quarta-feira, dezembro 31, 2014

Do dia derradeiro e do primeiro

(Babaroga Vitomirov)

PASSAGEM DO ANO

O último dia do ano
Não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
E novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
Farás viagens e tantas celebrações
De aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia
E coral,

Que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor,
Os irreparáveis uivos
Do lobo, na solidão.

O último dia do tempo
Não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
Onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
Uma mulher e seu pé,
Um corpo e sua memória,
Um olho e seu brilho,
Uma voz e seu eco.
E quem sabe até se Deus...

Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.

Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa, já se expirou, outras espreitam a morte,
Mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
E de copo na mão
Esperas amanhecer.

O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
O recurso da bola colorida,
O recurso de Kant e da poesia,
Todos eles... e nenhum resolve.

Surge a manhã de um novo ano.

As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
Lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.


Carlos Drummond de Andrade


Assim se vive o dia primeiro, entupidos de vida, olhos e boca ávidos dela. Assim somos o que de nós fazemos e o que fazem de nós. Assim existimos.

terça-feira, dezembro 30, 2014

Novo ano

(Ana Paula Barros)

O que significa começar um novo ano? Nada. Os anos, tal como os contamos, não passam de convenções. Sim. Também eu desejo muita alegria e felicidade aos que me acarinham com a leitura do que publico neste recanto e (que me desculpem os silenciosos) ainda mais aos que me aquecem o coração com palavras. Há, porém, algo que é claro para mim, não vou terminar um ano e começar outro, o meu ano acaba quando alguém se despede de mim, quando se me aperta o coração de tanta falta, quando os que amo estão infelizes, quando me mascaro sem que seja Carnaval. 
Cada vez se me acabam mais anos. Que os vossos possam começar cada vez mais.

segunda-feira, dezembro 29, 2014

Minimal





The Minimal


I study the lives on a leaf: the little

Sleepers, numb nudgers in cold dimensions,

Beetles in caves, newts, stone-deaf fishes,

Lice tethered to long limp subterranean weeds,

Squirmers in bogs,

And bacterial creepers

Wriggling through wounds

Like elvers in ponds,

Their wan mouths kissing the warm sutures,

Cleaning and caressing,

Creeping and healing.


Theodore Roethke




(Vyacheslav Mishchenko)



Minimal


Estudo as vidas numa folha: os pequenos

Dorminhocos, traquinas paralisados em dimensões frias,

Escaravelhos em cavernas, salamandras, peixes-escorpião surdos,

Piolhos colados a ervas subterrâneas compridas e débeis,

Contorcionistas em pântanos,

E répteis bacterianos

Contorcendo-se feridas adentro

Como minúsculas enguias em lagos, 

As suas bocas lívidas beijando suturas quentes,

limpando e acariciando,

rastejando e cicatrizando.


Theodore Roethke, tradução de Maria Eu



domingo, dezembro 28, 2014

Silêncio

(At Mr. Wong's)




Até Amanhã


Sei agora como nasceu a alegria,

como nasce o vento entre barcos de papel,

como nasce a água ou o amor

quando a juventude não é uma lágrima.


É primeiro só um rumor de espuma

à roda do corpo que desperta,

sílaba espessa, beijo acumulado,

amanhecer de pássaros no sangue.


É subitamente um grito,

um grito apertado nos dentes,

galope de cavalos num horizonte

onde o mar é diurno e sem palavras.


Falei de tudo quanto amei.

De coisas que te dou

para que tu as ames comigo:

a juventude, o vento e as areias.


Eugénio de Andrade







sábado, dezembro 27, 2014

De como a glosa se compara ao original

(Ceslovas Cesnakevicius)

Amor é um fogo que arde sem se ver

Amor é um fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói, e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
É um andar solitário entre a gente;
É nunca contentar-se e contente;
É um cuidar que ganha em se perder;

É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor? 

