segunda-feira, dezembro 24, 2018

Natal


Havia dias, demasiados dias, já, em que os monstros se demoravam pelas horas nocturnas, ensombrando-lhe os sonhos. 
Deu-se, então, conta que as jarras tinham azevinho, de algumas janelas evolava-se o cheiro doce dos fritos envolvidos em açúcar e canela e o calendário tinha a palavra Natal  escrita a vermelho vivo a pouco mais de um dia. Quisera ter-se alegrado na antecipação da ceia, do brilho no olhar das crianças à descoberta dos presentes, das horas lânguidas à roda da lareira... Não fossem as cadeiras vazias... 
Mas era quase Natal, tempo de anjos. Haveria anjos, decerto, sentados à mesa. 
Seria a noite derradeira para os monstros. Os seus sonhos seriam povoados por revoadas de asas brancas.

FELIZ NATAL!



terça-feira, dezembro 11, 2018

Monstros

(Flina, Deviantart)

Não sabia o que esperar. A vida assemelhava-se a um refluxo ácido e corrosivo, trazendo ao de cima os medos que a perseguiam desde a infância. Na escuridão dos recantos da casa desenhavam-se monstros projectados pela luz difusa dos candeeiros envolvidos em abjours opacos.
Vinham, rastejantes, olhos de fogo, trazendo os desgostos, os mortos, as dores.
Talvez fosse por eles, os seres que lhe enchiam as noites que, durante o dia, buscava a claridade das memórias luminosas. Talvez fossem contaminados e abandonassem o breu.



sábado, novembro 17, 2018

Um dia...


(Aykut Aydogdu)

Cansava-se amiúde da complacência para com a rotina de conversas inúteis, em reuniões igualmente inúteis, que a arrastavam em dias intermináveis. 
Um dia, pensou, um dia dou um murro na mesa e grito "basta"! 


quarta-feira, novembro 14, 2018

Combustão



Cravam-se os dedos na carne rosada e quente, ansiosos 
Tremem os lábios, húmidos de beijos, ávidos
Corpo e alma em combustão, insaciáveis
Juntos, pó, cinza, nada, tudo.



terça-feira, novembro 06, 2018

Presença


Existia um lugar, para lá do horizonte, onde a ausência era nada mais do que a reescrita de cada momento no avesso do corpo, na nudez da alma.
Era aí que se transformava em presença.


sábado, outubro 27, 2018

O rapaz que fabricava pesadelos

(Victoria Ivanova)

O rapaz que fabricava pesadelos vivia numa constante vigília. Dedicado profissional, tinha sempre à mão um quarto escuro, uivos de dor, vampiros e lobisomens. Havia muito tempo que o fazia, tanto que já nem se recordava como era dormir sem o frio do terror a pairar sobre a sua cabeça. O tempo estagnara, imerso em negrume.
Tinha-lhe, ainda, sido atribuída a tarefa de perseguir e destruir os sonhos que a rapariga fabricava com igual empenho que o dele em fabricar pesadelos. Descobrira que tinham começado a ser enviados em pequenos barcos de papel dourado e apressou-se a construir uma tesoura gigante para os cortar, afundando o mundo solar que transportavam.
Num dia particularmente sombrio, talvez porque não se dera ao cuidado de afiar a tesoura usada vezes sem fim, um dos barcos veio arrastado, inteiro, por uma das lâminas. Atingiu-o um raio intenso de sol e o voo rasante de um bando de pardais chilreantes entrou-lhe quarto adentro. Nessa noite, dormiu sem sobressaltos, embalado pelos sonhos que a rapariga tecera cuidadosamente, prevendo ser ele o destinatário.


quinta-feira, outubro 25, 2018

A rapariga que fabricava sonhos


(Victoria Ivanova)


