Se eu sou peixe, tu és mar
Se eu sou sede, tu és água
Se eu sou veia, tu és sangue
Se eu sou céu, tu és gaivota
Tu, metade de mim.
(Yar Koporulin - Air)
Movimiento
Si tú eres la yegua de ámbar
Yo soy el camino de sangre
Si tú eres la primera nevada
Yo soy el que enciende el brasero del alba
Si tú eres la torre de la noche
Yo soy el clavo ardiendo en tu frente
Si tú eres la marea matutina
Yo soy el grito del primer pájaro
Si tú eres la cesta de naranjas
Yo soy el cuchillo de sol
Si tú eres el altar de piedra
Yo soy la mano sacrílega
Si tú eres la tierra acostada
Yo soy la caña verde
Si tú eres el salto del viento
Yo soy el fuego enterrado
Si tú eres la boca del agua
Yo soy la boca del musgo
Si tú eres el bosque de las nubes
Yo soy el hacha que las parte
Si tú eres la ciudad profanada
Yo soy la lluvia de consagración
Si tú eres la montaña amarilla
Yo soy los brazos rojos del liquen
Si tú eres el sol que se levanta
Yo soy el camino de la sangre.
Octavio Paz
segunda-feira, março 31, 2014
Da moral matematicamente solidária
"Outra situação que Sors considerava capaz de avaliar as pessoas em termos morais era a capacidade que estas tinham para compreender a mais difícil das operações aritméticas: dividir o pão. Sors tinha reparado que essa é que era a matemática pura, e também a conta mais difícil de fazer, apesar de não ter vírgulas, nem números irracionais, nem nada disso. Temos um bocado de pão e temos de o dividir por dois. Parece elementar, mas é demasiado complexo. Nenhuma escola ensina esta operação com eficiência. A prova está à nossa volta."
Afonso Cruz, in O Pintor Debaixo do Lava-Loiças
(Salvador Dali)
Feliz daquele que é capaz de dividir o pão sem que nunca lho tenham ensinado.
domingo, março 30, 2014
Procuro-te
caminho ao longo da noite
enxergando, enxugando uma espécie de felicidade.
na corrente vertical, emocional,
as horas escorrem devagar - a meu pedido.
numa chávena de água vejo um mar. no mar visto
o teu rosto, as tuas mãos
conquisto.
de mim para mim.
vim... vem também.
abro os olhos, vejo o mundo escuro,
molhado.
procuro-te, pensativoramente.
por momentos - muitos -
tu és a própria bússula.
Ondjaki, in "Acto Sanguíneo"
(Lourdes Castro)
Faço dos meus passos um eco dos teus.
(Per)sigo-te nas horas plácidas de sábado à tarde.
Ao longe, o ressoar de um riso, os passos firmes.
Ficas suspenso na rua dos meus sonhos.
enxergando, enxugando uma espécie de felicidade.
na corrente vertical, emocional,
as horas escorrem devagar - a meu pedido.
numa chávena de água vejo um mar. no mar visto
o teu rosto, as tuas mãos
conquisto.
de mim para mim.
vim... vem também.
abro os olhos, vejo o mundo escuro,
molhado.
procuro-te, pensativoramente.
por momentos - muitos -
tu és a própria bússula.
Ondjaki, in "Acto Sanguíneo"
(Lourdes Castro)
Faço dos meus passos um eco dos teus.
(Per)sigo-te nas horas plácidas de sábado à tarde.
Ao longe, o ressoar de um riso, os passos firmes.
Ficas suspenso na rua dos meus sonhos.
sábado, março 29, 2014
Vem! disse a aranha...
(Ophrys Bombyliflora)
"Robinson observava, pois, com apaixonado interesse os costumes nupciais dos animais que o rodeavam.
