sexta-feira, novembro 27, 2015

Beijos - Asas

(imagem daqui)


Beijo

São os teus lábios
Nos meus lábios
Nos teus lábios
Os meus lábios

Os meus e os teus
Os nossos lábios

Asas.


Maria Eu


quarta-feira, novembro 25, 2015

Transportar água com uma peneira

(Akrilik Boya Çalışmaları)


O menino que carregava água na peneira

Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.

A mãe disse que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar um vento e
sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.

A mãe disse que era o mesmo
que catar espinhos na água.
O mesmo que criar peixes no bolso.

O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces
de uma casa sobre orvalhos.

A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio, do que do cheio.
Falava que vazios são maiores e até infinitos.

Com o tempo aquele menino
que era cismado e esquisito,
porque gostava de carregar água na peneira.

Com o tempo descobriu que
escrever seria o mesmo
que carregar água na peneira.

No escrever o menino viu
que era capaz de ser noviça,
monge ou mendigo ao mesmo tempo.

O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.

Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor.

A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta!
Você vai carregar água na peneira a vida toda.

Você vai encher os vazios
com as suas peraltagens,
e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos!


Manoel de Barros





Lembro-me de o meu pai sorrir quando me viu, um dia, a tentar salvar uma papoila, regando-a. Não usei um regador, nem qualquer recipiente mais usual nesta coisa de regar flores, daí o sorriso. Na minha inocência dos cinco anos e na urgência do salvamento, ia a correr buscar água ao tanque com as mãos em concha.

Quem sabe queria vir a ser amada pelos meus despropósitos.

domingo, novembro 22, 2015

Flor-coração





Petals

Life is a stream
On which we strew
Petal by petal the flower of our heart;
The end lost in dream,
They float past our view,
We only watch their glad, early start.
Freighted with hope,
Crimsoned with joy,
We scatter the leaves of our opening rose;
Their widening scope,
Their distant employ,
We never shall know. And the stream as it flows
Sweeps them away,
Each one is gone
Ever beyond into infinite ways.
We alone stay
While years hurry on,
The flower fared forth, though its fragrance still stays.

Amy Lowell




Pétalas

A vida é um curso de água
No qual desfolhámos
Pétala a pétala a flor do nosso coração;
O fim a perder-se num sonho
Elas flutuam sob o nosso olhar
Nós só vemos o seu feliz e precoce início.
Cheios de esperança,
Enrubescidos de alegria,
Espalhamos as folhas da nossa rosa desabrochada;
Da amplitude do seu horizonte,
Da dimensão do seu uso,
Jamais saberemos. E à medida que a água flui
Arrasta-as consigo.
Vão-se uma a uma
Sempre mais longe e em incontáveis modos.
Nós quedamo-nos sós
Enquanto os anos se precipitam.
A flor partiu primeiro, mas o seu perfume permanece.

Amy Lowell traduzida por Maria Eu




sábado, novembro 21, 2015

A companhia da saudade

(Pablo Picasso)



A cada dia, Maria Antónia deixa que o tempo corra como que em rajadas de vento norte, despenteando-lhe o cabelo, humedecendo- lhe os olhos, arrefecendo-lhe as mãos. Fustigam-na, de quando em vez, a par com a ventania, os grãos de saudade, iguaizinhos à areia das praias de águas frias e dunas pronunciadas que tantas vezes conhecera irada, infiltrando-se-lhe na boca, no nariz, nos ouvidos, no sexo. Toma-a, então, de mãos dadas com a saudade, um infinito cansaço. Chegada a casa, Maria Antónia senta-se no cadeirão que guarda a luz do jardim fronteiro à varanda do seu quarto, senta a saudade no colo e adormece, afagando-a.



quinta-feira, novembro 19, 2015

Nudez

(foto de Matt Blum paraThe nu project)



Ficou nua.... Assim mesmo, sentada na cadeira do alpendre, o corpo alvo recortado contra o azul vibrante da parede, as curvas menos definidas, as pregas na barriga, as mamas menos firmes. Ela. Sem artifícios. 