Luís Vaz de Camões



 


Amor é um arder que se não sente

Amor é um arder que se não sente;
É ferida que dói, e não tem cura;
É febre, que no peito faz secura;
É mal, que as forças tira de repente.

É fogo, que consome ocultamente;
É dor, que mortifica a Criatura;
É ânsia, a mais cruel e a mais impura;
É frágoa, que devora o fogo ardente.

É um triste penar entre lamentos;
É um não acabar sempre penando;
É um andar metido em mil tormentos.

É suspiros lançar de quando em quando;
É quem me causa eternos sentimentos.
É quem me mata e vida me está dando.



Abade de Jazente (1719-1789)

sexta-feira, dezembro 26, 2014

Terminar um conto


( Eva Navarro)

"Talvez nada tivesse acontecido se ela não começasse a reler Jane Eyre .
(...) Se eu soubesse que tu vinhas, tinha apanhado rosas... A casa está cheia de rosas.
(...) Ele continuara a desenhá-la, a pintá-la todos aqueles anos.  (...) 
Sentiu vontade de rir. Mas era porque tinha medo, muito medo.
Eu vou-me embora amanhã de manhã.
Ele sorriu.
Já disseste isso três ou quatro vezes.
Eu sei.
Ela sentou-se no sofá. Ele ajeitou as almofadas à sua volta, como fazia antigamente. Depois pegou na garrafa de vinho que estava em cima da mesa e encheu dois copos.
Mas ficas aqui esta noite.
Está bem.
Ele tirou um disco da estante, um velho disco de vinil. Chopin.
(...) De repente, ela teve a impressão de que adormecera durante alguns segundos. Mas não podiam ter sido só uns segundos. A noite já chegara e não se via nada do outro lado da janela.
O medo voltou, mais forte do que nunca.
Acho melhor ir embora.
Ele sorriu.
Tu ficas aqui.
Ela levantou-se. E então compreendeu que não conseguia andar. No nevoeiro fraco que começava a envolvê-la, pensou que teria de aprender a voar, teria de aprender a nadar, para fugir dali.

Ana Teresa Pereira, in "Quando estávamos vivos"




Enquanto sentia o chão a fugir-lhe debaixo dos pés, tudo começou a fazer sentido. A casa cheia de rosas, o sorriso dele onde não havia surpresa pela sua chegada, o gosto levemente amargo do vinho.
Ele tinha estado sempre à sua espera e, agora que ela viera, nunca a deixaria partir de novo.

Maria Eu

quinta-feira, dezembro 25, 2014

Da arrumação


Sempre fora extremamente arrumada. Nunca deixava nada fora de sítio. As gavetas da cómoda eram meticulosamente divididas por tábuas revestidas a veludo azul escuro, ficando as meias mais curtas ao lado das de liga, depois as cuecas separadas por cor e os soutiens de cada conjunto, os bodies, tudo no seu devido lugar. O mesmo com os vestidos, as blusas, as saias, as calças, os casacos, numa ordem extraordinária.
Irritava-a de sobremaneira não poder fazer o mesmo aos sonhos. Por isso, num dia de faxina geral, pegou neles, fechou-os numa arca e atirou a chave ao rio que corria logo ali, ao lado da janela do seu quarto.

Mal ela adivinhava que, aos sonhos, não há prisão que os confine.



terça-feira, dezembro 23, 2014

Meninas III (final)

(imagem daqui)

Era sempre às sextas-feiras. Chegavam de Lisboa, de Braga, do Porto. Vinham de comboio, de autocarro, de carro. Já não usavam meias brancas rendadas até ao joelho, embora algumas das suas meias continuassem a ser rendadas, só que eram de liga, e pretas. Usavam-nas com os vestidos curtos que levavam para sair à noite, juntas. Sabiam que a Lena seria a primeira a chegar ao Marlene. Era sempre a primeira. Assim como sabiam que a Paula era a última. E, ainda, como sabiam que a Joana tinha um namorado novo, arquitecto, ou que a Ana se tinha apaixonado por uma companheira de curso e não era capaz de lho revelar. Os cursos que escolheram ditaram-lhes novas moradas mas regressavam sempre ali, ao local que as vira crescer. 
O que não sabiam, ainda, era que a vida as iria separar, uma a uma, levando a Lena para o Brasil, a Joana para uma escola minúscula na Serra da Estrela, a Ana para Londres e a Paula para o sacana do cancro. 
Ficaram as cartas que escreveram. Ficou, ainda, o eco dos seus risos de crianças-meninas-jovens, ali, na praça da vila, na esplanada do Marlene.