(...) Intrigava-o a manobra de um himenóptero macho que só visitava uma determinada espécie de orquídea, sem parecer interessado em colher mel. Passou longas horas, de lupa na mão, a tentar decifrar o comportamento do bicho. Descobriu primeiro que a flor reproduzia exactamente, em matéria vegetal, o abdómen da fêmea do insecto, a ponto de apresentar um espécie de vagina, de onde provavelmente se desprendia um odor afrodisíaco específico, próprio para atrair e seduzir o apaixonado. O insecto não pilhava a flor, provocava-a, depois fazia amor com ela segundo os ritos de procriação da sua espécie. A operação colocava-o numa boa postura para que o pólen reunido em duas polinias, viesse fixar-se-lhe na fronte graças a duas pequenas cápsulas viscosas, e era enfeitado com esse par de cornos vegetais que o ingénuo enamorado prosseguia a sua colheita, de flor masculina para flor feminina, trabalhando pelo futuro da orquídea quando julgava servir a própria casta."
Michel Tournier, in Sexta-Feira ou os Limbos do Pacífico
"-Vem!" sussurrava-lhe a aranha com voz doce. "Olha só a beleza desta teia. Um leito tecido com todo o cuidado para te acolher."
E ele foi...
sexta-feira, março 28, 2014
O tempo antes do tempo
(Maurice Sapiro)
"- E desde quando me amas?" perguntou-lhe, o sol a dourar o horizonte.
"- Amo-te desde antes de te conhecer. Desde o tempo em que nada sabias de mim e em que eu nada sabia de ti. Desde o tempo antes do tempo de sermos nós." respondeu-lhe.
quinta-feira, março 27, 2014
Perseguição
"Também o peixe é meu amigo... Nunca vi nem ouvi falar de um peixe assim. Mas tenho de o matar. Agrada-me pensar que não temos de matar as estrelas..."
Ernest Hemingway, in O Velho e o Mar
shwidkiy andrey
shwidkiy andrey
Mata-se ciclicamente. Sai-se, persegue-se, arpoa-se, esventra-se. As estrelas? As estrelas estão longe de mais, podem brilhar descansadas...
quarta-feira, março 26, 2014
Gorjeio
Gorjeios
Gorjeio é mais bonito do que canto porque nele se
inclui a sedução.
É quando a pássara está namorada que ela gorjeia.
Ela se enfeita e bota novos meneios na voz.
Seria como perfumar-se a moça para ver o namorado.
É por isso que as árvores ficam loucas se estão gorjeadas.
É por isso que as árvores deliram.
Sob o efeito da sedução da pássara as árvores deliram.
E se orgulham de terem sido escolhidas para o concerto.
As flores dessas árvores depois nascerão mais perfumadas.
Manoel de Barros
(Jean-Luc Mylayne)
Se ouvirem um gorjeio, não é só mais um pássaro a fazer-se ouvir, é uma declaração de amor.
terça-feira, março 25, 2014
O triunfo dos argentários
"-Pronto! Descobri: é um aviário! Olha-me para aquela mesa de honra: o que para ali vai de mochos, de corujas, de falcões, de catatuas!... Tu já tinhas dado alguma vez pela existência desta colecção cá na casa?
-Não, Lício - respondeu desmorecidamente Manuel João. Aquele primeiro aniversário da Acção não correspondia, nem pouco nem muito, ao que ele sonhara e vivera de antemão. Claro que era só a parte mundana, uma coisa puramente simbólica... e que mal simbolizada!... Logo à entrada notara a separação das "castas": uma mesa para a redacção, outra para a administração, outra para a tipografia... e a Outra, que era a dos "deuses" e dos seus favoritos. Aquelas faces toscas de finaceiros, de arranjistas, de adventícios! Um dos absurdos lógicos da vida: o êxito daquela espécie humana tão tacanha e desinteressante..., os argentários. Os "espertos". Incapazes, no entanto, fora das cifras, quase sempre, de dizerem três palavras sem arriar bojarda. -Não achas, Lício?
-Acho: acho que os falhados é que são as pessoas interessantes em geral. O que eu acho também é que isto não me cheira bem. Há qualquer coisa podre no reino da Dinamarca... Perguntei ao Diógenes, não conheces?, aquele catraio além, um servente das máquinas... O desgraçado nem tinha lugar..."