Ainda assim, mulher. Ainda assim, desejada.




terça-feira, novembro 17, 2015

Dois cansaços num abraço

(Marc Chagall)


Era pela manhã que se despediam com um beijo apressado. O dia esgotava-os, depois, num sorvedouro de tarefas, repetidas até ao infinito. Corpo moído, olhar vidrado, regressavam um para o outro quando a luz do dia se extinguia, substituída pelo brilho artificial das lâmpadas. E, ao contrário do que se poderia esperar, era então que embrulhavam os seus dois cansaços num só abraço, renascendo, juntos, renovados, ardendo uma e outra vez num acto de amor infinito.


domingo, novembro 15, 2015

A caçada


(Georges HugnetC’est ainsi qu’il lui advint…, 1947)


The hunt

Hunter or prey
Run. Run. Run.
See the trigger?
Feel the urge?
The taste of powder
The taste of blood
Smell the fear?
Smell the thrill?
Behold the gate
Behold the end

Who's the hunter?
Who's the prey?

Maria Eu






A caçada

Caçador ou presa
Corre. Corre. Corre.
Vês o gatilho?
Sentes a urgência?
O travo a pólvora
O travo a sangue
Cheiras o medo?
Cheiras a excitação?
Eis o portão
Eis o fim

Quem é o caçador?
Quem é a presa?

Maria Eu

sábado, novembro 14, 2015

E a luz não ficou prisioneira das trevas

(Ghada Jamal - inspirada pela guerra civil Libanesa)



Genesis 1:3 "Fiat lux. Et facta est lux."


                    (Faça-se luz. E fez-se luz.)



João 1:5 ''Et lux in tenebris lucet et tenebrae eam non comprehenderunt.'' 


                (E a luz brilhou nas trevas e as trevas não a aprisionaram.)




sexta-feira, novembro 13, 2015

Palavras

(Ana Hatherly)

AS PALAVRAS

Tocam-me
como lábios,
como beijos.
Pássaros, sedentos de ramos
e de sombra,
pousam-me nos ombros.
A movimentos de asa,
desenham-me ainda um corpo
- secreta arquitectura de água,
rasgada no v
ento.

Luísa Dacosta






AS PALAVRAS

Prendem-me                                       Selvagens
Atraem-me                                          Apaixonadas
Libertam-me                                        Rebeldes
Ardem-me                                           Vorazes
Vinculam-me                                       Amorosas   
Resgatam-me                                     Libertadoras 
Adoçam-me                                        Amáveis
Sobressaltam-me                               Preclaras

Maria Eu

quinta-feira, novembro 12, 2015

Céu, muito céu com voos de pássaros

(Van Gogh)

Maria Eduarda tinha um jeito todo especial para tirar da ponta do lápis uns desenhos que deixavam os adultos encantados. Houvesse uma nesga de papel livre e era vê-la, mãos à solta e língua de fora, a traçar linhas, a preencher cada pedacinho com flores, árvores, meninos, mar e, sobretudo, céu, muito céu iluminado por um sol rubicundo e dominante onde pontuavam voos de pássaros . Deu-lhe, um dia, para começar a desenhar casas. Havia as pequeninas, com uma porta e duas janelas; as de dois pisos, com escadarias Hollywoodescas; as que se alcandoravam serras acima, com canteiros a ladeá-las e, até, as que se empilhavam umas em cima das outras, naquela modernice dos prédios de apartamentos. 
Pois que bem que ia a pequena. Era uma digna criadora de habitações imaginárias, diziam os que lhe espreitavam o tracejar por cima dos pequenos ombros. Arquitecta! Era isso que devia ser a miúda, quando crescesse! E Maria Eduarda encheu o peito de sonhos enquanto cruzava as folhas com o lápis.
Um dia, numa incursão ao sótão da madrinha, descobriu centenas de livros. Primeiro foram as capas que a atraíram, depois começou a lê-los, um a um, num frenesim que lhe era desconhecido. Ler roubou-lhe a vontade de desenhar. Desenhava, sim, mundos inteiros de palavras na sua imaginação.
Adolescente, o traço era, afinal, uma coisa hesitante de menina. As palavras, essas fluíam como um rio, em jorros luminosos. Quando deu conta, falava delas aos meninos que desenhavam flores, árvores, mar e, sobretudo, céu, muito céu com voos de pássaros.


