, de se sentar no muro a ler "Os cinco" ou na conversa com a Joaninha). Já muitas meninas lhe diziam que não, não devia andar assim, de mãos dadas. Afinal, tinha doze anos! Coisa mais imprópria para uma pré-adolescente espigada que até já usava soutien!
Ela ria-se e nada a convencia que, ao menos ao Domingo, a sua mão não andasse enlaçada pela de sua mãe.


terça-feira, fevereiro 23, 2016

Arder


(Jack Vettriano)


O meu corpo espalha incêndios

Estou certo de que não terás mais
de viver comigo ou com o que resta de mim.
Deixo-me adormecer durante horas para
que saibas que me afasto a passos largos,
com sombras por detrás.

O meu corpo, por onde quer que vá,
espalha incêndios que não me recordo
como apagar - pensar que um fogo assim se
alimenta cresce reproduz-se e morre

e que nada mais deixa a pedir.

Para que hoje eu entre pela porta
bastará que os nossos corpos se encontrem
num lugar onde não vou dizer.

Chegarás, por teu pé, aonde os velhos descansam
e onde cicatrizes rolam pelo corpo
e pela consciência.

Com o tempo, o que não aprendeste
quando nasceste torna-se inerente a ti, torna-se
um braço, uma mão, um dedo que se estende
na memória e que aponta no mapa da cidade
a casa

as paredes e o soalho

as prisões os âmagos de quem partiu de
lá - como nós.

E por hoje, fico com fome.
Pelos caminhos as fogueiras como pequenos faróis
no nevoeiro que levanto ao caminhar

enquanto que os meus pés se tornam
rasgos na estrada e eu me diluo na multidão
para ser escrito.

E um jovem toca-me no ombro e então
desperto e estou próximo a dois passos
do que deixei para trás.


 Sérgio Xarepe - Confluências.




Há um incêndio a cada toque, 
um crepitar de chamas a queimar 
dois corpos numa só 
fogueira. 
Ainda que depois só restem 
cinzas.

domingo, fevereiro 21, 2016

A menina de seu pai

(John Quidor)


Olha-o no fundo daquele olhar doce e antigo, onde as memórias retêm o seu cabelo loiro de caracóis e os sapatos de verniz de Domingo com as meias brancas, rendadas, pelo joelho, eivada de uma ternura infinita. Hoje, como ontem, pese embora já não ter caracóis e o cabelo precisar de avivar a cor de quando em vez, ainda, sim, ainda é a menina de seu pai.


sexta-feira, fevereiro 19, 2016

Junho


(Blinky Palermo)


Faz de conta que hoje é Junho. Faz de conta que está calor. Visto a blusa branca com cornucópias verdes, a écharpe, também verde, a avivar-lhe a cor, e as calças de ganga azul-marinho. Calço as sandálias beges, Hush Puppies, de salto alto, sento-me no café de janelas envidraçadas a beber  chá de rooibos, como uma torrada com manteiga e sou feliz. 
Faz de conta que hoje é Junho e que amanhã vou à praia.


quarta-feira, fevereiro 17, 2016

Quando vieres

(Victor Nizovtsev )


Quando vieres

Quando vieres, não tragas mãos vazias
Enche-as das coisas mínimas da vida
Podem ser conchas, pássaros, maresias
A uma, outra e outra eu darei guarida

Quando vieres, senta-te ao meu lado
Conta-me dos barcos e das estrelas
Pode até ser  num tempo demorado
Assim como viagens em caravelas

Dir-me-ás do canto da sereia
E do brilho das escamas ao luar
Amando os marinheiros na areia


E se acaso o cansaço te vencer
Prometo tomar-te nos meus braços
Aconchegado até o sol nascer




terça-feira, fevereiro 16, 2016

Dos livros





Tecido



O texto tem sua face 

de avesso na superfície: 
é dia e noite, sintaxe 
do que se pensa, ou se disse. 

Tudo no texto é disfarce, 
ritual de voz e artifício, 
como se tudo falasse 
por si mesmo, na planície. 

Seja por dentro ou por fora, 
seja de lado ou durante, 
o texto é sempre demora: 

o descompasso da escrita 
e da leitura no grande 
intervalo dos sentidos. 



Gilberto Mendonça Teles, in 'Arte de Armar'






Respiras o texto que se demora na ponta dos dedos, página a página. E há sempre mais um, mais palavras, histórias, sonhos, amores e desamores.

domingo, fevereiro 14, 2016

Bebedeira de azul








Soneto do Desmantelo Azul

Então, pintei de azul os meus sapatos
por não poder de azul pintar as ruas,
depois, vesti meus gestos insensatos
e colori, as minhas mãos e as tuas.


Para extinguir em nós o azul ausente
e aprisionar no azul as coisas gratas,
enfim, nós derramámos simplesmente
azul sobre os vestidos e as gravatas.

E afogados em nós, nem nos lembrámos
que no excesso que havia em nosso espaço
pudesse haver de azul também cansaço.

