quinta-feira, dezembro 31, 2015

Desejos

(Joan Miro)

Que em 2016 tenham tudo o que desejo para mim. Muita música, livros fantásticos,vento a despentear o cabelo, muitas gargalhadas, areia sob os pés, mar a perder de vista, bolo de canela, sol na pele, lareira em dias frios, tisanas de frutos vermelhos, toques de mãos, beijos doces e beijos intensos, abraços de fazer disparar o coração e abraços de apaziguar o coração, mimo para dar e receber, intensidade, tranquilidade, trabalho q.b. e uma vida aproveitada até ao tutano.


quarta-feira, dezembro 30, 2015

2=1

(Jack Vettriano)

Oración

Habítame, penétrame.
Sea tu sangre una como mi sangre.
Tu boca entre a mi boca.
Tu corazón agrande el mío hasta estallar.
Desgárrame.
Caigas entera en mis entrañas.
Anden tus manos en mis manos.
Tus pies caminen en mis pies, tus pies.
ardeme, árdeme.
Cólmeme tu dulzura.
Báñeme tu saliva el paladar.
Estés en mí como está la madera en el palito.
Que ya no puedo así, con esta sed
Quemándome.

Con esta sed quemándome.

La soledad, sus cuervos, sus perros, sus pedazos.

Juan Gelman






Corres, livre, no meu sangue, alteroso como as ondas de uma maré viva. Ardes-me nas veias, na pele que é a tua pele, branca, pontilhada de sinais, os meus e os teus, como estrelas de uma só constelação. Quando fecho os olhos, são os teus que cerro para nos vermos do lado de dentro.

domingo, dezembro 27, 2015

Conto triste de Natal

(imagem daqui)

Manuel era invulgarmente irrequieto. Parecia sempre que a alma traquina não lhe cabia no corpo franzino e aqueles não eram tempos em que aos meninos se permitia ir além de rígidas regras. Era logo pela manhã, bem cedo como convinha, que a mãe o empurrava porta fora, sapatos e casaco herdados do irmão a pouco agasalhar pés e tronco, estômago forrado com migas de broa e leite, a caminho da escola. Ora, Manuel não gostava particularmente daquela sala com carteiras de madeira onde se encravavam tinteiros de porcelana branca com uma pena. Ah, a pena! Que martírio usá-la sem sujar o papel! As mãos doridas do frio e das palmatoadas da professora, mulher severa e com uma urgência enorme em ter os meninos das quatro classes domesticados, a papaguear o "a,b,c" e a somar, subtrair e dividir. Talvez por isso ele ficava de olhar perdido a sonhar com os campos verdes onde corria livremente e os jogos de futebol com a bola de trapos que fizera dos restos das fazendas que a mãe usava para costurar os vestidos das irmãs e os aventais da Luzia. A Luzia era uma mulher rubicunda e bondosa que cozinhava qualquer coisa com tanto amor que fosse o que fosse que saía dos seus tachos era um manjar. Escusado será dizer que muitos eram os dias em que os sonhos o faziam desviar-se do caminho para as aulas e ficar na companhia do Sr. Arlindo e do seu rebanho de ovelhas, ou no quintal da Sra. Joaquina a marcar golos numa baliza feita de pedras do caminho juntamente com os outros gazeteiros. Nenhuma destas faltas passava impune e era a mãe que o recebia de cinto em riste para umas valentes vergastadas. "Hás-de aprender a não me faltar ao respeito!", gritava. E Manuel nunca entendia como é que não ir à escola significava faltar ao respeito à mãe. "Ninguém dirá que eu não sei educar os meus filhos, ouviste, meu fedelho?". Estas palavras doíam-lhe tanto como o cinto a cortar-lhe a pele das pernas. 
No ano em que fazia oito anos não passara para a 2.ª classe. As mãos andavam sempre inchadas dos encontros com a palmatória e as pernas marcadas de vermelho pelo couro do cinto. Ainda assim, era no campo que se refugiava. 
Chegado o Natal, a casa tinha o cheiro dos doces da Luzia e era ela que lhe passava a mão perfumada de canela no cabelo e murmurava "Meu menino. Meu menino.", fazendo-o sorrir. Era costume deixarem um sapato junto à lareira no dia 24 de Dezembro. Iam-se deitar e, logo pela manhãzinha, iam espreitar o que o Menino Jesus lá deixara. Nunca era muito. Um carrinho de madeira, um pião, uns rebuçados. Nesse ano, procedeu de igual forma, o coração em alvoroço pela ansiedade. Ao acordar, ainda mal o sol se levantara, correu para o sapato. Manuel não entendeu a razão pela qual nele só encontrou uma dúzia de castanhas. O olhar duro da mãe não lhe deixou margem para perguntas. Pegou nas castanhas, atirou-as para a lareira, e fugiu porta fora à procura do Sr. Arlindo. 

