quarta-feira, fevereiro 26, 2020

Alegria

(Ana Luísa Pinto)


Havia uma menina na varanda, toda ela graça e alegria. Era uma varanda antiga, numa casa grande, pintada de branco, escancarada de grandes janelas envidraçadas. Quando o sol vinha e a cobria de beijos, não havia vidro que não brilhasse, à semelhança dos olhos da menina.
Nem no rigor do Inverno deixavam de se ouvir as gargalhadas límpidas, percebendo-se, na amurada, o gorro vermelho de lã encimado por um pompom multicolor.
As árvores, embora a ritmo mais moderado, iam crescendo com ela (Clarinha, ouvira chamar-lhe) e pareciam inclinar-se para servir-lhe de protecção. Permitiam-lhe, ainda, ensaiar cantos, em coro com o chilreio do pássaro que, todos os anos, construía o ninho nesses ramos.
Frondosas, as árvores, fechadas, as vidraças, calado o pássaro, ausente, Clarinha. 
Foram tempos estranhos aos passantes, habituados que estavam a abrandarem o passo, à escuta.
Até que correu notícia do regresso. O pássaro desatou num canto tão melodioso e ininterrupto, que era impossível não parar a ouvi-lo. Ao fundo, uma voz alegre de rapariga, toda ela graça e alegria.


(Lola Marsh - She's a Rainbow)

domingo, fevereiro 23, 2020

Depois da luz, o abismo.

Benoit Rousseau

A luz da manhã, crua e enfarruscada, deixava a olho nu a sordidez do lugar que, durante a noite, lhe parecera belo e cálido. A cadeira onde se sentara, com ela ao colo, entre beijos e goles de vinho tinto, devia ter sido abandonada nalguma mudança de casa, contando com três protectores nas suas quatro pernas e revelando ferrugem corroendo as travessas das costas. Do candeeiro, agora apagado, restava a sombra esquálida, contrastando com a luz amarela ainda agora projectada nos amantes enlaçados. Deixou a garrafa vazia escorregar para o cimento marcado pelos milhares de percursos por ali calcorreados. Afinal, ela partira antes do último gole, antes da última carícia.
Levantou-se vagarosamente, a tristeza agarrada à pele como se tivesse sido tomado por um imenso cansaço, um desalento antigo de tanto doer. A ponte estava ali. Debruçou-se nela. O rio corria, impetuoso, formando ondas, galgando pedras. 
O rio... O rio ali tão perto...


(The Be Good Tanyas - Waiting Around to Die)

segunda-feira, fevereiro 17, 2020

Pontes

                                                                (Tony's world)

À medida que a saudade ficava mais funda, ia construindo uma ponte mar adentro, na esperança de que houvesse outra praia, onde outra ponte estivesse a ser construída. Não tardaria e seriam uma só.


(Losekes Blues Gang - That Kind of Feeling)