terça-feira, novembro 10, 2015

segunda-feira, novembro 09, 2015

Doar estrelas

(Abbott Henderson Thayer)

The Giver of Stars

Hold your soul open for my welcoming. 
Let the quiet of your spirit bathe me 
With its clear and rippled coolness, 
That, loose-limbed and weary, I find rest, 
Outstretched upon your peace, as on a bed of ivory. 
Let the flickering flame of your soul play all about me, 
That into my limbs may come the keenness of fire, 
The life and joy of tongues of flame, 
And, going out from you, tightly strung and in tune, 
I may rouse the blear-eyed world, 
And pour into it the beauty which you have begotten.


Amy Lowell




O doador de estrelas

Mantém a tua alma aberta ao meu acolhimento.
Deixa que a quietude do teu espírito me banhe 
Com a sua frescura límpida e ondulante,
Que, de corpo lasso e exangue, eu encontre descanso, 
Estendida na sua paz, como  numa cama de marfim 
Deixa que a chama cintilante da tua alma brinque em mim inteira,
Que em mim possa descer a avidez das chamas, 
A vida e a alegria das línguas de fogo, 
E, ao abandonar-te, firmemente enlaçados e em harmonia, 
Eu possa despertar este mundo de olhos turvos, 
E nele derramar a beleza que tu geraste.

Amy Lowell traduzida por Maria Eu

sábado, novembro 07, 2015

Voa coração! Voa!



Um dia, sentiu que o coração lhe saltava do peito, em alvoroço, e descobriu que podia fazê-lo voar. 


quinta-feira, novembro 05, 2015

Porta

(Samuel van Hoogstraten)


Voltava àquela casa relutante. Vivera ali muitos anos felizes e saíra num dia triste de Inverno, quando tentara abrir a porta e a encontrou fechada, a mala pequena com alguma roupa encostada ao último degrau. Agarrara nos poucos pertences e partira, a cabeça a borbulhar na procura de uma solução, as lágrimas em catadupa. Sabia que podia acontecer. Julgava não haver coragem para o fazerem. Escolhera amar uma mulher mal-querida na aldeia. Joana era casada, mais velha 12 anos do que ele. O marido partira há muito de casa e nunca mais dera notícias. Amava-a e não o escondera. 
- Um dia. Um dia, chegas a casa e tens a mala à porta!
Aquele fora o dia.
Entrou pela mesma porta que lhe tinha sido fechada usando a chave que o advogado lhe fizera chegar. E, virando-se para trás, chamou:
- Vem, Joana, podes entrar, já não mora aqui ninguém.


domingo, novembro 01, 2015

Chá de rooibos e torradas


Maria Eduarda já não pensava naquela coisa absurda da paixão. Os anos tinham-na amadurecido o suficiente para saber que nada substituía a calma dos dias de Outono, com um chá de rooibos e uma torrada numa mesa de esplanada, junto ao mar, acompanhados por um livro e Chet Baker no headphones.
Até ao dia em que José tropeçou na cadeira que ela arrastara levemente do sítio original para esticar as pernas. Não sabia explicar se fora a voz em tom meio atrapalhado, se o olhar franco, se o toque inesperado de uma mão... Sabia, apenas, que nada foi igual dali para a frente. 
Esboça um sorriso terno, sentada na mesma esplanada, com a imensidão do mar no olhar, pensando para com os seus botões que nada do que se toma por certo é definitivo e que a paixão, afinal, para além de não se esquivar de surgir em qualquer sítio, também perdura para além do pouco tempo que lhe auguram.
Com um suspiro, bebe um gole de chá e retoma o livro que segura na mão direita, enquanto aperta a de José com a esquerda.