Cresceu, o Manuel, numa dureza só. Fez a 4.ª classe já a trabalhar. Deu muitos presentes de Natal mas nunca teve prazer em recebê-los. Envelheceu acreditando que a mãe nunca o amou. Amou muito mas pouco foi capaz de o mostrar.


quarta-feira, dezembro 23, 2015

Boas Festas, "minhas" pessoas dos blogs!

Ora cheguem-se aqui ao ecrã! Vá, não tenham medo! Vejam os meus votos de Boas Festas com carinho. Eu sou a criatura roxa. Quase no final, se encostarem bem a bochecha ao ecrã, vão sentir a minha saudação especial! Que tenham umas Festas muito felizes, com tudo a que têm direito, incluindo milhares de sorrisos!

sábado, dezembro 19, 2015

Tangles

(Garth Knight)*

Will you tangle me in tangles of enchantment?
Will you let me tangle you in my tangles?
Tangle me! Tangle me! Will you?




*Garth Knight transforma a arte do bondage numa nova arte.

quinta-feira, dezembro 17, 2015

Do nono dia de clausura


(Charles Courtney Curran)

Ao nono dia de clausura, entristeceu. As janelas tinham perdido luz e o alento de trespassá-las com o olhar desvanecera-se. Descalçara-se para ouvir o silêncio. Deitou-se em cima da cama feita de lavado pela Elisa. Nunca soubera o que usava para lavar a roupa que deixava nela o cheiro da sua infância. À memória, acorriam os estendais enormes, de arame, com milhentas pregadeiras de madeira a esticarem os lençóis alvos depois de serem esfregados no tanque. Encantava-a ver as mãos sábias das mulheres a esfregar a roupa na pedra do lavadouro, as mesmas mãos que a içavam para que se pudesse sentar no rebordo mais largo. Achavam-lhe graça, assim pequena, toda alegre, sempre a fazer perguntas e a gargalhar a cada salpico que a atingisse. Mas agora era a Elisa que lavava a roupa na máquina e não havia como ela lhe pegar ao colo. Também não podia rir com os salpicos da água, a não ser que a dita máquina avariasse ou, sei lá, fosse alvejada por um daqueles cowboys dos filmes que (re)via de quando em vez, deixando-a cheia de buracos. O cheiro. Era do cheiro de que queria lembrar-se. De olhos fechados rememorava cada gesto. O pousar da bacia vermelha ajoujada de roupa, as mãos que separavam lençol a lençol entrando na água com eles nas mãos, a dança agitada, o ensaboar com sabão azul. Era isso! Sabão azul! No dia seguinte perguntaria à Elisa onde tinha arranjado sabão azul para lavar à máquina.


segunda-feira, dezembro 14, 2015

Paisagem 2

(Daqui)


Ao sexto dia de clausura, já não tinha uma janela debruçada sobre o jardim dos mortos. Para trás ficaram as gerberas, as hidranjas e os fetos, não mais entrançados ou orgulhosamente erectos, antes tombados e em desarranjo, varridos pelo vento. Nesses dois dias de diferença, não avistara casacos coloridos. Dera conta, sim, de muitos casacos negros, todos juntos e em passo lento, seguindo um féretro. Também eram portadores de flores, o que tornava o cortejo fúnebre estranhamente alegre, pontuado por manchas coloridas de grandes coroas e ramos. Pensara para com os seus botões, não muitos porque o vestido era de fecho e só tinha dois na gola, que fazia falta uma banda naquela cerimónia. Uma coisa ao estilo de Nova Orleães, com clarinetes, saxofones e violinos, muitos cânticos e dança bastante. 
Mas agora, a janela, bem, era mais uma porta com varanda a bordejá-la,tinha toda uma outra vista. Sentou-se e, de chávena de chá de rooibos na mão, deu por si a olhar as centenas de outras janelas e portas envidraçadas que se perfilavam mesmo ali ao pé. Algumas quase pousavam na copa das árvores, enquanto outras ficavam bem acima da sua linha de visão, outras, ainda, quase pareciam um prolongamento da sua. Nunca se pensara a olhar os outros por detrás dos vidros. A clausura aguçara-lhe a curiosidade. Ocupava-se de pequenos nadas que iam do carreiro imenso de formigas em equilíbrio no varandim, até ao polícia que multava afanosamente os automobilistas prevaricadores das regras de estacionamento no largo bem defronte. 
Sorveu mais um gole de chá, levantou-se, e deixou os vizinhos tranquilos.


sábado, dezembro 12, 2015

Paisagem

(Beatriz Guzman Velasquez)