segunda-feira, dezembro 22, 2014

Dos blogs que encantam - Boas Festas

(Manuela Baptista, em Intemporal)


"um casaco com asas e muitos bolsos


Era uma vez um rapaz que gostava de bolsos. Grandes, pequenos, médios e assim-assim. Nos primeiros arrumava os cadernos da escola, nos segundos, as pedras redondas e as moedas, nos médios, os pacotes de leite com chocolate e nos assim-assim, tudo o que sendo invisível para os olhos da maioria das pessoas era importante. Os pensamentos e os projetos por exemplo. Não se veem, mas são reais e o rapaz guardava-os para nunca se esquecer deles. A mãe sabia costurar e ele acreditava que os seus dedos eram mágicos e que, se ela desejasse, poderia fazer-lhe um casaco com asas que lhe permitisse voar. (...)"

Porque é Natal e há blogs que nos emocionam e encantam, deixo-vos o início de um conto publicado no Intemporal. Apenas o início, para que vão lá lê-lo e se encantem também, como a cada vez que franqueio a sua porta e me deparo com imagens e textos extraordinários, ao som da voz de Philippe Jaroussky.



domingo, dezembro 21, 2014

Decisão


Há uns tempos que Maria Constança sentia uma dor que a não deixava dormir. Não sabia descrever-lhe a origem já que a tolhia por dentro, chegando, até, a sair-lhe pelos olhos, de tanto a magoar. Naquele dia, levantou-se a custo, vestiu a sua roupa preferida, foi ao jardim buscar gladíolos, encheu a casa de jarras floridas deles, pôs Nina Simone a cantar-lhe e arrumou cuidadosamente a casa. Depois, sentou-se à mesa onde tinha posto um queijo de cabra, umas fatias de broa e uma garrafa de vinho tinto alentejano. Comeu vagarosamente e, também vagarosamente, bebeu dois copos de vinho e arrumou a loiça na máquina. Então, dirigiu-se ao quarto, tirou os sapatos, o vestido, a roupa interior, deitou-se na cama onde estendera a colcha vermelha, enrolou-se nela e deixou-se morrer.



sábado, dezembro 20, 2014

Meninas II

(foto daqui)

Era sempre à sexta-feira. Escapuliam-se pelo portão das traseiras do colégio e iam, sorrindo, entre conversas segredadas, à esplanada do café Marlene. As batas brancas tinham ficado escondidas debaixo do arbusto que bordejava a janela da sala de aulas mas as meias de renda, até ao joelho, não enganavam a sua condição de colegiais. Os trocos, agora, já não serviam para cromos e rebuçados. Crescidas de mais para cromos e sem ânimo para voltarem à Sr.ª Ana para os rebuçados (aquelas escadas esconsas...), compravam um maço de "LS" no quiosque da esquina (o rapaz fazia de conta que acreditava que o compravam para os pais) e sentavam-se nas cadeiras vermelhas do Marlene a beber uma Laranjina C enquanto puxavam de um cigarro e mais se engasgavam do que fumavam, com um ar muito compenetrado, nos seus vestidos coloridos de meninas de 14 anos.
Logo, ao cair da noite, iniciariam uma das de13 anos na sua sociedade secreta de admiradoras dos Stones, leitoras de Corín Tellado e fumadoras de cigarros LS.



Meninas I

(Children playing a singing game, West Virginia, 1941.)