A rapariga que fabricava sonhos cansara-se da rotina da entrega porta a porta. Doíam-lhe os pés dos caminhos trilhados noite dentro, sonhos empilhados dentro da mochila, alças largas a marcarem-lhe os ombros de vergões vermelhos e dolorosos.
Assim, a rapariga que fabricava sonhos resolveu acumular tarefas e construir, também, barcos de papel. Não de um papel qualquer, que isso não condizia com as fadas, os unicórnios, as princesas e os príncipes, ou qualquer uma das outras criaturas que costumava usar todos os dias, mas sim de folhas lisas, brilhantes, num tom de amarelo a fazer lembrar o ouro. Seria nelas, nas douradas embarcações, que passaria a enviar seres fantásticos, sorrisos, bailados e tudo aquilo que a sua imaginação era capaz de fantasiar.
Mal sabia, a rapariga, que o rapaz que fabricava pesadelos odiava barcos de papel, ainda mais se fossem portadores de ilusões.



terça-feira, outubro 16, 2018

domingo, outubro 14, 2018

quarta-feira, outubro 10, 2018

sábado, setembro 22, 2018

Morte

Dario Puggioni


Os caçadores de almas e os de vidas andam sempre aos pares. Distinguem-se os primeiros por trazerem um varapau com mordaças, enquanto os segundos cravam os dentes numa faca de aço com fio acerado e brilhante.
Às almas, as mordaças tomam-lhes a expressão, abafam-lhes o brilho.
Às vidas, roubam-nas depois, num golpe rápido, sangrando-as sem piedade.


terça-feira, setembro 11, 2018

Fuga


Pretensamente, ao cruzar a soleira da porta, atravessava a fronteira da dor. Estranhamente, essa dor não ficara para trás, naquele lugar onde adivinhava/sabia uns ombros frágeis a agitarem-se em soluços, um olhar a arder nas suas costas, como que adivinhado o colapso interior, o sentimento de culpa a apunhalar-lhe o coração.


quinta-feira, setembro 06, 2018

Nudez





Dizem-se do coração, de como galopa a um olhar, de como sangra a cada ausência.
Encantam-se do toque, a um tempo levíssimo e a outro intenso, de como arde.

Despem-se de si para não serem senão eles.


quarta-feira, agosto 22, 2018

segunda-feira, agosto 20, 2018

A visão do Luís

Sonhou que tinha raízes. Saiu para andar descalça na terra.


Sonhou que se consumia em chamas. Debulhou-se em lágrimas até apagá-las.




Às vezes, a blogosfera traz-nos boas surpresas. O Luís leu os meus "modos férias" e deu-lhes a arte do desenho. Tão bonito!


sexta-feira, agosto 17, 2018

A menina de seu pai



Nasceu mulher para desgosto de seu pai, que queria um homem.
"- Que feia!" Observara, sem cuidar dos olhos húmidos da parturiente, cansados das horas de dor e ânsia, mas já apaixonados pela criatura vermelhusca e enrugada que se agitava, num vagido fraco, ao seu lado.
Cedo começou a fugir das bonecas e das loiças de porcelana. Fazia das árvores poiso habitual, dos muros escadas e dos campos pistas de corrida.
Ao final do dia, entrava em casa pé ante pé, tentando esconder os joelhos esfolados e os rasgões na roupa.
O pai, há muito que mantinha um brilho no olhar quando o repousava nela, cúmplice nas desculpas para as escapadelas de maria-rapaz.
Foi crescendo, assim, menina de seu pai.

Desnascia, tantos anos depois. Ouvia-lhe a voz, à sua menina, mas a dele não saía da garganta frágil e os olhos teimavam em não se abrir.
Sabia que chorava pelo tom inseguro com que lhe dizia:
"- Estou aqui, pai! Sou eu, a sua menina! Já pode partir!"




quinta-feira, agosto 16, 2018

segunda-feira, agosto 13, 2018

segunda-feira, agosto 06, 2018

Modo férias I



(anne-laure djaballah)

Sê parca nas palavras.
Podes, no entanto, escolher um punhado delas para não desaprenderes o ofício da escrita.