Há algum tempo que não se dava ao tempo de ficar sentada junto a uma janela. É Sábado e não pode sair nem fazer nada de muito relevante a não ser ficar sentada. Fá-lo, por isso, à janela. 
Das que se rasgam nas paredes de sua casa, sabe bem que veria uma praça ampla com meninos a brincar sob a vigilância atenta dos pais, ouve-lhes as gargalhadas entrecortadas pelo chamamento de “Luísa!”, “Diogo!”, “Maria!”, de quando em vez. Há também pássaros, muitos, nas árvores que agora se arredondam de ouro e cobre. Há, até, por vezes, uma gaivota que, inexplicavelmente, vem molhar as patas cansadas no lago da praça distante do mar.
Desta, a que lhe calhou em sorte ao quarto dia de clausura, que até ao terceiro a vista era outra e até enchia a alma de sol, avistava um cemitério. Eram onze horas, não mais, quando se agitaram os corredores das sepulturas. Os vivos enxamearam o lugar dos mortos com casacos coloridos e flores. Observou-os, aos donos dos casacos portadores de flores, na azáfama do enfeite. Não pararam em introspectiva meditação, nada que se assemelhasse a um reviver de recordações, apenas procuravam a melhor posição na jarra para um ramo de feto, uma gerbera, uma hidranja. A espaços, afastavam-se para ver o efeito do arranjo, deitando alguns um olhar disfarçado à campa do vizinho, como que a conferir se estaria mais bonita.
Pelas doze horas, não mais, não restavam nenhuns donos de casacos coloridos a alegrar a janela, apenas hastes de flores e fetos em orgulhoso entrance a florir campas cinzentas.



(Frank Sinatra, cem anos)

segunda-feira, dezembro 07, 2015

Golpe de asa

(J. M. W. Turner)

Foi gaivota. Rasou o rio, primeiro, sem que a assustasse o vento a fazer a água agitar-se e a levantar o malhoco. Planava uma e outra vez, pousando a espaços na ponte. A cada vez, aventurava-se em voos mais longos. A foz ali tão perto. O sonho de cruzar o mar a encher-lhe a quilha, a ritmar-lhe o bater de asas. Seguia aquela outra, sempre em reviravoltas de piloto experimentado, regressando mais tarde com o mar nos olhos e histórias de ondas alterosas onde também voavam peixes.
Atreveu-se a ir. Havia nevoeiro e a ronca ensurdecia-a mas nada a demoveu. Inebriada pelo cheiro a maresia, voou mais longe do que nunca, lá em baixo, a água encarneirada com malha branca. Avistava a gaivota aventureira e traçava o rumo na sua esteira. Na excitação, nem sentiu o golpe do arame que se soltara do grande navio, rodopiando ao sabor do vento norte, muito menos se deu conta do vermelho que lhe salpicava a alvura das penas. Morria e nada a movia a não ser continuar.


sábado, dezembro 05, 2015

Férias grandes

(imagem daqui)

Os dias eram longos nas férias grandes e, no entanto, para Clarinha o tempo era sempre pouco. Levava aqueles dias num corrupio tal que chegava à noite em quebranto de pernas e de braços, chegando a adormecer entre a sopa e o prato principal do jantar. 
-Esta menina não pára! dizia o pai, enquanto lhe pegava ao colo para a ir deitar na cama onde a mãe a despia com cuidado, enfiando-lhe a camisa de noite a custo e metendo-a entre os lençóis.
Mas de manhã, qual passarinho laborioso, Clarinha levantava-se, lava-se num piscar de olhos, vestia os calções e a camisola, calçava as sandálias velhinhas e, bebendo o leite em goles sôfregos, agarrava no pão com manteiga e corria porta fora com um "até logo, mãe" pouco perceptível, com a boca cheia. 
E era vê-la a bater à porta da Dona Arminda e gritar "Oh, Joaninha! Joaninha! Anda brincar!". Depois, já eram duas a correr pela aldeia, batendo às portas do Zé, do João, da Paula e da Diana. Um bando de miúdos enchia os caminhos e os campos de correrias e gargalhadas, apenas interrompidas para o almoço porque o lanche era metido em sacas e saboreado à sombra de uma árvore ou em cima de um muro, sentados, de pernas a bambolear.



sexta-feira, dezembro 04, 2015

Anatomia de um romance

(Jack Vettriano)

Anatomia de um romance.

- deu-lhe um beijo rápido na face, encostando ao de leve o peito ao dela;
- beijou-lhe os dedos da mão direita, pedindo antes "Posso?";
- comeu torradas, nem se lembrando que não costumava fazê-lo;
- deu-lhe nome de pássaro marítimo;
- apertou-a nos braços e beijou-lhe a testa;
- deixou que os lábios descessem das pálpebras à boca;
- descalçou-se com ela e pisaram a areia;
- beijou-a vezes sem conta, intercalando os beijos com o nome dela;
- ajoelhou-se aos seus pés e chamou-lhe "minha Deusa";
- ajudou-a a despir-se de roupa e de pudores;
- completou o corpo dela com o seu corpo;
- abraçou-a, nua, como se sempre a tivesse abraçado;
- chamou-lhe "minha".