Urbano Tavares Rodrigues, in Os Insubmissos
(David Alfaro Siqueiros)
Hoje, como ontem, os argentários ocupam a mesa de honra, rodeados pelos arranjistas e adventícios. Hoje, como ontem, procura-se separar as "castas", não vá a estratificação social ser abalada e fazer com que um Dalit, um mero servente de máquinas, tenha lugar à mesa dos restantes.
domingo, março 23, 2014
Fabrico (im)perfeito
Primeiro, o fazedor esculpiu-a a ela. Imperfeita mas agradável à vista, pele muito clara, face ovalada, com o queixo levemente levantado e um olhar doce mas altivo. Preparou-a para ser conciliadora e paciente mas deu-lhe um coração selvagem que, se provocado, a faria navegar em vagas alterosas apenas aplacáveis com ternura. Tinha no peito a nortada que agitava as praias que aprendeu a amar.
Depois, foi a vez dele. Deu-lhe feições angulosas, bem masculinas, e a pele, como espirrou durante o fabrico, polvilhou-se de pequenas manchas castanhas. Sério, mas com um sorriso a iluminar-lhe o rosto se tocado pelo amor, tinha o dom de reflectir antes de agir e uma particular calma perante águas agitadas. Tinha no peito o grito das gaivotas e o rumor do mar.
O fazedor sentou-os um ao lado do outro mas, enquanto se ocupava no fabrico de outras criaturas, ela saiu por uma porta, enquanto ele resolveu saltar por uma janela.
sábado, março 22, 2014
Psycho
(1962 Ina Balke e Alfred Hitchcock na casa de “Psycho”)
E o cinema de Terror nunca mais foi o mesmo...
E o cinema de Terror nunca mais foi o mesmo...
sexta-feira, março 21, 2014
Olhar
(Júlio Pomar)
Tantas vezes te imaginei, te retoquei na tela do querer
Tantas vezes te dei um corpo, te inventei um rosto
Tantas vezes te toquei, te encontrei na polpa dos meus dedos
E, de todas as vezes, o teu olhar era o de uma gaivota em voo rasante sobre o mar.
Maria Eu
quinta-feira, março 20, 2014
Primavera
(Lisa Carney)
“estes dias”
queimam-me
os dias
dos outros.
rego-me, reinvento o
mundo.
falho.
na minha janela
de ferrugem tórrida
os passarinhos
ainda
fazem amor.
Ondjaki
“estes dias”
queimam-me
os dias
dos outros.
rego-me, reinvento o
mundo.
falho.
na minha janela
de ferrugem tórrida
os passarinhos
ainda
fazem amor.
Ondjaki
Enquanto houver uma janela e nela houver pássaros, posso falhar a reinvenção do mundo mas hei-de sempre reinventar-me.
quarta-feira, março 19, 2014
Viagem
(José Almada Negreiros)
"Todas as coisas do universo aonde, por tanto
tempo, me procurei, são as mesmas que encontrei dentro do peito no fim
da viagem que fiz pelo universo."
José Almada Negreiros, in A invenção do dia claro
A nossa maior viagem é a interior. Nela, e apenas nela, nos encontramos.
Dou-te a minha mão, pai
Não é a Tua Mão
Não é a tua mão
filha
que eu levo
na minha mão
é uma raiz
que eu planto
em mim mesmo
António Reis, in 'Novos Poemas Quotidianos'
Posso ir para a tua cama, pai?
Contas-me uma história?
Gostas mais de mim do que da mana, não gostas?
Põe o braço assim, à minha volta! Prometo que fico quietinha!
Não é a tua mão
filha
que eu levo
na minha mão
é uma raiz
que eu planto
em mim mesmo
António Reis, in 'Novos Poemas Quotidianos'
Posso ir para a tua cama, pai?
Contas-me uma história?
Gostas mais de mim do que da mana, não gostas?