Liberdade

(Mahi Chafik)

Desde menina que lhe diziam como devia fazer para manter a compostura de uma verdadeira senhora: gestos suaves; voz modulada e baixa; saia puxada para os joelhos, bem juntos, a encimar as pernas ligeiramente inclinadas quando sentada; cabelo alinhado; apertos de mão nem muito firmes nem muito lassos; conversas sem discordâncias abertas e muito menos provocações para debates acesos...
Levou anos assim, discreta, até que descobriu que não queria ser uma verdadeira senhora e, num dia de sol, se descalçou, sandálias nas mãos, cabelo ao vento, numa conversa recheada de gargalhadas e palavras que se atropelavam, deixando traços erráticos na areia molhada da praia a par dos de outro par de pés, igualmente descalços.


sábado, julho 21, 2018

Viagem perfumada



O rapaz vestido de Hugo Boss e Guess, tirou o portátil da mala Mont Blanc, colocou-o em cima da mesa ao lado de dois telemóveis topo de gama, tapou os ouvidos com uns auriculares Sennheiser e desligou do mundo, rindo de vez em quando para o écran. Tinha subido em Coimbra e deixara um rastro de Terre D'Hèrmes pela coxia.
Em Aveiro, a rapariga rescendendo a banho recente com gel de frutos vermelhos, de vestido solto, florido, e sandálias rasas, apressou-se, bilhete na mão e mochila de cor indefinida às costas, até encontrar o lugar frente ao rapaz high tech que nunca mais olhou para o computador, sorrindo, encantado, para a nova companheira de viagem.
Apearam-se na mesma estação. Quem sabe apanharam o mesmo táxi?


terça-feira, julho 03, 2018

Festa


(João Cutileiro)


arderes no brando lume
dos meus beijos
rutilando o meu corpo
em tua chama

nós
fogo de artifício
festa

Maria Eu



sábado, junho 30, 2018

Infância

(Andrea Constantini)

Joana tinha sido despertada do torpor que a assaltara depois do almoço pela voz chilreante do menino que brincava sozinho no jardim. Sentara-se num banco confortavelmente refrescado por um rododendro de flores rubras e vivas, que deixavam cair uma pétala de quando em vez ao beijo suave do vento.
Devia ter uns cinco anos, o menino do carrinho amarelo. Chegavam-lhe algumas frases soltas: Vai! Voa! Olha o passarinho ali! Logo, vamos dormir com o ursinho, sim? Vruuuuuum! Vruuuuum!
Sorriu e recordou as brincadeiras no jardim da casa grande: pés descalços, cabelos em desalinho, em perseguição de um pardalito mais jovem; joelhos na terra, olhos brilhantes à espreita de um grilo cantor que se escondia no fundo do pequeno buraco; gargalhadas sonoras em reboladelas com o Juno, cão rafeiro e atrevido, a fazer-lhe cócegas nas pernas com a cauda irrequieta...
Levantou-se, aproximou-se do pequeno automobilista improvisado, sentou-se no chão, e disse-lhe: Queres fazer uma pista de terra para o teu carrinho?


terça-feira, junho 12, 2018

Torradas com chá de rooibos


(Jean Metzinger )

Sabia que o frio entrava sempre que a porta verde se abria, a cada cliente que entrava em busca de um café ou de um chá que lhes revigorasse a alma ou quando se arrastavam, a custo, para a rua envolta em bruma molhada de chuva. Não se importava com o arrepio que a sacudia e trocava o calor macio das mesas mais protegidas pelas recordações que aquela lhe trazia. Por isso, os olhos perdiam-se-lhe num ponto distante no espaço e se lhe abriam os lábios num sorriso luminoso enquanto comia uma torrada dourada acompanhada por um chá de rooibos.


sábado, junho 02, 2018

Amor de tempos idos

(imagem daqui)


Disse-lhe que estava bonita, que há muito tempo que a não via assim tão alegre e jovial.
Ela sorriu com doçura e esqueceu, por momentos, que ambos passavam dos 90, repenicando-lhe um beijo nos lábios.


domingo, maio 20, 2018

Luz

(Vincent Van Gogh)


Tinham sido tempos difíceis. Bebiana e João chegaram aos quarenta sem que no céu houvesse uma única estrela ou fossem abençoados com um filho. Frente ao caldo da ceia, já nem levantavam os olhos da malga, mergulhados num silêncio pesado embrulhado no cansaço dos dias e na escuridão das noites.
Naquele final de tarde, Bebiana sentiu uma vontade enorme de comer nêsperas. Raio de coisa, para o que lhe havia de dar, pensou João, saindo de casa para encostar a escada à nespereira onde despontavam meia dúzia de frutos mirrados. Bastou a novidade para que se olhassem como há muito tempo não faziam. Conta-se que foi nessa noite que Luz foi concebida. Estranhamente, tantos anos volvidos, uma estrela surgiu, solitária, visível por detrás dos montes que rodeavam a aldeia. 
Quando rebentaram as águas a Bebiana e as mãos hábeis da Sr.ª Tina seguraram Luz em prantos, rasgou-se o negrume, pontilhando-se de milhares de estrelas.