- deixou que o seu peito tocasse o dele, durante um beijo rápido;
- entregou-lhe, aos lábios, a mão trémula;
- partilhou as torradas com prazer;
- levou-o a ver o mar;
- enroscou-se nos braços dele;
- ergueu o rosto para ser beijada;
- descalçou-se para pisar a areia com ele;
- beijou-o vezes sem conta, ao som do seu nome dito com doçura;
- acariciou-lhe a cabeça quando o viu de joelhos frente a si;
- foi um só corpo com o corpo dele;
- abraçou-se a ele, nua, como se nunca tivesse abraçado antes;
- chamou-lhe "meu".


quinta-feira, dezembro 03, 2015

Ser ou não ser

(Francis Picabia)


Há uma clara distinção entre ser transparente e ser invisível. A transparência faz de nós seres mais directos e entendíveis ao passo que a invisibilidade nos torna inexistentes. O mesmo se passa relativamente aos seres opacos e aos seres densos. Enquanto os primeiros são um obstáculo à compreensão, os densos são um desafio à descoberta.
Existir requer densidade e transparência, por mais contraditório que se nos assemelhe.


Hoje, sinto-me mais invisível do que transparente.

sexta-feira, novembro 27, 2015

Beijos - Asas

(imagem daqui)


Beijo

São os teus lábios
Nos meus lábios
Nos teus lábios
Os meus lábios

Os meus e os teus
Os nossos lábios

Asas.


Maria Eu


quarta-feira, novembro 25, 2015

Transportar água com uma peneira

(Akrilik Boya Çalışmaları)


O menino que carregava água na peneira

Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.

A mãe disse que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar um vento e
sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.

A mãe disse que era o mesmo
que catar espinhos na água.
O mesmo que criar peixes no bolso.

O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces
de uma casa sobre orvalhos.

A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio, do que do cheio.
Falava que vazios são maiores e até infinitos.

Com o tempo aquele menino
que era cismado e esquisito,
porque gostava de carregar água na peneira.

Com o tempo descobriu que
escrever seria o mesmo
que carregar água na peneira.

No escrever o menino viu
que era capaz de ser noviça,
monge ou mendigo ao mesmo tempo.

O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.

Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor.

A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta!
Você vai carregar água na peneira a vida toda.

Você vai encher os vazios
com as suas peraltagens,
e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos!


Manoel de Barros





Lembro-me de o meu pai sorrir quando me viu, um dia, a tentar salvar uma papoila, regando-a. Não usei um regador, nem qualquer recipiente mais usual nesta coisa de regar flores, daí o sorriso. Na minha inocência dos cinco anos e na urgência do salvamento, ia a correr buscar água ao tanque com as mãos em concha.

Quem sabe queria vir a ser amada pelos meus despropósitos.

domingo, novembro 22, 2015

Flor-coração





Petals

Life is a stream
On which we strew
Petal by petal the flower of our heart;
The end lost in dream,
They float past our view,
We only watch their glad, early start.
Freighted with hope,
Crimsoned with joy,
We scatter the leaves of our opening rose;
Their widening scope,
Their distant employ,
We never shall know. And the stream as it flows
Sweeps them away,
Each one is gone
Ever beyond into infinite ways.
We alone stay
While years hurry on,
The flower fared forth, though its fragrance still stays.

Amy Lowell




Pétalas

A vida é um curso de água
No qual desfolhámos
Pétala a pétala a flor do nosso coração;
O fim a perder-se num sonho
Elas flutuam sob o nosso olhar
Nós só vemos o seu feliz e precoce início.
Cheios de esperança,
Enrubescidos de alegria,
Espalhamos as folhas da nossa rosa desabrochada;
Da amplitude do seu horizonte,
Da dimensão do seu uso,
Jamais saberemos. E à medida que a água flui
Arrasta-as consigo.
Vão-se uma a uma
Sempre mais longe e em incontáveis modos.
Nós quedamo-nos sós
Enquanto os anos se precipitam.
A flor partiu primeiro, mas o seu perfume permanece.

Amy Lowell traduzida por Maria Eu




sábado, novembro 21, 2015

A companhia da saudade

(Pablo Picasso)



A cada dia, Maria Antónia deixa que o tempo corra como que em rajadas de vento norte, despenteando-lhe o cabelo, humedecendo- lhe os olhos, arrefecendo-lhe as mãos. Fustigam-na, de quando em vez, a par com a ventania, os grãos de saudade, iguaizinhos à areia das praias de águas frias e dunas pronunciadas que tantas vezes conhecera irada, infiltrando-se-lhe na boca, no nariz, nos ouvidos, no sexo. Toma-a, então, de mãos dadas com a saudade, um infinito cansaço. Chegada a casa, Maria Antónia senta-se no cadeirão que guarda a luz do jardim fronteiro à varanda do seu quarto, senta a saudade no colo e adormece, afagando-a.



quinta-feira, novembro 19, 2015

Nudez

(foto de Matt Blum paraThe nu project)



Ficou nua.... Assim mesmo, sentada na cadeira do alpendre, o corpo alvo recortado contra o azul vibrante da parede, as curvas menos definidas, as pregas na barriga, as mamas menos firmes. Ela. Sem artifícios. 

