quinta-feira, setembro 29, 2016

Brincadeira


A mulher lia o jornal, em pose descontraída, folheando-o vagarosamente na mesa da esplanada, onde uma chávena de café vazia, com uma marca vermelha de batôn na borda, repousava virada para ela. A menina surgiu ao lado dela, passitos pequeninos mas rápidos. Ria-se e batia palmas. Abriu-se um sorriso na cara da leitora do jornal, fechado e arrumado de seguida. Começou uma brincadeira entre as duas. Uma conversa entrecortada por (sor)risos, mãos a bater umas nas outras, pés a imitar sapateados. De repente, a menina olhou fixamente a parceira de folia e disparou:
- “Tu tens muitos anos?”
A mulher, sempre a sorrir, respondeu:
- “Tenho, pois! Mesmo muitos!”
- “Ah! Tens muitos mas sabes brincar mesmo bem!”, disse a menina.

E ali ficaram, brincando.

sábado, setembro 24, 2016

Primavera

(Mart Adam)

Havia uma flor nos lábios dela quando dizia Primavera. E de onde houvera um deserto quando dissera Verão, gelo ao pronunciar Inverno ou ramos nus soletrando Ou-to-no, brotava agora uma corola rubra.


sábado, setembro 17, 2016

Invisível

(Norman Rockwell)

Quando se tornou invisível, decidiu nunca mais permitir que mandassem em si. Foi então que, pela primeira vez desde há muito tempo, viu a sua imagem reflectida nos olhos de outra pessoa.


sexta-feira, setembro 16, 2016

Combustão



(
Alberto Burri )

Combustion


          If a human body has two-hundred-and-six bones
and thirty trillion cells, and each cell
has one hundred trillion atoms, if the spine
has thirty-three vertebrae—
if each atom
has a shadow—then the lilacs across the yard
are nebulae beginning to star.
If the fruit flies that settle on the orange
on the table rise
like the photons
from a bomb fire miles away,
my thoughts at the moment of explosion
are nails suspended
in a jar of honey.
                           
                                    I peel the orange
for you, spread the honey on your toast.
When our skin touches
our atoms touch, their shadows
merging into a shadow galaxy.
And if echoes are shadows
of sounds, if each hexagonal cell in the body
is a dark pool of jelly,
if within each cell
drones another cell—
                   The moment the bomb explodes
the man’s spine bends like its shadow
across the road.
The moment he loses his hearing
I think you are calling me
from across the house
because my ears start to ring.
From the kitchen window
               I see the lilacs crackling like static
as if erasing, teleporting,
thousands of bees rising from the blossoms:
tiny flames in the sun.
I lick the knife
and the honey pierces my tongue:
                      a nail made of light.
My body is wrapped in honey. When I step outside
                          I become fire.


Sara Eliza Johnson





Combustão

      Se o corpo humano tem duzentos e seis ossos
e trinta triliões de células e cada célula
tem cem triliões de átomos, se a coluna vertebral
tem trinta e três vértebras—
se cada átomo
tem uma sombra—então os lilases do outro lado do pátio
são nebulosas começando a fulgir.
Se as moscas da fruta que poisam na laranja
pousada na mesa se erguem
como fotões
do incêndio
de um bombardeamento a milhas de distância,
Os meus pensamentos no momento da explosão
são unhas suspensas 
num frasco de mel.
                   Eu descasco a laranja
para ti, barro o mel na tua torrada.
Quando a nossa pele se toca
os nossos átomos se tocam, as suas sombras
confundindo-se numa galáxia de sombra.
E se os ecos são sombras
de sons, se cada célula hexagonal do corpo
é um poço escuro de geleia,
se dentro de cada célula
pulsa uma outra célula
               No momento em que a bomba explode
a coluna do homem curva-se como a sua sombra
sobre a estrada.
No momento em que ele ensurdece
Eu julgo que tu me chamas
do outro lado da casa
porque os meus ouvidos começam a vibrar.
Da janela da cozinha
             eu vejo os lilases faiscando, estáticos
como que apagando, transmutando,
milhares de abelhas a erguerem-se das flores:
minúsculas chamas na luz do sol.
Eu lambo a faca
e o mel terebra a minha língua
              uma unha feita de luz.
O meu corpo está coberto de mel. Quando saio para a luz
              incendeio-me.