domingo, maio 06, 2018

Sem palavras

(imagem daqui)

A palavra teimava na reclusão. Apoucava-se na oralidade fácil, qual romance de cordel. Enrolava-se em saudações rápidas, ordens incisivas e curtas, perguntas inopinadas. Sem que se desse conta, os dedos deixavam de desenhar as letras, de somá-las, uma a uma, contando enredos de histórias imaginárias, de vidas outras, de sonhos (des)feitos. 
Disseram-lhe que o tempo delas, das palavras grávidas de sentido(s), estava a acabar e ela acreditou, olhando com tristeza os dedos secos de tinta sombreando o papel imaculado de tão branco.



Uns sufocavam de palavras, ela, da falta delas.


quinta-feira, abril 26, 2018

Abril





azul
gaivotas famintas longe
longe do mar

vermelho
cravos sem armas
aos ombros

sal, sangue, grito
ABRIL




quarta-feira, abril 18, 2018

Enquanto for o tempo

(Dorina Costras)


Vive o amor com sofreguidão. Pega-lhe com ambas as mãos, olha-o de frente, bem no fundo dos olhos, beija-o na boca e deixa-te ficar enquanto for o tempo dele. 


domingo, abril 08, 2018

Bananas

(Debra Sisson)

Era a décima dos irmãos. Bem, julgava sê-lo, porque soubera que tinham sido quinze. Dois nados mortos e três que não haviam resistido  a poucos meses de vida. A casa transformara-se quinze vezes em maternidade, com gritos de dor ecoando pelos corredores e mulheres em correrias entre a cozinha e o quarto onde tudo se passava, transportando panelas de água quente e baldes com panos brancos que não tardavam em regressar manchados de sangue e vómito. Contara-lhe uma das irmãs, mais velha vinte anos, que a mãe desaparecia de circulação durante um mês, alimentada a caldos de galinha e bolachas de baunilha. 
Bolachas de baunilha? perguntara, de olhos arregalados. Aquilo era luxo que só entrava em casa pela Páscoa!
E bananas! acrescentara a irmã.
Bananas!!! Isso é que era bom!!! A tia Antonieta trazia sempre bananas quando vinha de visita do Porto. Bananas, ananás dos Açores e tabletes de chocolate "A Vianense".

Sacudiu o torpor das pernas debilitadas, esticou-se até às canadianas, e ergueu-se, a custo, do sofá onde passava os dias. Na fruteira da cozinha havia um cacho de bananas da Madeira mesmo no ponto de serem comidas.


terça-feira, março 27, 2018

Ressurreição



(Tina Maria Elena)


Arderam num incêndio de tal forma prolongado que nada restou senão cinzas. Dispersaram-se, juntas, levadas pelo vento, e perderam-se no mar. 
Diz-se que, nas noites de luar, eles regressam à praia, erguendo-se da espuma das ondas, e se deitam juntos, até arderem de novo, uma e outra vez.


domingo, março 18, 2018

Mãos de dar


(Stephen Morris)

Do seu menos de um metro de altura, esticava-se, em bicos de pés, para beijar o rosto jovem da sua mãe. Depois, ela dava-lhe a mão e seguiam, tagarelando.

Do alto da sua altura adulta, dobrava-se, joelhos quase a tocar o chão, para beijar o rosto enrugado da sua mãe. Depois, sentava-se ao lado da cama, segurando-lhe a mão, enquanto lhe contava do mundo lá fora.


terça-feira, março 06, 2018

Dos momentos felizes

(Joan Miro)