Era sempre à sexta-feira. Escapuliam-se pelo portão das traseiras do colégio e iam, numa correria ruidosa, a dois sítios: à mercearia do Sr. Nunes e a casa da Sr.ª Ana. Contavam os tostões para os cromos que colariam cuidadosamente na caderneta, pincelando cada rectângulo numerado de cola dourada. Eram frágeis, os cromos, nada de cola a mais, senão perdiam a graça. Rasgavam as saquetas sob o olhar divertido do Sr. Nunes, com os olhos a brilhar de expectativa, tantas vezes gorada com repetidos introcáveis. Guardados que eram nos bolsos, ficavam esquecidos por momentos em prol da guloseima que aguardava na casa da Sr.ª Ana. Ah, os rebuçados brancos, estriados, que deixavam um cheiro doce e pesado desde a cozinha à entrada. Subiam as escadas esconsas à velocidade de pernas de meninas de dez anos e, na cozinha, davam os trocos todos por rebuçados. 


sexta-feira, dezembro 19, 2014

Vermelho




Enquanto ouvia as palavras finais, desabotoou os primeiros botões da blusa, afastou o cabelo cuidadosamente para trás, deixando à mostra o pescoço alvo. Levantou o queixo, levemente trémulo, e aguardou o golpe certeiro que não tardou a atingir-lhe a jugular. O sangue jorrou, veloz, tingindo a roupa e escorrendo pelo chão. O movimento da faca apanhou-a com um sorriso levemente cínico nos lábios. Sempre gostara de vermelho.



quinta-feira, dezembro 18, 2014

A Inquietude da Isabel


(Ron Mueck)

Inquietação

O sol faz-lhe bem. Por causa da serotonina. Ajuda a fixá-la. Não sabe ao certo o que lhe causa as avarias no neurotransmissor. Parece ser um fio muito fininho que de vez em quando abana e outras vezes fica mais fino.
 A costureira já deu uns pontos, para reforçar, mas o tecido continua a escarçar. Foi sempre assim. Vai ao atelier com alguma frequência, para remendar.
O sol faz-lhe bem. O pior é quando ele anda descalço e deixa a sua alma naquela sombra sentada, como diz o Mia.

Há sempre qualquer coisa que está pra acontecer 

Qualquer coisa que eu devia perceber 

Porquê, não sei 

Porquê, não sei 

Porquê, não sei ainda

Cá dentro inquietação, inquietação 

É só inquietação, inquietação 

Porquê, não sei 

Porquê, não sei 

Porquê, não sei ainda


Isabel Pires, no seu livro "Inquietude"




À Isabel, a minha gratidão!

Do medo

(Roma Roman & Bartłomiej Zaranek)

BALADA DO MEDO

Eram quatro cavalos de silêncio negro.
Quatro esporas ferindo as éguas do canto.
Quatro asas de fumo sobre o pensamento.
Quatro sombras de medo à volta da casa.

Eram quatro nomes. E quatro navalhas.
Eram quatro paredes. E quatro guardas.
Eram quatro assassinos. E quatro espingardas.
Eram quatro sorrisos. E quatro canalhas.

Eram quatro. Eram quatro. E o meu peito batia.
Quatro lanças no sangue. Quatro gritos na voz.
Quatro lenços de vento. Quatro rosas tardias.
Eram quatro forcas. Eram quatro nós.

Eram quatro letras com rasto de lume.
Quatro olhos acesos na boca da noite.
Quatro harpas cantando a hora de um crime.
Eram quatro farpas. Eram quatro açoites.

Quatro balas. Quatro. Eram quatro, sim.
Eram quatro servos. E quatro chicotes.
Eram quatro cabeças. E quatro garrotes.
Eram sempre quatro os gritos que ouvi.

Quatro rosas negras. Quatro armas brancas.
Quatro luas velhas. Quatro aves de sono.
Quatro feridas sujas. Quatro hienas mortas.
Eram quatro lobos. Quatro cães sem dono.

