(Sebastião Salgado)
"(...) Quando, à primeira luz da manhã, o canto dos pássaros me
despertava, ele já não estava ali (o avô), tinha saído para o campo com os seus
animais, deixando-me a dormir. Então levantava-me, dobrava a manta e,
descalço (na aldeia andei sempre descalço até aos 14 anos), ainda com
palhas agarradas ao cabelo, passava da parte cultivada do quintal para a
outra onde se encontravam as pocilgas, ao lado da casa. Minha avó, já a
pé antes do meu avô, punha-me na frente uma grande tigela de café com
pedaços de pão e perguntava-me se tinha dormido bem. Se eu lhe contava
algum mau sonho nascido das histórias do avô, ela sempre me
tranquilizava: "Não faças caso, em sonhos não há firmeza". Pensava então
que a minha avó, embora fosse também uma mulher muito sábia, não
alcançava as alturas do meu avô, esse que, deitado debaixo da figueira,
tendo ao lado o neto José, era capaz de pôr o universo em movimento
apenas com duas palavras. Foi só muitos anos depois, quando o meu avô já
se tinha ido deste mundo e eu era um homem feito, que vim a compreender
que a avó, afinal, também acreditava em sonhos. Outra coisa não poderia
significar que, estando ela sentada, uma noite, à porta da sua pobre
casa, onde então vivia sozinha, a olhar as estrelas maiores e menores
por cima da sua cabeça, tivesse dito estas palavras: "O mundo é tão
bonito, e eu tenho tanta pena de morrer". Não disse medo de morrer,
disse pena de morrer, como se a vida de pesado e contínuo trabalho que
tinha sido a sua estivesse, naquele momento quase final, a receber a
graça de uma suprema e derradeira despedida, a consolação da beleza
revelada.(...)"
Extracto do Discurso de José Saramago na Academia Sueca
Não há quem não sonhe. Podem, até, ser sonhos que nos pareçam prosaicos, como ir a Lisboa ver os jacarandás em flor, ou passear de mãos dadas junto ao Tejo. Podem, mesmo, não passar de sonhos como ter um dia seguinte mais claro, ou comer uma sopa de peixe.
Não há quem não tenha sonhos, ainda que prosaicos.