Já fui feliz:
a colher malmequeres amarelos e a fazer deles grinaldas e colares de princesa;
a trepar às figueiras e cerejeiras para comer frutos maduros; 
a fazer casas nas árvores, bonecas em espanto suspensas nos ramos;
a saltar à corda, jogar à macaca e ao pião nos caminhos da aldeia;
a brincar na areia da praia, e a chapinhar na água do rio e do mar;
a ler noite dentro toda a espécie de livros, até de lanterna, debaixo dos lençóis;
a aninhar-me na cama dos meus pais ao Domingo de manhã;
a cantar e  a rir ruidosamente, na cozinha, com a irmã e a mãe;
a sonhar com o rapaz de sorriso bonito que morava na mesma rua;
a ouvir discos de vinil de música francesa e programas de rádio;
a comer arroz de grelos com chouriça e bolo de canela à sobremesa;
a andar nos carrinhos de choque e no carrossel em festas populares;
a dar as mãos, coração em sobressalto, sem que ninguém visse;
a beijar e a ser beijada, sempre como se fosse a primeira vez;
a imaginar o rosto do meu filho, ainda por nascer;
a tê-lo nos braços, ainda enrugado, mesmo que a chorar;
a ver lugares, edifícios, arte e povos diversos;
a manifestar-me, bandeiras e slogans, pelos direitos (meus e de outros);
a aninhar-me nos braços  de quem amo;
...
Já fui tão feliz!


domingo, março 04, 2018

Da noite dolorosa

(rhythm of pain Painting by Bing Lk)

Sabia-se perecível. Os sinais estavam todos lá. Noites pintadas a negro com laivos laranja de dor, os nervos, tensos, em miados silenciados por garras na garganta. Enrolava-se numa bola, os joelhos de encontro ao peito, abraçados, como a um amante prestes a despedir-se de uma noite de amor desvairado.
A madrugada costumava vir de rompante, cegando-a, por mais débil que fosse a luz. Esperava pela manhã cerrando os olhos com força, alimentando-se da amargura das horas vazias e, ao toque do despertador, sacudia o corpo, lavava a alma juntamente com ele, maquilhava ambos e saía para trabalhar.

terça-feira, fevereiro 27, 2018

Dilúvio

(Pupsikas, in Deviantart)

Há muito tempo que não me cruzava com Maria Antónia. Hoje, enquanto corria na rua, guarda-chuva aberto em protecção da água que tanto se fizera desejar, vi-a. Refugiara-se num recanto abrigado onde se intersectavam as varandas dos prédios azuis, cabelo e roupa encharcados, olhar fixo num ponto imaginário. Inverti o passo de corrida para lhe dar um beijo. Que sim. Que estava bem. Que não era nada daquilo que diziam. E eu, sem saber do que diziam, fiquei a olhá-la, muda. Foi então que choveram os olhos de Maria Antónia e o corpo molhado tremeu, tremeu, em soluços convulsivos, sem que disséssemos uma só palavra, para ali, abraçadas, como se o mundo dela desabasse sobre os meus ombros.
Que não. Que não teria muito mais tempo para andar à chuva, nem  para esperar que o seu João viesse, lá do outro lado do Atlântico. Talvez uma semana.
E não houve guarda-chuva que me salvasse desse dilúvio de desventura.


domingo, fevereiro 18, 2018

Menino


(Paul Bond)


Carlos envelhecera sem se dar conta. Ainda agora era o menino que corria em brincadeiras de esconde-esconde, soltava o pião e procurava tesouros escondidos na areia da praia.
O mar era já ali e o sol não precisava ser quente para entrar nas ondas mansas e ficar, boiando, olhos postos no céu, a sonhar com aventuras mil, voando com as gaivotas que rivalizavam com os farrapos brancos das nuvens.
Nada mudara. O mar e o céu, azuis de doer, o branco das gaivotas e das nuvens, ou a sua capacidade de sonhar. Sabia que havia rugas finas nos olhos que agora olhavam o céu e que os seus braços abertos abraçavam mais água, mas no seu coração corriam meninos, lutavam piratas, e havia beijos roubados na areia dourada.
E, de repente, o mar entrou-lhe em casa.




terça-feira, fevereiro 13, 2018

O traço de um (a)braço

                        (Gustav Klimt - detalhe de The tree of  Life)


Passo a passo
traço o laço
do enlace
Faço e desfaço
o desenho

de um (a)braço


segunda-feira, fevereiro 05, 2018

Asas contrafeitas

(Amy Judd)

