domingo, maio 20, 2018

Luz

(Vincent Van Gogh)


Tinham sido tempos difíceis. Bebiana e João chegaram aos quarenta sem que no céu houvesse uma única estrela ou fossem abençoados com um filho. Frente ao caldo da ceia, já nem levantavam os olhos da malga, mergulhados num silêncio pesado embrulhado no cansaço dos dias e na escuridão das noites.
Naquele final de tarde, Bebiana sentiu uma vontade enorme de comer nêsperas. Raio de coisa, para o que lhe havia de dar, pensou João, saindo de casa para encostar a escada à nespereira onde despontavam meia dúzia de frutos mirrados. Bastou a novidade para que se olhassem como há muito tempo não faziam. Conta-se que foi nessa noite que Luz foi concebida. Estranhamente, tantos anos volvidos, uma estrela surgiu, solitária, visível por detrás dos montes que rodeavam a aldeia. 
Quando rebentaram as águas a Bebiana e as mãos hábeis da Sr.ª Tina seguraram Luz em prantos, rasgou-se o negrume, pontilhando-se de milhares de estrelas.



domingo, maio 06, 2018

Sem palavras

(imagem daqui)

A palavra teimava na reclusão. Apoucava-se na oralidade fácil, qual romance de cordel. Enrolava-se em saudações rápidas, ordens incisivas e curtas, perguntas inopinadas. Sem que se desse conta, os dedos deixavam de desenhar as letras, de somá-las, uma a uma, contando enredos de histórias imaginárias, de vidas outras, de sonhos (des)feitos. 
Disseram-lhe que o tempo delas, das palavras grávidas de sentido(s), estava a acabar e ela acreditou, olhando com tristeza os dedos secos de tinta sombreando o papel imaculado de tão branco.



Uns sufocavam de palavras, ela, da falta delas.