Ainda assim, mulher. Ainda assim, desejada.




terça-feira, novembro 17, 2015

Dois cansaços num abraço

(Marc Chagall)


Era pela manhã que se despediam com um beijo apressado. O dia esgotava-os, depois, num sorvedouro de tarefas, repetidas até ao infinito. Corpo moído, olhar vidrado, regressavam um para o outro quando a luz do dia se extinguia, substituída pelo brilho artificial das lâmpadas. E, ao contrário do que se poderia esperar, era então que embrulhavam os seus dois cansaços num só abraço, renascendo, juntos, renovados, ardendo uma e outra vez num acto de amor infinito.


domingo, novembro 15, 2015

A caçada


(Georges HugnetC’est ainsi qu’il lui advint…, 1947)


The hunt

Hunter or prey
Run. Run. Run.
See the trigger?
Feel the urge?
The taste of powder
The taste of blood
Smell the fear?
Smell the thrill?
Behold the gate
Behold the end

Who's the hunter?
Who's the prey?

Maria Eu






A caçada

Caçador ou presa
Corre. Corre. Corre.
Vês o gatilho?
Sentes a urgência?
O travo a pólvora
O travo a sangue
Cheiras o medo?
Cheiras a excitação?
Eis o portão
Eis o fim

Quem é o caçador?
Quem é a presa?

Maria Eu

sábado, novembro 14, 2015

E a luz não ficou prisioneira das trevas

(Ghada Jamal - inspirada pela guerra civil Libanesa)



Genesis 1:3 "Fiat lux. Et facta est lux."


                    (Faça-se luz. E fez-se luz.)



João 1:5 ''Et lux in tenebris lucet et tenebrae eam non comprehenderunt.'' 


                (E a luz brilhou nas trevas e as trevas não a aprisionaram.)




sexta-feira, novembro 13, 2015

Palavras

(Ana Hatherly)

AS PALAVRAS

Tocam-me
como lábios,
como beijos.
Pássaros, sedentos de ramos
e de sombra,
pousam-me nos ombros.
A movimentos de asa,
desenham-me ainda um corpo
- secreta arquitectura de água,
rasgada no v
ento.

Luísa Dacosta






AS PALAVRAS

Prendem-me                                       Selvagens
Atraem-me                                          Apaixonadas
Libertam-me                                        Rebeldes
Ardem-me                                           Vorazes
Vinculam-me                                       Amorosas   
Resgatam-me                                     Libertadoras 
Adoçam-me                                        Amáveis
Sobressaltam-me                               Preclaras

Maria Eu

quinta-feira, novembro 12, 2015

Céu, muito céu com voos de pássaros

(Van Gogh)

Maria Eduarda tinha um jeito todo especial para tirar da ponta do lápis uns desenhos que deixavam os adultos encantados. Houvesse uma nesga de papel livre e era vê-la, mãos à solta e língua de fora, a traçar linhas, a preencher cada pedacinho com flores, árvores, meninos, mar e, sobretudo, céu, muito céu iluminado por um sol rubicundo e dominante onde pontuavam voos de pássaros . Deu-lhe, um dia, para começar a desenhar casas. Havia as pequeninas, com uma porta e duas janelas; as de dois pisos, com escadarias Hollywoodescas; as que se alcandoravam serras acima, com canteiros a ladeá-las e, até, as que se empilhavam umas em cima das outras, naquela modernice dos prédios de apartamentos. 
Pois que bem que ia a pequena. Era uma digna criadora de habitações imaginárias, diziam os que lhe espreitavam o tracejar por cima dos pequenos ombros. Arquitecta! Era isso que devia ser a miúda, quando crescesse! E Maria Eduarda encheu o peito de sonhos enquanto cruzava as folhas com o lápis.
Um dia, numa incursão ao sótão da madrinha, descobriu centenas de livros. Primeiro foram as capas que a atraíram, depois começou a lê-los, um a um, num frenesim que lhe era desconhecido. Ler roubou-lhe a vontade de desenhar. Desenhava, sim, mundos inteiros de palavras na sua imaginação.
Adolescente, o traço era, afinal, uma coisa hesitante de menina. As palavras, essas fluíam como um rio, em jorros luminosos. Quando deu conta, falava delas aos meninos que desenhavam flores, árvores, mar e, sobretudo, céu, muito céu com voos de pássaros.


terça-feira, novembro 10, 2015

segunda-feira, novembro 09, 2015

Doar estrelas

(Abbott Henderson Thayer)

The Giver of Stars

Hold your soul open for my welcoming. 
Let the quiet of your spirit bathe me 
With its clear and rippled coolness, 
That, loose-limbed and weary, I find rest, 
Outstretched upon your peace, as on a bed of ivory. 
Let the flickering flame of your soul play all about me, 
That into my limbs may come the keenness of fire, 
The life and joy of tongues of flame, 
And, going out from you, tightly strung and in tune, 
I may rouse the blear-eyed world, 
And pour into it the beauty which you have begotten.