Põe o braço assim, à minha volta! Prometo que fico quietinha!
terça-feira, março 18, 2014
segunda-feira, março 17, 2014
Receita para matar um homem
(Tarsila do Amaral)
Pegas num homem. Tiras-lhe tudo, pouco a pouco. Não os bens materiais, esses deixa-los ficar. Primeiro as memórias, depois o gosto pelas coisas pequenas, como comer, passear ao sol, ou sentir na pele a água morna de um duche. Depois senta-o. Para quê estar de pé? Para quê andar? Senta-o que logo ele pedirá para se deitar e, a seguir, para ficar deitado.
Pegas num homem e tiras-lhe tudo, até a dignidade. Pegas num homem e fazes dele a sua sombra.
domingo, março 16, 2014
"Debris"
Terra castanha clara, seca, em torrões alveolados. Enche-se-te a boca dela. Ontem eras geograficamente visível, localizável no mapa de uma cartografia desenhada à pena. Hoje submerges nos escombros de um terramoto. Absurdamente, vem-te à memória uma palavra noutra língua : debris.
sábado, março 15, 2014
Jardim
A terra hoje é uma varanda
sobre um jardim de Matisse
um claro degrau de pedra
nua no interior de um poço
rodopiam as cores na água
cintilações, folhas, frutos, sargaços
raízes, e perto talvez os teus passos.
Maria João Fernandes, in "Os Caminhos do Olhar"
sobre um jardim de Matisse
um claro degrau de pedra
nua no interior de um poço
rodopiam as cores na água
cintilações, folhas, frutos, sargaços
raízes, e perto talvez os teus passos.
Maria João Fernandes, in "Os Caminhos do Olhar"
(le jardin - Henri Matisse)
Seja, pois, a terra uma varanda. Sejas tu Cavaleiro e eu Dama. Partamos juntos num cavalo branco, alado, em direcção à Ilha onde o sonho é possível.
sexta-feira, março 14, 2014
Desejo
Cosmocópula
O corpo é praia a boca é a nascente
e é na vulva que a areia é mais sedenta
poro a poro vou sendo o curso de água
da tua língua demasiada e lenta
dentes e unhas rebentam como pinhas
de carnívoras plantas te é meu ventre
abro-te as coxas e deixo-te crescer
duro e cheiroso como o aloendro
Natália Correia,in "Eros de passagem, Poesia erótica contemporânea"
(©2013 by The Dirty Gentleman (#753))
O corpo é praia a boca é a nascente
e é na vulva que a areia é mais sedenta
poro a poro vou sendo o curso de água
da tua língua demasiada e lenta
dentes e unhas rebentam como pinhas
de carnívoras plantas te é meu ventre
abro-te as coxas e deixo-te crescer
duro e cheiroso como o aloendro
Natália Correia,in "Eros de passagem, Poesia erótica contemporânea"
(©2013 by The Dirty Gentleman (#753))
A cada toque, a cada aflorar de lábios, liquefaço-me, inundando-nos do perfume da flor rubra do sexo.
quinta-feira, março 13, 2014
Trémula
(Marrit Beer)
"Porque tremes?" pergunta-lhe, abraçando-a.
"Porque, quando me tocas, não consigo deixar de tremer!" respondeu-lhe, encostando a cabeça no seu peito.
quarta-feira, março 12, 2014
Inverno
(©Anka Zhuravleva)
Quando não vens
fica frio
não há pássaros
nem meninos
no jardim d'água
Quando não vens
chove sempre
não há guarda-chuvas
nem abrigos
na rua onde moro
Maria Eu
Quando não vens
fica frio
não há pássaros
nem meninos
no jardim d'água
Quando não vens
chove sempre
não há guarda-chuvas
nem abrigos
na rua onde moro
Maria Eu
terça-feira, março 11, 2014
Nunca uses a faca sashimi para descascar batatas
Faca (fria)
Gume (afiado)
Carne (branca)
Sangue (rubro)
Golpe (fundo)
Um dia, usas a faca sashimi em vez do descascador de batatas e...
Gume (afiado)
Carne (branca)
Sangue (rubro)
Golpe (fundo)
Um dia, usas a faca sashimi em vez do descascador de batatas e...
Ah, este país Portugal!
No Meu País
No meu país
dardejado de sol e da caca dos gaios
só há estâncias
(de veraneio) na poesia.
Nossos lábios
a um metro e sessenta e tal
do chão amarelecido
dos símbolos
abrem para fora
por dois gomos de frio.
Nossos lábios outonais, digo,
outonais doze meses.
No entanto
à flor da possível
geografia
um frémito cinde
as estações do ano.
Sebastião Alba, in 'O Ritmo do Presságio'
*Para saber mais visitar antologia do esquecimento
(
Emigrantes, Santa Apolónia, 1960 [?].
Eduardo Gageiro
No País
no país no país no país onde os homens
são só até ao joelho
e o joelho que bom é só até à ilharga
conto os meus dias tangerinas brancas
e vejo a noite Cadillac obsceno
a rondar os meus dias tangerinas brancas
para um passeio na estrada Cadillac obsceno
e no país no país e no país país
onde as lindas lindas raparigas são só até ao pescoço
e o pescoço que bom é só até ao artelho
ao passo que o artelho, de proporções mais nobres,
chega a atingir o cérebro e as flores da cabeça,
recordo os meus amores liames indestrutíveis
e vejo uma panóplia cidadã do mundo
a dormir nos meus braços liames indestrutíveis
para que eu escreva com ela, só até à ilharga,
a grande história do amor só até ao pescoço
e no país no país que engraçado no país
onde o poeta o poeta é só até à plume
e a plume que bom é só até ao fantasma
ao passo que o fantasma - ora aí está -
não é outro senão a divina criança (prometida)
uso os meus olhos grandes bons e abertos
e vejo a noite (on ne passe pas)
diz que grandeza de alma. Honestos porque.
Calafetagem por motivo de obras.
É relativamente queda de água
e já agora há muito não é doutra maneira
no país onde os homens são só até ao joelho
e o joelho que bom está tão barato
Mário Cesariny, in 'Discurso Sobre a Reabilitação do Real Quotidiano'
No meu país
dardejado de sol e da caca dos gaios
só há estâncias
(de veraneio) na poesia.
Nossos lábios
a um metro e sessenta e tal
do chão amarelecido
dos símbolos
abrem para fora
por dois gomos de frio.
Nossos lábios outonais, digo,
outonais doze meses.
No entanto
à flor da possível
geografia
um frémito cinde
as estações do ano.
Sebastião Alba, in 'O Ritmo do Presságio'
*Para saber mais visitar antologia do esquecimento
(
Emigrantes, Santa Apolónia, 1960 [?].
Eduardo Gageiro
No País
no país no país no país onde os homens
são só até ao joelho
e o joelho que bom é só até à ilharga
conto os meus dias tangerinas brancas
e vejo a noite Cadillac obsceno
a rondar os meus dias tangerinas brancas
para um passeio na estrada Cadillac obsceno
e no país no país e no país país
onde as lindas lindas raparigas são só até ao pescoço
e o pescoço que bom é só até ao artelho
ao passo que o artelho, de proporções mais nobres,
chega a atingir o cérebro e as flores da cabeça,
recordo os meus amores liames indestrutíveis
e vejo uma panóplia cidadã do mundo
a dormir nos meus braços liames indestrutíveis
para que eu escreva com ela, só até à ilharga,
a grande história do amor só até ao pescoço
e no país no país que engraçado no país
onde o poeta o poeta é só até à plume
e a plume que bom é só até ao fantasma
ao passo que o fantasma - ora aí está -
não é outro senão a divina criança (prometida)
uso os meus olhos grandes bons e abertos
e vejo a noite (on ne passe pas)
diz que grandeza de alma. Honestos porque.
Calafetagem por motivo de obras.
É relativamente queda de água
e já agora há muito não é doutra maneira
no país onde os homens são só até ao joelho
e o joelho que bom está tão barato
Mário Cesariny, in 'Discurso Sobre a Reabilitação do Real Quotidiano'
segunda-feira, março 10, 2014
Sol
(Jay Maisel)
Alegro-me pelo sol, não pela luz que se reflecte no céu até há pouco tão cinzento, mas sim porque sei que ele te ilumina.
domingo, março 09, 2014
Assombração
(F DellaAvestruz)
Saltaram o muro da casa assombrada com mãos feito garras, arranhando o pesadelo. Galgaram as escadas em galope, faunos enlouquecidos pelo cheiro a ninfas diáfanas. E elas vieram, transparentes, fantasmas atravessando portas, varando as vidaraças quebradas pelas intempéries e pelo abandono. Rasgaram-se em urros e gemidos à visão dos cascos duros. Em arrepelos, entraram no peito forte dos trespassantes que se deixaram invadir sem defesa.
Nada sentiram, os faunos. Nada sentiram, as ninfas. Ectoplasmas não sentem e, aos faunos, os fantasmas atravessam-nos sem provocar sequer um arrepio.
sábado, março 08, 2014
E Eva soube
(Miss Aniela)
Serpenteando
Silvava
Suavemente
(a Sibilina Serpente)
Suculenta!
Saborosa!
Soberba!
(a proibida maçã)
Sucumbindo
Saboreou
Suspirando
(o fruto proibido)
Sonhara
Saber
Sabia, agora!
(a sua nudez)
Serpenteando
Silvava
Suavemente
(a Sibilina Serpente)
Suculenta!
Saborosa!
Soberba!
(a proibida maçã)
Sucumbindo
Saboreou
Suspirando
(o fruto proibido)
Sonhara
Saber
Sabia, agora!
(a sua nudez)
sexta-feira, março 07, 2014
Luz e sombra
(Dopo la tempesta - Luca Lupi)
Faz-se Luz
Faz-se luz pelo processo
de eliminação de sombras
Ora as sombras existem
as sombras têm exaustiva vida própria
não dum e doutro lado da luz mas no próprio seio dela
intensamente amantes loucamente amadas
e espalham pelo chão braços de luz cinzenta
que se introduzem pelo bico nos olhos do homem
Por outro lado a sombra dita a luz
não ilumina realmente os objectos
os objectos vivem às escuras
numa perpétua aurora surrealista
com a qual não podemos contactar
senão como amantes
de olhos fechados
e lâmpadas nos dedos e na boca
Mário Cesariny, in "Pena Capital"
Nunca seríamos capazes de amar a luz se não conhecessemos a sombra.
Faz-se Luz
Faz-se luz pelo processo
de eliminação de sombras
Ora as sombras existem
as sombras têm exaustiva vida própria
não dum e doutro lado da luz mas no próprio seio dela
intensamente amantes loucamente amadas
e espalham pelo chão braços de luz cinzenta
que se introduzem pelo bico nos olhos do homem
Por outro lado a sombra dita a luz
não ilumina realmente os objectos
os objectos vivem às escuras
numa perpétua aurora surrealista
com a qual não podemos contactar
senão como amantes
de olhos fechados
e lâmpadas nos dedos e na boca
Mário Cesariny, in "Pena Capital"
Nunca seríamos capazes de amar a luz se não conhecessemos a sombra.
quinta-feira, março 06, 2014
Rimas populares
( Letter - Eeli-Ethel Polli)
Eu tinha um papel dobrado
Bem no fundo da gaveta
Eu tinha um papel dobrado
Escrito a caneta preta
Esse papel amarelo
Escrito a caneta preta
Guardava-o com desvelo
Bem no fundo da gaveta
E pela noitinha fora
Relia-o com devoção
É assim quando se adora
Com todo o coração
Maria Eu
quarta-feira, março 05, 2014
Infância
(József Marx)
Da infância fica a memória. Ficam as horas estreladas da inocência, o cheiro das maçãs "porta da loja" e das uvas morangas. Ficam, ainda, os ecos das canções de embalar, as vozes alegres nas brincadeiras de pátio de escola ("Um-dó-li-tá, cara de amêndoá, quem está livre, livre está"!).
Viste, Maria, as meninas no baloiço?
Who's afraid of the big bad wolf?
Era uma vez uma menina muito, muito bonita que era, pode dizer-se com propriedade, a menina dos olhos de sua mãe e avó.
Quando fizera 11 anos, a avó tinha-lhe oferecido um casaco vermelho de lã com capuz que lhe ficava tão bem, tão bem, que toda a gente passou a chamá-la de Capucinho Vermelho, que ear como se chamava também uma outra menina muito, muito bonita que havia num conto que a avó lhe contava quando ela era pequena e de que ela gostava tanto, tanto que, à noite, antes de ela adormecer, ainda pedia às vezes à avó para que lho contasse outra vez.
O conto contava a história de uma menina que era comida por um lobo e Capuchinho Vermelho costumava perguntar à avó porque é que a mãe dessa menina não correra a ajudá-la e não matara o lobo e porque é que o pai nem sequer entrava na história.
*Não sei", respondia-lhe a avó. "Foi assim que aprendi. Talvez os pais dela, como os teus, estivessem separados, ou talvez o pai tivesse morrido..."
"Mas a mãe, porque é que a mãe não matou o lobo?", insistia Capuchinho.
"Sei lá, minha querida", dizia a avó encolhendo os ombros cheia de paciência. "Já ninguém se lembra desses pormenores, é uma história muito antiga que ensina às meninas que não devem dar conversa a lobos..."
E a avó recitava-lhe uns versos que terminavam assim:
"Cuidado, meninas, que os lobos de bons modos
são os mais perigosos de todos!"
terça-feira, março 04, 2014
Da Galiza vem um vento bom
(Mehdi Dashti)
"Só a noite é o paraíso: dormen os homes.
Os soños abren las xanelas
e lámbense as feridas nas praias e nas beiras
dos ríos.
Os soños cantan coa gorxa xeada.
Como esclavos, fan tocar os tambores."
Manuel Rivas
"Só a noite é o paraíso: dormen os homes.
Os soños abren las xanelas
e lámbense as feridas nas praias e nas beiras
dos ríos.
Os soños cantan coa gorxa xeada.
Como esclavos, fan tocar os tambores."
Manuel Rivas
segunda-feira, março 03, 2014
Como dois peixes sinuosos
(Lord Frederic Leighton, The fisherman and the syren)
Peceras de amor
- Nuestros cuerpos de peces
Se deslizan uno al lado del otro.
Tu piel acuática nada en el sueño
Junto a la mía
Y brillan tus escamas en la luz lunar
Filtrándose por las rendijas.
Seres traslúcidos flotamos
Confinados al agua de nuestros alientos confundidos.
Aletas de piernas y brazos se rozan en la madrugada
En el oxígeno y el calor
Que sube de las blancas algas
Con que nos protegemos del frío.
En algún momento de la corriente
Nos encontramos
Lúcidos peces se acercan a los ojos abiertos
Peces sinuosos reconociéndose las branquias agitadas.
Muerdo el anzuelo de tu boca
Y poco después despierto
Pierdo la aleta dorsal
Las extremidades de sirena.
Gioconda Belli
domingo, março 02, 2014
August: Osage County (Um Verão Quente)
"Where are you going, Ma? There's nowhere to go!"
Personagem interpretada por Julia Roberts no filme August: Osage County
Personagem interpretada por Julia Roberts no filme August: Osage County
Um filme de mulheres.Sobre a família. Sobre os segredos que se tecem, as tensões que poucos deixam transparecer e que explodem como bombas numa guerra de (des)afectos. Fugir? Para onde, se não há para onde?
Meryl Streep despojada de todos os artifícios. No limite da representação da dor.
Julia Roberts, igualmente isenta de sofisticação de imagem mas intensa até à medula!
Não, não está particularmente "cotado" pelos críticos que atribuem "estrelinhas". Sim, comoveu-me!
sábado, março 01, 2014
(Im) perfeições
(João Cutileiro)
Timidamente, mostrou-se-lhe. Assim adornada parecia-lhe ficar melhor. