domingo, dezembro 31, 2023

Luz

 


Que a Luz prevaleça e o Homem se deixe inundar dela!


Procuro uma alegria

                uma mala vazia

                do final de ano

                e eis que tenho na mão

                - flor do cotidiano -

                é vôo de um pássaro

                é uma canção.


           Carlos Drummond de Andrade


https://youtu.be/evmFy9F1ikk?si=eg_US9DO99_44ThA
Ricardo Ribeiro - Mondadeiras

quinta-feira, dezembro 28, 2023

Útero

Maria Antónia deu por si a mudar por dentro. Tinha dores (de crescimento?) pelo corpo inteiro. Até para dormir se estranhou. Ela, que sempre encontrara consolo a adormecer de barriga para baixo, uma perna encolhida e outra esticada (tal e qual o pai), mãos debaixo da almofada de cetim, viu-se em posição fetal, enroscada em si mesma, evitando mexer-se um milímetro.

Atacavam-na lembranças de anos remotos, criança viva em correrias, gargalhadas a ecoarem na casa grande e no quintal. A mãe a manejar com destreza a agulha de croché, dando vida a colchas que dizia irem, um dia, cobrir as camas de sua casa. Sua? Pois se aquela era a sua casa!!!

O pai não costumava falar no futuro, à excepção da poupança! Sempre a ensinara que não podia deixar a luz acesa num aposento vazio ou que a marmelada a secar na janela era para comer quando houvesse uma ocasião especial (a lembrar-lhe da vez em que ela, matreira e ingénua, fora comendo o conteúdo de uma tigela, deixando o redondo da "capa" dura a disfarçar).

Naquele dia de Inverno, deixou-se ficar no quente dos lençóis, arredondou-se o mais possível, como que a abraçar-se, e desnasceu.


quarta-feira, novembro 29, 2023

Curiosidades de viagem

 

(imagem daqui)

O terminal do aeroporto fervilha de vida singular, mas plural de diversidade. Um casal de Judeus ortodoxos, novíssimos, atrai o muitos olhares. Ela, com um bebé nos braços, traja de azul escuro, camisola larga e comprida a combinar com a saia de pregas pelo tornozelo, onde espreitam as meias grossas agasalhando os pés nas sabrinas pretas. Na cabeça, um lenço igualmente preto. Ele, com o costumeiro fato e chapéu pretos, as peiot (pequenos cachos) emoldurando o rosto pálido. Passam os olhos pelos produtos de marca, detendo-se nas lojas de luxo, mas nada comprando.

Há um certo ar de recriminação e desconforto, ainda que disfarçado.

No entanto, a chegada de uma família japonesa arrebata as atenções. Homem e mulher elegantíssimos, vestidos com roupa Prada e acessórios marcadamente extravagantes, seguidos por dois rapazes adolescentes usando sapatilhas Balenciaga, airpods a afastar qualquer som externo e olhares perdidos na sua “onda”.

Demoram-se um pouco na zona de onde o primeiro casal tinha acabado de sair, compram uma mala Céline de mil e seiscentos euros e uma pequena caixa com dois pares meias de homem Louis Vuitton de quinhentos.

Dirigem-se à porta de embarque conforme chegaram, altivos e distantes, apenas com mais dois sacos de compras e menos alguns euros na conta do cartão de crédito dourado.

Há um certo ar de recriminação e desconforto, ainda que disfarçado. Contudo, acrescente-se-lhe uma ponta de inveja.

Na hora de deixarem os sofás, há garrafas de água vazias, cascas de banana e invólucros de bolachas e chocolates nas mesas baixas.

Dirigem-se à porta de embarque de uma companhia low cost, arrastando as pequenas malas de dimensão regulamentar.

Sigo-os, depois de depositar o lixo no caixote mais próximo.


 
(Hania Rani - Nancy Jazz Pulsations)

terça-feira, outubro 17, 2023

Lavre-se acta

 

(Amadeo de Souza-Cardoso)


Aos dezassete dias do mês de Outubro de dois mil e vinte e três, Maria apresentou-se perante todos sem que ninguém a tivesse convocado.

Declarou ser pertinente, tendo em conta a ausência instalada, apenas interrompida por escassíssimas vezes.

Lamentou a sua falta de inspiração, de agilidade no uso da escrita, de argúcia de espírito.

Acrescentou, ainda, que tinha vindo a tentar juntar palavras em frases, mas que os dedos se declaravam dormentes, quer de teclas, quer de lápis e canetas. Assim sendo, nada de palavras, quanto mais de frases!

E nada mais havendo a tratar, deu por encerrada a sessão, da qual se lavrou a presente acta, que, depois de lida, não necessita ser assinada.



(Jonas Gewald - Transparent)

sexta-feira, setembro 22, 2023

Coração



(imagem daqui)

    

Coração


O coração, ao contrário da pele*,

não se renova ou perde de sete em sete anos.

Transforma-se ao sabor dos sentimentos,

torna excitante a permanência humana.

O coração pulsa, tem ritmo, fica louco

ou quase quieto de emoção.

O coração não aparece na foto

do documento da nossa identidade.

E porém...

O coração É a nossa identidade.

 

* ver Pedro Mexia, in "Duplo Império"

 

(Benjamim Clementine - Eternity)

quarta-feira, setembro 20, 2023

Azul Klein



Diziam-lhe dos sonhos adiados, dos dias desencantados, do correr do tempo cego, do cansaço desabado em sono precoce no sofá.
Mostravam-lhe as rugas precoces nos rostos tristes, o olhar baço, as mãos quietas e mudas.

Teimava em pintar de azul klein o seu presente, feito futuro.

(Stephan Moccio - Le temps qui passe)

terça-feira, setembro 19, 2023

Inferno

 

(imagem daqui)

Maria Joana deparou-se com a notícia, atraída pela fotografia que a acompanhava. Três freiras, de costas.

"Três freiras foram detidas por suspeitas de maus-tratos contra menores, residentes num lar juvenil, em Vila Viçosa."


Já há longos anos que arrumara num canto bem escuro as memórias do internato. O acordar abrupto com as palmas da Irmã Severa, acompanhada de uma oração gritada a plenos pulmões, não para que Deus a ouvisse, mas sim para que nenhuma se deixasse ficar no quente dos lençóis; o duche mais do que apressado; o frio a avermelhar as pernas a descoberto a partir do rebuço dos soquetes brancos; a missa, ainda em jejum; as filas encabeçadas pela freira "ao serviço", para todas as tarefas; as saudades de casa...


Mas, o título! O título... Viu a Flor! A Flor, franzina, morena, grandes olhos escuros e tristes na carinha magra, de pé, ao fundo do refeitório, lençóis nos braços, a tremer na camisa de noite fina.

"Olhem bem para a vossa colega (chamavam-lhe asilada e não interna, por não poder pagar)! É uma porquinha! Fez chichi na cama!"

Hoje não toma pequeno almoço e vai daqui para o tanque lavar o que sujou!"


Guardava sempre uns biscoitos que a mãe lhe mandava para a Flor, enquanto, em pensamento, fazia uma prece para que todas as freiras fossem para o Inferno!


(Solas - James Duffy)

sexta-feira, junho 23, 2023

Do envelhecimento dos troncos

 


Havia, no campo da casa grande, muitas árvores: pinheiros mansos, abetos, cameleiras, laranjeiras, ameixoeiras, cerejeiras, pessegueiros, mas a nespereira… a nespereira tinha sempre sido especial.

Talvez por tê-la visto crescer, acolhido o seu corpo de menina em escaladas e assistido aos primeiros suspiros e desgostos de amor, ladeando a janela do seu quarto durante tantos anos, primeiro usando a sombra das paredes para ir trepando sem secar, depois oferecendo ela sombra nas tardes quentes de Verão.

Pousou as mãos no tronco ferido pela idade. Tantas feridas abertas. Tantas cicatrizes. Seriam as dela ou as de ambas?


(Ludovico Einaudi - Broken Wings)

terça-feira, abril 25, 2023

Abril, 25.



E, quase sem se dar conta, era outra vez Abril! 


 

(Traz outro amigo também - Zeca Afonso)

segunda-feira, abril 24, 2023

Aurélia

 

"Aurélia distinguia-se pela sobriedade, que  era nela a consequência de temperamento e educação. Não quer isto dizer que fosse dessa espécie de moças papilionáceas que se alimentam do pólen das flores, e para quem o comer é um ato desgracioso e prosaico. Bem ao contrário, ela sabia que a nutrição dá a seiva da beleza, sem a qual as cores desmaiam nas faces e os sorrisos nos lábios, como as efémeras e pálidas florações de uma roseira ética.

Assim não tinha vergonha de comer; e sem vaidade acreditava que o esmalte de seus dentes não era menos gracioso quando eles se triscavam como a crepitação de um colar de pérolas; nem o matiz de seus lábios menos saboroso quando chupavam uma fruta, ou se entreabriam para receber o alimento."

Senhora, José de Alencar


Adorava ver Aurélia comer! Costumava sentar-se numa mesa desde onde a pudesse observar, sempre tão composta, a inquietar-se perante  as opções do menu; imaginando cada sabor, cada aroma... Era toda brilho no olhar. E quando pousavam na mesa o prato escolhido, então! Uma festa!

Aurélia era, nesses momentos de gula, a mais sensual das mulheres, toda ela boca e mãos, deixando a quem a observasse a sugar o tutano de uma costelinha de borrego ou a trincar um bago de uvas, um calafrio na espinha, um desejo instantâneo de a possuir com o mesmo apetite que mostrava, recorrendo ao mesmo método para se deleitar.

Maria Eu


(Sueño con ella - Buika)

quarta-feira, abril 19, 2023

Arquivo


 Tinha sonhos, Maria Antónia. Um dia viveu um. Arquivou-o para que não o esquecesse.


(Hania Rani - Eden)

sábado, abril 01, 2023

Aprendiz

 

Imagem daqui

Recordava cada tempo com uma vida própria. Aos cinco anos era a menina de seus pais, caracóis loiros presos em rabo de cavalo por uma fita de cetim a condizer com os bibes feitos pela mãe, correndo pelos campos; aos nove enchia os pulmões de ar e respirava fundo no exame da quarta classe presidido pelo Sr. Inspector de aspecto circunspecto; aos doze enchia-se de raiva, sentada num baú cheio de roupa, no primeiro de muitos dias desterrada de casa, condenada a um regime de internato; aos quinze olhava-se ao espelho perguntando-se se algum rapaz, algum dia, iria querer namorá-la; aos dezasseis afirmava-se Abril, aquele em que nascera e agora era também cravo, já sabendo que eles, os rapazes, a queriam namorar; aos dezoito, sempre cravo, houve estudos, muitos e diversos, com leituras, conversas e debates noites dentro; aos vinte e dois, foram os meninos que a tornaram de novo aprendiz, enquanto os ensinava como sabia e podia.

Até hoje, ser aprendiz, consciente de uma busca constante de completude, marca a vida do seu tempo mais longo, sempre cravo, sempre Abril.


(Lisa Gerrard e Marcello De Francisci - When the light of the morning comes)

terça-feira, março 07, 2023

Vida

 

(Marc Chagall)


Maria Antónia tinha crescido a ouvir a recomendação de que enfrentasse a vida como se fosse fazer uma pega de caras e a agarrasse com força pelos cornos.

Começou por fazê-lo, mas não entendia nada de touradas!

Em pouco tempo, escolheu a doçura para viver os seus dias.


(CLANN - Kin Fables)