Eram quatro. Eram quatro. Agora me lembro
das vozes gritando ao longo do tejo.
Eram quatro gaivotas no céu de Novembro.
Quatro mãos em sangue que agora não vejo.

Eram quatro copos. Eram quatro taças.
Eram quatro algemas. Eram quatro espadas.
Eram quatro pombas quase esfaceladas.
Eram quatro risos. E quatro desgraças.

Eram quatro, sim. Eram sempre quatro
as feridas abertas na palma da mão.
Eram quatro janelas fechadas no quarto.
Eram quatro loucos com olhos de cão.

Eram quatro tempos num tempo de medo.
Eram quatro, eram, as larvas do tédio.
Eram quatro mortes todas em segredo.
Eram quatro vidas todas sem remédio.

Foram sempre quatro as lutas que eu tive
com quatro cavalos qual deles o mais forte.
Quatro razões certas por quem um homem vive
sem temer os quatro cavalos da morte.


Joaquim Pessoa, in 125 poemas - Antologia poética





Não há faca que se não crave
luta que se não trave
palavra que se não diga
medo que se não vença.

quarta-feira, dezembro 17, 2014

Vidro

(Edward Hopper)

Clara disfarça tão bem a sua fragilidade que até lhe elogiam a força mas tem mais vidro dentro do que seria desejável, daquele fininho, que é rejeitado pelo soprador de vidro. Não sabe fugir dos golpes que lhe desferem, Clara, tampouco aprendeu artes marciais que lhe dessem aptidão para a auto-defesa. Às vezes vai para a luta só com um sorriso, mesmo sabendo que não chega. Precisa tanto de ser amada como de respirar. Sujeita a morrer por asfixia de desamor, sem se dar conta...


terça-feira, dezembro 16, 2014

Desgostar


 (Kenneth Hope)


"- O que se faz quando gostamos de alguém que não gosta de nós?"
"- Desgosta-se!"
"- E se eu não conhecer o verbo?"


domingo, dezembro 14, 2014

Hoje, esteve frio e eu fui ver o mar


(Ana Barros)

Hoje esteve frio, sabes? Tanto que fui buscar aquele casaco que só uso sob ameaça porque me faz parecer uma pequena lontra! Repara que disse "pequena"! Valeu a pena, usá-lo. Deu-me coragem para ir ver o mar. Aquele mar que nos viu abraçados e trémulos, sob  voos ruidosos de gaivotas e  olhares enviesados de pescadores. A areia já não tem as marcas dos nossos pés, lado a lado, nem as dunas guardaram o côncavo dos nossos corpos. No meu peito, ao contrário, subsiste cada marca.
Hoje, esteve frio e eu fui ver o mar.



sexta-feira, dezembro 12, 2014

A hora da verdade

(Bobbie Moline-Kramer)


Espelho meu! Espelho meu! Onde ficou aquela que era eu?



Jantar temperado com pólen

(MagicInButterflies)

Lá estava ela, a dissimulada! Imóvel, expectante! Quase se não dava por ela, naquele recanto com luz escassa. De repente, um voo, uma trajectória absurda de arriscada em vermelho vivo. Nada a reportar. A aranha nem teve que se mover. A teia cumpriu a sua função aprisionando a borboleta. 
Logo, o jantar saberá a pólen.


quinta-feira, dezembro 11, 2014

O êxtase do Amor


(Santa Tereza de Ávila, óleo francês do séc. XIX) 

Toda me entreguei, sem fim,
e de tal sorte hei trocado,
que é meu Amado para mim,
e eu sou para meu Amado.


Santa Tereza D´Ávila


(pormenor da escultura O êxase de Santa Tereza, de Gian Lorenzo Bernini)


O Amor desmedido de Tereza por Deus, numa dedicação imensa que, para além de espiritual, se torna perceptível como carnal, entre delírios e êxtases.