Naquele tempo, aos homens bons era dado o dom de poderem ter asas. Era, pois, comum, verem-se homens alados em passeio pelas avenidas, nas salas de cinema (onde, note-se, tornavam a visão dos demais deveras difícil), nos supermercados, enfim, em todos os lugares.
Tudo parecia maravilhoso. Aqueles a quem cresciam asas resplandeciam, orgulhosos do atributo, e os que as não tinham procuravam comportar-se de maneira a atingirem a forma alada.
Não tardou, porém, que muitos se cansassem da monotonia das asas, todas tão brancas e, sobretudo, todas iguais. Começaram a pintá-las de cores diversas, a ornamentá-las com jóias e bordados, mal disfarçando os olhares de admiração e inveja quando algumas brilhavam  mais ao sol, ou se destacavam pela originalidade.
Pior do que essa ânsia de terem asas diferentes e melhores do que as dos outros, era o facto de já ninguém saber quais os critérios para que alguém pudesse tê-las. Tantas havia que chegava a ser difícil andar na rua em determinadas horas. 
Numa manhã fria de Fevereiro, a cidade acordou com a frase "Não às asas contrafeitas!" pintada por todos os muros. Nas caixas de correio, desabituadas de terem uso, um panfleto alertava para o logro do negócio das asas. Os homens bons, afinal, podiam nunca ter umas, enquanto outros, espertalhaços, conseguiam um par falsificado e se pavoneavam do alto da sua moral de pechisbeque. 


segunda-feira, janeiro 29, 2018

Música a dois


(Jack Vettriano)


o suporte da música

o suporte da música pode ser a relação
entre um homem e uma mulher, a pauta
dos seus gestos tocando-se, ou dos seus
olhares encontrando-se, ou das suas

vogais adivinhando-se abertas e recíprocas,
ou dos seus obscuros sinais de entendimento,
crescendo como trepadeiras entre eles.
o suporte da música pode ser uma apetência

dos seus ouvidos e do olfacto, de tudo o que se
ramifica entre os timbres, os perfumes,
mas é também um ritmo interior, uma parcela
do cosmos, e eles sabem-no, perpassando

por uns frágeis momentos, concentrado
num ponto minúsculo, intensamente luminoso,
que a música, desvendando-se, desdobra,
entre conhecimento e cúmplice harmonia.

Vasco Graça Moura, in "Antologia dos Sessenta Anos"



Mariana e José não precisavam de falar. Um olhar, um olhar bastava para que se completasse uma frase, se recordasse um detalhe, se abrisse um sorriso, ou assomasse uma lágrima. Separados, Mariana era extrovertida, faladora, ainda que tranquila, enquanto José evitava grandes conversas, vivia mais no seu mundo interior, ainda que tenso. Juntos... Juntos havia harpas nos dedos que se tocavam, cânticos nas bocas a arder num beijo, sinfonias completas quando se entregavam, inteiros, um ao outro.

sexta-feira, janeiro 26, 2018

Os donos do açúcar

(Teddi Parker)

O açúcar

O branco açúcar que adoçará meu café 
nesta manhã de Ipanema 
não foi produzido por mim 
nem surgiu dentro do açucareiro por milagre.
Vejo-o puro 
e afável ao paladar 
como beijo de moça, água 
na pele, flor 
que se dissolve na boca. Mas este açúcar 
não foi feito por mim.
Este açúcar veio 
da mercearia da esquina e tampouco o fez o Oliveira, dono da mercearia. 
Este açúcar veio 
de uma usina de açúcar em Pernambuco 
ou no Estado do Rio 
e tampouco o fez o dono da usina.
Este açúcar era cana 
e veio dos canaviais extensos 
que não nascem por acaso 
no regaço do vale.
Em lugares distantes, onde não há hospital 
nem escola, 
homens que não sabem ler e morrem de fome 
aos 27 anos 
plantaram e colheram a cana 
que viraria açúcar.
Em usinas escuras, 
homens de vida amarga 
e dura 
produziram este açúcar 
branco e puro 
com que adoço meu café esta manhã em Ipanema.

Ferreira Gullar




O açúcar branco e doce feito por mãos tisnadas e amargas que nunca o usam assim, refinado. Os verdadeiros donos do açúcar e dessas mãos, nunca viram, decerto o mar em Ipanema, nem os açucareiros nas mesas das esplanadas. 


segunda-feira, janeiro 22, 2018

Há sempre uma lua


(Paulina Otylie Surys)

There's always a moon



The grey grey sky

against the moon
sits in rags of
clouds



The rags of

clouds
sit against the sky
under the  moon



Is there a moon

in the grey grey sky?



There is always

a moon in the sky
despite the grey.

Maria Eu


domingo, janeiro 21, 2018

Fragmentos

(Angélina Nové)


Percebeu que se rasgara por dentro quando sentiu o travo agridoce do sangue. Teria mais cuidado quando pusesse pedaços de coração de volta dentro do peito.



quarta-feira, janeiro 17, 2018

Amizade entre iguais

(imagem daqui)


Paco e Irene tinham chegado há duas semanas à cidade. Estranharam o frio, a chuva, a aridez da língua que não enrolava os erres nem soava a canção de amor. Traziam pouca coisa na bagagem, três mudas de roupa, artigos de higiene básica e os documentos de identificação. Zabelita, chegada uns meses antes, alugara-lhes um apartamento na periferia. Sabiam que não seria suficiente para grande coisa, mas nada os fazia prever a degradação do bairro. Nem o taxista quisera entrar no emaranhado de ruas estreitas, tão estreitas que parecia terem voltado ao local que tinham abandonado em busca de uma vida menos dura.
Paco tirou do bolso do casaco coçado o papel onde anotara o endereço que passaria a ser o deles.  Irene limitava-se a segui-lo, olhos negros ainda mais negros de aflição. 
O prédio, cinzento e negro das chuvas, já tinha sido azul. Viam-se manchas da tinta antiga aqui e ali, à  mistura com as pichagens. Tentaram usar o elevador, em vão. Subiram as escadas esconsas até ao 4º Esq.-Frente. A chave estaria debaixo do vaso branco, ao fundo do corredor, dissera-lhes Zabelita. Parecia-lhes extraordinário que assim fosse, mas estava lá. Franquearam a entrada. Apesar da pobreza, estava tudo limpo e, em cima da mesa da cozinha, bananas e laranjas davam uma nota alegre.
Irene abeirou-se da janela. Num repente, um pardalito veio bicar o vidro. Sorriu, pela primeira vez desde há muito, e repetiu o som das bicadas com o dedo, pelo lado de dentro. 
-¿Vamos a descansar un poco ?, perguntou Paco.
-¡Sí, es mejor !, respondeu.
Acordaram com o vento a fustigar a persiana. 
-Voy a buscar fruta para comermos., disse Irene, levantando-se a custo.
Na janela da cozinha, o pardalito aninhava-se num recanto, como que esperando-a, apesar da neve. Mal deu conta da sua presença, retomou as bicadas. Irene descascou uma banana, esmagou um pedaço e, abrindo a vidraça com cuidado, estendeu-o na mão aberta à avezita que não se fez rogada à refeição. Olhava-a nos olhos entre cada degustação, como se lhe quisesse agradecer. 
-Irene! 
Paco chamava-a
-Excusa. ¿Nos vemos después?
O passarinho chilreou, como que a responder-lhe e ela, antes de fechar a janela, tirou a fruta do cesto, forrou-o com um pano, protegendo a parte de cima com uma cobertura improvisada de um saco de plástico, deixando o abrigo bem entalado no parapeito para que não fosse levado pelo vento.
-Ahora que tengo un amigo, va a ser más fácil., pensou Irene, sorrindo, enquanto via o chilreador acomodar-se.


sexta-feira, janeiro 12, 2018

Inverno

(Saatchi Art Artist Lazar Lekovic; Photography, "Winter day in the forest")



Winter trees


All the complicated details

of the attiring and

the disattiring are completed!

A liquid moon

moves gently among

the long branches.

Thus having prepared their buds

against a sure winter

the wise trees

stand sleeping in the cold



William Carlos Williams









Árvores de Inverno


Todos os detalhes complicados do vestir e do despir estão completos! Uma lua líquida move-se suavemente entre os longos ramos. Tendo preparado os seus rebentos contra um inverno certo as sábias árvores erguem-se dormindo ao frio.

William Carlos Williams traduzido por Maria Eu