Amy Lowell




O doador de estrelas

Mantém a tua alma aberta ao meu acolhimento.
Deixa que a quietude do teu espírito me banhe 
Com a sua frescura límpida e ondulante,
Que, de corpo lasso e exangue, eu encontre descanso, 
Estendida na sua paz, como  numa cama de marfim 
Deixa que a chama cintilante da tua alma brinque em mim inteira,
Que em mim possa descer a avidez das chamas, 
A vida e a alegria das línguas de fogo, 
E, ao abandonar-te, firmemente enlaçados e em harmonia, 
Eu possa despertar este mundo de olhos turvos, 
E nele derramar a beleza que tu geraste.

Amy Lowell traduzida por Maria Eu

sábado, novembro 07, 2015

Voa coração! Voa!



Um dia, sentiu que o coração lhe saltava do peito, em alvoroço, e descobriu que podia fazê-lo voar. 


quinta-feira, novembro 05, 2015

Porta

(Samuel van Hoogstraten)


Voltava àquela casa relutante. Vivera ali muitos anos felizes e saíra num dia triste de Inverno, quando tentara abrir a porta e a encontrou fechada, a mala pequena com alguma roupa encostada ao último degrau. Agarrara nos poucos pertences e partira, a cabeça a borbulhar na procura de uma solução, as lágrimas em catadupa. Sabia que podia acontecer. Julgava não haver coragem para o fazerem. Escolhera amar uma mulher mal-querida na aldeia. Joana era casada, mais velha 12 anos do que ele. O marido partira há muito de casa e nunca mais dera notícias. Amava-a e não o escondera. 
- Um dia. Um dia, chegas a casa e tens a mala à porta!
Aquele fora o dia.
Entrou pela mesma porta que lhe tinha sido fechada usando a chave que o advogado lhe fizera chegar. E, virando-se para trás, chamou:
- Vem, Joana, podes entrar, já não mora aqui ninguém.


domingo, novembro 01, 2015

Chá de rooibos e torradas


Maria Eduarda já não pensava naquela coisa absurda da paixão. Os anos tinham-na amadurecido o suficiente para saber que nada substituía a calma dos dias de Outono, com um chá de rooibos e uma torrada numa mesa de esplanada, junto ao mar, acompanhados por um livro e Chet Baker no headphones.
Até ao dia em que José tropeçou na cadeira que ela arrastara levemente do sítio original para esticar as pernas. Não sabia explicar se fora a voz em tom meio atrapalhado, se o olhar franco, se o toque inesperado de uma mão... Sabia, apenas, que nada foi igual dali para a frente. 
Esboça um sorriso terno, sentada na mesma esplanada, com a imensidão do mar no olhar, pensando para com os seus botões que nada do que se toma por certo é definitivo e que a paixão, afinal, para além de não se esquivar de surgir em qualquer sítio, também perdura para além do pouco tempo que lhe auguram.
Com um suspiro, bebe um gole de chá e retoma o livro que segura na mão direita, enquanto aperta a de José com a esquerda.

sexta-feira, outubro 30, 2015

A menina investigadora/repórter


(Charles Burton Barber)

Clarinha tinha uma atracção especial por descobrir recantos na casa da quinta. Já contornara a vedação do curral da porca grande para meter a mão por entre as vigas e fazer festinhas aos leitões (espetava, o pêlo branquinho); já abrira a porta de acesso ao galinheiro e espantara galinhas, galos e pintainhos, dando azo a correrias da mãe e da vizinhança possível de arrebanhar, para a empreitada de meter as aves todas no sítio devido; já soltara os cães de caça e ia provocando uma desgraça, pois o Mancha Negra, lançado, correu para a estrada e por pouco não foi atropelado... Enfim, uma menina atrevida que levara algumas palmadas no rabo à conta de tanta vontade de "descobrir"!
Do alto dos seus cinco anos, cabeça coberta de fios de ouro, sempre atados em rabo de cavalo por um laçarote de cetim, e roupa protegida por bibes de riscas ou de quadrados feitos pela mãe na máquina Singer, sentia-se de vez em quando a investigadora/repórter dos mistérios que se desenrolavam por detrás de grades, portas, portões, janelas, e, até, de muros.
- A menina não fez nada! dizia, com ar comprometido, ao chegar a casa depois de uma qualquer "descoberta" com fuga de prova viva (também houve coelhos à solta, para além das aves).
Bem ia com a palmadas da mãe, suavizadas pela roupa. O pior foi aquele dia em que o pai se zangou a sério! A voz forte ecoava pelo quintal:
- Maria Clara! Maria Clara!
Ela ficou quietinha, encolhida por baixo da japoneira. Sabia bem que se o chamamento era feito pelos dois nomes e não por Clarinha, ou mesmo Clara, a coisa era séria!
A voz agigantava-se, aproximando-se, e o pai não tardou a descobri-la. Na mão, trazia a espingarda que usava para caçar. A mesma que ela tinha tirado do armário dos fundos, depois de ter espreitado onde ele guardava a chave, ao Domingo, em chegando da caça. 
Nunca o vira tão desfigurado! Pegou-lhe por um braço, magoando-a, e arrastou-a para casa, atirando-a para o chão da sala.
- Vês esta arma? gritou-lhe, encostando-lha à cara lavada em lágrimas. Vê-a bem! Nunca mais vais tocar numa arma, ouviste? Esta nunca está carregada mas podia estar. Eu podia ter-me distraído. Podias morrer! Podias morrer, ouviste?
Dito isto, desatou num choro convulsivo e sentou-se no chão, ao lado dela, abraçando-a com tanta força que quase não lhe permitia respirar.
Nunca tinha visto o pai chorar!


Clarinha não voltou a abrir armários fechados à chave. Maria Clara só os abriu quando foi necessário.


quarta-feira, outubro 28, 2015

Viagem




Hoje, finalmente,  ganhei coragem e dei-te a mão. Não estava bom tempo, tremia, os olhos marejaram-se-me de lágrimas e apertei a tua mão na minha ali mesmo, no lugar onde, ano após ano, trabalhámos,  conversámos, sorrimos e, algumas vezes, também chorámos.
Esqueci aquela regra (existe, ainda que não publicada em lado algum) que diz não deverem um homem e uma mulher, adultos, dar as mãos assim, do nada.
Devia tê-lo feito quando me disseste que não vacilasse, naquele outro dia. Que me sabias capaz para dar um passo em frente. Ainda, quando te disseste bem, lendo eu nos teus olhos que estavas mal (covarde, fingi acreditar).
Perdoar-me-às, estou certa, com esse teu sorriso sempre doce, que só agora caminhe contigo, aninhando a tua mão na minha, até à Luz, só para te ver partir, blusão de couro, a acelerar na tua moto.


Da ausência

(Asia Jedlińska)

A Partir da Ausência

Imaginar a forma 
doutro ser Na língua, 
proferir o seu desejo 
O toque inteiro 

Não existir 

Se o digo acendo os filamentos 
desta nocturna lâmpada 
A pedra toco do silêncio densa 
Os veios de um sangue escuro 

Um muro vivo preso a mil raízes 

Mas não o vinho límpido 
de um corpo 
A lucidez da terra 
E se respiro a boca não atinge 
a nudez una 
onde começo 

Era com o sol E era 
um corpo 

Onde agora a mão se perde 
E era o espaço 

Onde não é 

O que resta do corpo? 
Uma matéria negra e fria? 
Um hausto de desejo 
retém ainda o calor de uma sílaba? 

As palavras soçobram rente ao muro 
A terra sopra outros vocábulos nus 
Entre os ossos e as ervas, 
uma outra mão ténue 
refaz o rosto escuro 
doutro poema 


António Ramos Rosa, in "A Nuvem Sobre a Página"



Sobram as palavras na falta da presença.

terça-feira, outubro 27, 2015

O leip-bya (texto reeditado)

"O leip-bya é uma espécie de espírito, com asas como uma borboleta, mas voa de noite. (...) Há birmaneses que dizem que a vida de um homem se encontra num espírito que é como... uma traça. O espírito fica dentro do corpo, o homem não pode viver sem ele. Os birmaneses também dizem que o leip-bya é a razão por que sonhamos. Quando um homem dorme, o leip-bya sai-lhe da boca e voa de um lado para o outro e vê coisas durante essa viagem e essas coisas são os sonhos. O leip-bya tem sempre de regressar para dentro do homem pela manhã. É por isso que os birmaneses não querem acordar as pessoas adormecidas. Talvez o leip-bya ainda esteja longe e não possa voltar para casa com a rapidez suficiente. (... ) Se o leip-bya se perder ou, se durante a viagem for apanhado e comido por um bilu... como é que se diz?... um espírito maligno... então é o último sono desse homem." 

Daniel Mason, in O Afinador de Pianos


 (Carmelo Blázquez Jiménez)

Se vires uma borboleta a sair da boca de um homem, segue-a e saberás os seus sonhos.
Se vires uma borboleta a entrar na boca de um homem, não o perturbes, são os seus sonhos a invadi-lo.


segunda-feira, outubro 26, 2015

Ternurar

(Chagall)

Ternurar - verbo transitivo
Significado - Trocar ternura.