                                                 

quarta-feira, dezembro 10, 2014

Por de mais falível




Maria Rita tem aquele jeito que parece nunca se perturbar. Traz consigo um sorriso doce e uma vontade de conciliar os desavindos. Maria Rita cedo descobre que o ditado que a sua professora de Inglês lhe ensinara com tanto entusiasmo, "where there's a will, there's a way", e que sempre lhe amansara o coração, é por de mais falível.


terça-feira, dezembro 09, 2014

Esta leitora, Xilre, espera!

(Mapplethorpe)


A Leitora

A leitora abre o espaço num sopro subtil.
Lê na violência e no espanto da brancura.
Principia apaixonada, de surpresa em surpresa.
Ilumina e inunda e dissemina de arco em arco.
Ela fala com as pedras do livro, com as sílabas da sombra.

Ela adere à matéria porosa, à madeira do vento.
Desce pelos bosques como uma menina descalça.
Aproxima-se das praias onde o corpo se eleva
em chama de água. Na imaculada superfície
ou na espessura latejante, despe-se das formas,

branca no ar. É um torvelinho harmonioso,
um pássaro suspenso. A terra ergue-se inteira
na sede obscura de palavras verticais.
A água move-se até ao seu princípio puro.
O poema é um arbusto que não cessa de tremer.


 António Ramos Rosa, in "Volante Verde"




Esta leitora, Xilre, vai ficar à espera do torvelinho de todas as palavras: verticais, horizontais, redondas, quadradas, triangulares... 


domingo, dezembro 07, 2014

Eu que não sou Eu



O Eu que Clara era não era o Eu que a deixavam ser. Mas seria Clara o mesmo Eu, ainda que  lhe fosse permitido sê-lo?


sábado, dezembro 06, 2014

Falta

(Rebecca McGetrick)

Para Maria Antónia, a coisa mais estranha não era sentir-lhe a falta, era sentir saudades dos seus ciúmes. Talvez por (pres)sentir que, nele, aquele ciúme poderia ser o que mais de semelhante havia ao amor.


sexta-feira, dezembro 05, 2014

O agente traído



 (imagem daqui)


Christine aconchegou-se no banco e pousou a cabeça no meu ombro. Ainda a sentia tremer. O carro de mudanças automáticas permitia-me abraçá-la sem fazer perigar a condução. Apenas um pormenor me deixara a rememorar o que acontecera no restaurante, a insistência de Christine em ficar até que vissemos quem necessitara de assistência urgente. Depressa esqueci esse detalhe absurdo. Chegáramos ao hotel e, logo no elevador, os beijos inflamados e as mãos daquela mulher ardente por dentro do meu casaco fizeram-me arrastá-la para o quarto e atirá-la para a cama sem delongas.

Nem me dei conta de que, ao despir as calças, a soqueira tinha resvalado para o chão, indo parar debaixo da cadeira onde jaziam, amarrotadas, as roupas de Christine.

Acordei com o sol a bater-me na cara e a estranha sensação de não me conseguir mexer. Abri os olhos, a custo, e vi Christine de pé, já vestida, com uma Smith & Wesson .38 na mão. Estava manietado e, nitidamente, tinha sido drogado.
- Já acordou! disse, como se estivesse mais alguém no quarto.
- Veremos quem bate melhor, agora! respondeu uma voz masculina.

Voltei a cara para o lado esquerdo, de onde viera a resposta. O motherfucker estava sentado no sofá, cara inchada, um dos olhos fechados por baixo de um papo roxo, com a minha soqueira na mão.

(Com as minhas desculpas ao Xilre, por ter ousado dar continuidade à sua história e com gratidão por despertar esta vontade. Com o meu agradecimento ao xpto, por me fazer recordar as dezenas de livros policiais que se escondem no lugar mais inacessível das minhas estantes.)