E perdidos de azul nos contemplámos
e vimos que entre nós nascia um sul
vertiginosamente azul. Azul.


Carlos Pena Filho





E foi então que, bêbados de azul, nos fizemos céu onde  pássaros extraordinariamente azuis ensaiaram mil voos.

sábado, fevereiro 13, 2016

A loucura de Vincent


E um dia, Van Gogh assumiu a sua loucura e levou Mona Lisa a curtir um passeio de descapotável na Noite Estrelada.

(Barry Kite)


Mas primeiro, teve que raptá-la, numa incursão armada ao Louvre.


E obrigá-la a fazer um check-up no dentista. Afinal, a rapariga estava a sorrir sem mostrar os dentes desde o início do Séc. XVI!




quarta-feira, fevereiro 10, 2016

Pão


(Gerard Sekoto)



Era menina, não mais do que seis anos. Mal aprendera a ler e só desenhava umas poucas palavras. As tardes alongavam-se em correrias pelos campos, jogos de macaca, esconde-esconde... Para ela, as mães eram todas donas de casa e os pais uns senhores muito sérios que iam ganhar dinheiro para a mulher e os filhos comprarem comida, roupa e outras coisas, poucas, como um brinquedo na festa da vila, ou um gelado num ou outro Domingo.
Meninos e meninas, faziam uma roda e punham as mãos da costas para cima, prontas para serem penicadas.

"Pico-pico, sarrubico
vai ao mar buscar sardinha,
para o pobre do Luís.
O Luís, não a quis,
deu-lhe um murro no nariz,
salta a pulga da balança,
dá um pulo, até à França.
Os cavalos a correr,
as meninas a aprender
qual será a mais bonita.
Que se vai esconder?"


Logo corria a esconder-se aquele em cuja mão terminasse a lengalenga, continuando a brincadeira até se fartarem.

Descobriu, no dia em que a Susana chegou à rua com os olhos vermelhos de chorar, que nem todos os pais ganhavam dinheiro para comida, roupa e outras coisas, ainda que poucas. Nesse dia, a Susana disse que tinha fome e que o pai, zangado por ela pedir pão, lhe batera. 
Não sabia bem porque é que havia um pai que não dava pão à filha e, ainda por cima, lhe batia, mas deixou-a ganhar todos os jogos, até vê-la sorrir. 


Haveria de saber que havia muitos pais sem pão para dar aos filhos mas não ainda...


terça-feira, fevereiro 09, 2016

Definição de poesia

(Martin Borges, daqui)



Poesia é quando o teu nome 
se faz voz na minha boca.
É quando ao meu lado 
te deitas nu de todas as defesas.

Poesia somos nós, eu e tu, 
amando-nos nas horas rubras.



sábado, fevereiro 06, 2016

AMOR


Sentam-se na fila da frente, carruagem 4, lugares 71 e 73. Falam a meia-voz. Ainda assim, é inevitável ouvi-los. 
Risos. "Já viste esta? É por isso que adoro esta revista!" Uma espreitadela por entre os dois lugares permitia ver a capa da "Maria". "Deixa-me ler em paz. Esta história de amor é linda!" "Posso ler depois?" "Podes, claro!" 
A sério?! A "Maria"? Há um certo sentido de superioridade intelectual a fazê-la desdenhar daqueles dois. Revista de má qualidade, com textos de péssimo gosto, conhecida pelas páginas de resposta a cartas dos leitores do mais ridículo que se possa imaginar. Mas depois observou aquele rapaz e aquela rapariga pela nesga rasgada entre os bancos. Ele a beijar-lhe a testa, a ternura na mão dela a acariciar a dele, o cuidado dele a ajeitar-lhe a cabeça no ombro quando ela queria espreitar uma página, a preocupação de ambos em nunca deixar escorregar o casaco que lhes cobria os joelhos, não fosse o outro ter frio... Desdém? Era AMOR. Que importa o que liam? De repente, foi inveja o que sentiu daqueles dois.

quarta-feira, fevereiro 03, 2016

Terna é a noite

(Marc Chagall)


Escorre, a ternura
Ondulante e redonda
Os dedos, terra
Os olhos, ar
Os corpos, fogo


Leito, o meu corpo

Lençol, o teu.




terça-feira, fevereiro 02, 2016

Viver

(daqui)

Clara vivia apressadamente. Sobravam-lhe os dias no internato para se calar, para chorar, para sonhar com ursos ferozes enjaulados por meninas de bata branca, soquetes e sapatos de verniz preto. Agora era tempo de usar calças à boca de sino, com 25 centímetros no fundo e a estourar as costuras de justas no rabo, ou saias  às pregas absurdamente curtas. Tempo de pôr flores e lenços coloridos na cabeça, fazer tranças com fitas, usar socas com plataforma de altura vertiginosa, fumar cigarros roubados à irmã mais velha, desenhar longos risco de eyeliner negro e fazer olhinhos descarados aos rapazes do liceu. Era tempo de ser Clara.
E o Latim? Ah, o Latim podia esperar!