Sara Eliza Johnson traduzida por Maria Eu

segunda-feira, setembro 12, 2016

Da relativização da perda


(Andres Serrano)

Maria Inês subiu os degraus de acesso à porta de entrada, escancarada de par em par. Apesar de não conhecer a casa, soube para onde se dirigir. O cheiro forte a flores e cera, assim como o eco das vozes femininas a responderem ao terço, indicavam o local do velório. Na sala, envolta numa semi-penumbra, o féretro ao centro e, a rodeá-lo, a fila de cadeiras  onde as mulheres se sentavam, rezando ao mote da Dona Regina, mulher rubicunda, corada, com ar levemente debochado, de quem se dizia suspirar nos braços do Padre João depois da missa das sete. De pé, à cabeceira do defunto, Dona Ana recebia os pêsames, olhos secos e fixos num ponto indefinido, boca apertada num rito amargo. Também Maria Inês a abraçou, murmurando um "sinto muito pela sua perda", sentindo-lhe a distância polida no agradecimento breve. Sentou-se, por momentos, numa das cadeiras mais perto de uma das janelas cobertas por pesados cortinados de riscas castanhas e beijes, mesmo atrás da enlutada. Foi no momento em que se levantava para a despedida que entraram as irmãs Valença, conhecidas pela sua absoluta falta de tacto. Entre beijos ruidosos e suspirosos "coitadinha", "pobrezinha", perguntou, uma delas, de chofre: "Como consegue não chorar, Ana?". A sala gelou. Até as preces passaram a sussurros. Ouviu-se, então, a voz rouca e arrastada de Dona Ana: "A quem perdeu um filho para o mar e outro para o fogo, não sobram lágrimas para chorar o marido que morreu de doença prolongada!"


terça-feira, setembro 06, 2016

As cores do amor


AMOR VIOLETA

O amor me fere é debaixo do braço,
de um vão entre as costelas.
Atinge meu coração é por esta via inclinada.
Eu ponho o amor no pilão com cinza
e grão de roxo e soco. Macero ele,
faço dele cataplasma
e ponho sobre a ferida.

Adélia Prado

(Mark Rothko)

AMOR AZUL
O amor atinge-me no olhar,
ali, onde a íris reage à luz.
Fere-me o coração assim, iluminado.
Levo-o nas mãos até ao mar azul
a um tempo doce e feroz. Mergulho-o,
diluo-o na espuma das ondas
e abismo-me nele, inteira.

Maria Eu


domingo, setembro 04, 2016

Declaração de amor

(Carolyn Weltman)

Meu Homem. Meu embondeiro. Meu cravo vermelho.  Meu perfume. Minha escada. Minha estrela. Minha chuva de Verão. Minha fogueira de Inverno. Meu ombro. Meu colo. Meu abraço imenso. Minhas mãos ternas. Meu presente. Meu amigo. Meu amante. Meu amor.


sábado, setembro 03, 2016

Não foi Setembro. Quem sabe, Outubro...

(Lester Rapaport)


Doeu-lhe Agosto como há muito lhe não doía mês algum. Abateu-se sobre ela uma solidão acompanhada, feita de conversas sobre receitas de salmão e bolo de chocolate, risos agudos, músicas de altifalantes e buzinas em cortejos festivos de casamentos. Sacudia a cabeça como que a tentar acordar daquela dor fina que lhe tolhia as pernas e lhe dava um leve esgar de sarcasmo permanente nos lábios. Desejou Setembro. Porém, entrado o novo mês, apenas as pernas começaram a sentir um pequeno alívio, fruto do milagroso gel de aloé vera que Joana espalhava, a cada fim de tarde, com mãos leves e quentes. Quem sabe, em Outubro...