Exemplo: Ficavam ali, um ao lado do outro, corpos enlaçados, olhos nos olhos, palavras doces à solta, a ternurar.


sexta-feira, outubro 23, 2015

Da ternura e da raiva

(Jack Vettriano)


Eu tenho raiva à ternura. Eu tenho raiva de ter raiva à ternura. 
Eu tenho a doença da ternura por ter raiva. Eu tenho tudo
excepto a ternura. Eu não tenho ternura e sofro de inveja de
quem tem ternura. Eu já só tenho raiva. 
Manuel Cintra




Eu sou terna, mesmo na raiva. Eu tenho raiva de ser terna na raiva.
Eu tenho o dom da cura da raiva por ser terna. Eu tenho tudo excepto a raiva. Eu não tenho raiva e sofro 
por quem a tem. Eu já só tenho ternura.

Maria Eu


quarta-feira, outubro 21, 2015

Ferida

(Arantzazu Martinez)


Fere-me a morte lenta dos heróis que lutam, sem tréguas, contra a opressão.
Fere-me o excesso de brilho dos que oprimem quando só das trevas se alimentam.


terça-feira, outubro 20, 2015

Irmã

(Iman Maleki)

Foi com ela que aprendeu como brincar às meninas que não tomam chá mas comem bolos de boca cheia rindo às gargalhadas. Foi com ela que se maravilhou com os primeiros collants finos por baixo de uma mini-saia de pregas. Foi na carteira dela que encontrou aquele maço de cigarros longos e castanhos (Negritas, se bem se lembra) de onde retirou um para fumar (engasgar-se é o termo) às escondidas, no telheiro. Dela, era o eye-liner com que delineou o olhar pela primeira vez. No ombro dela, chorou os joelhos esfolados na queda do muro ao fugir do cão do Sr. António da Mata, encostou a cabeça cansada nos dias de exames, se recostou, entre suspiros, a contar do primeiro amor, espreitou as linhas de romances clássicos.
Olha-se, agora, ao espelho, tantos anos volvidos e, sem estranheza, vê em si muito dela.


domingo, outubro 18, 2015

Vai!


(Hope Gangloff)

Cântico


Limarás tua esperança
até que a mó se desgaste;
mesmo sem mó, limarás
contra a sorte e o desespero.

Até que tudo te seja
mais doloroso e profundo.
Limarás sem mãos ou braços,
com o coração resoluto.

Conhecerás a esperança,
após a morte de tudo.

Carlos Nejar, in 'Canga'





Incitamento

Vai, para além de ti! 

Do desespero nunca te aprisiones
Ainda que hoje haja borrasca
Ainda que o vento teime em arrastar-te
Ainda que o frio te chegue aos ossos.

Vai, de peito aberto!

Da esperança não sejas ignorante
Do coração a bater, desperto
Dos desejos perseguidos, vivos
Dos sonhos em plena luz do dia.


Maria Eu


sábado, outubro 17, 2015

Perdoar

(Black raptor art)

O calor abrasava, por aqueles dias, na aldeia. Mariana brincara o dia inteiro em correrias pelos campos e gargalhadas partilhadas com a criançada da vizinhança. Nunca se apressava no regresso a casa. Costumava ir espreitar os animais, vacas, porcos, galinhas, coelhos e, claro os seis cães que tanto acompanhavam o pai nas caçadas como a rodeavam a pedir mimo.
Foi ao chegar às pocilgas que percebeu algo de estranho. A porca maior, que tinha acabado de parir dez porquinhos (ainda de manhã os tinha visto em esfomeada pose a mamar na mãe, deitada no chão, meiga que só visto) estava a ser encaminhada para uma carrinha de caixa aberta onde já estavam os outros porcos da exploração agrícola. Viu a expressão do pai, fechada e tensa. 
- Vai para casa, menina! A tua mãe já deve estar ralada! Já viste as horas?
Em casa, o jantar decorreu em silêncio, à excepção dos suspiros da mãe que, a cada passo, punham o pai a olhá-la com um ar de censura.
- Mãe, o que tens?
- Nada, filha! Só estou cansada! Vamos para a cama cedo, sim?
Deitada, percebia uma agitação que não se confinava aos de casa. A aldeia fazia eco de vozes e guinchos a assemelharem-se aos contos de terror que o primo Zé costumava contar nas noites longas de Verão. Levantou-se, a medo, e assomou à janela. Não muito longe, o céu iluminava-se à luz de fogueiras e o ruído intensificava-se com as vidraças abertas. O ar estava irrespirável com um cheiro acre.
De manhã, soube que todos os porcos da aldeia tinham sido levados para um campo abandonado e mortos, um a um, com uma pistola especial, diziam, para depois serem queimados e enterrados. 
- Mãe! Mãe! E os porquinhos, mãe? 
- Tinha que ser, filha, era a peste!
- Nunca mais perdoo o pai! Nunca mais!

Mariana ainda não sabia o significado de "perdoar".