 

quinta-feira, dezembro 04, 2014

Facas


(Caroline Murtagh)

depois de ler A Faca Não Corta (de Herberto Helder)

Ah, essa faca
não corta o fogo
mas corta
o coração da pedra
florescendo
em palavras-pétalas
de ouro

(eu disse ouro?
mas quero dizer
brasa
carvão em brasa
ardendo
na fornalha)

e corta a veia
no fio
do horizonte

deixando ver
um sangue
delicado

voz abafada

grito nascendo

dessa faca
no fogo
desse corpo

(eu disse corpo?
mas quero dizer
treva
Ungrund *
buraco negro
da alma
ferida
mortalmente

Yvette Centeno


* conceito do filósofo alemão Jacob Bohme, por vezes atribuido a Eckhart, que significa (simplisticamente) "abismo interior".





Há facas 
invisíveis
gumes afiados
que cortam 
mais fundo

Há facas
mais fundas
que as vísceras
mais fundas
que o osso

Há facas 
que laceram 
a alma

Maria Eu

quarta-feira, dezembro 03, 2014

Xô! Xô!

(David Wilcox)


Todo o dia me disseram dos desgostos, dos mortos, dos fantasmas. Sentados naquela mesa redonda estávamos quatro e três tinham mais do que outros tantos a acompanhá-los. Filhos no colo, pais apoiados no ombro, avós amparados no braço, maridos e namorados a deambular de um lado para o outro da sala. Não quis falar. Os meus desgostos, mortos e fantasmas ficaram lá dentro, na minha despensa, fechados. Ia lá querer que a avó Liliana, tão delicada, viesse conhecer o avô da Cristina, um brutamontes que dava com a bengala na mulher quando esta se atrasava com o almoço! Mesmo o António, aquele namorado parvo que metia dó, que costumava cantar o "Smoke on the water" (lá bom gosto musical tinha...) enquanto me segurava pela cintura e me abraçava, logo depois de regressado de casa da Joana, onde também cantara Pink Floyd e a abraçara pela cintura, não ia achar piada nenhuma ao namorado da Lena, aquele rapaz de ar enfermo que nunca se ria.
Os filhos, até vá que não vá, à excepção do ranhoso do Gasparzinho que, não lhe bastando ter sempre o nariz cheio de moncos (até fazia bolas ao respirar, blhec), dava cabo de qualquer objecto que encontrasse pela frente, nem que fosse de aço!
Levantei-me da mesa e deixei-os todos lá, os três mais a cambada de gente que cada um trazia consigo. Ora, que vão para o Diabo que os carregue! Ou então, que os tranquem na despensa!



terça-feira, dezembro 02, 2014

Plano de poupança

(Alex Bland)

"A nota de banco
Não ter dinheiro pode ser um problema. Simão não tinha dinheiro. E por silogismo, Simão tinha um problema. Para resolver o problema (solução precária), disfarçou-se de nota graúda (dava jeito ser um homem alto) e dirigiu-se a um banco para se destrocar por matéria fiduciária. Quando chegou à sucursal, disfarçado com a barba hisurta de Vasco da Gama e a gargantilha coçada de Camões, lembrou-se porém que era um velho escudo. E o bancário podia desconfiar da efígie. Na hora h depositou-se nu no cofre central como um plano de poupança."

Tiago Salazar, in Herbário



Presumo que existam muitos com o mesmo problema de Simão. Haja cofres de dimensão suficiente para albergar tantos quantos carecem de dinheiro.

segunda-feira, dezembro 01, 2014

Personificar Edward Hopper


Edward Hopper (1882 - 1967), pintor americano. A pureza e a crueza retratadas tão perto do real que quase são fotografias, os seus quadros, como que parte de um cenário. A solidão, sempre a solidão, a cidade, os dinners, os postos de gasolina que pululam nos subúrbios dos EUA, e o mar, os barcos à vela levados pelo vento e pelas mãos sábias do velejador. Apaixonei-me por Hopper por acaso, confirmei a paixão nas obras que vi no MoMA, em NY,  e no Thyssen, em Madrid. Alimento-a, pois.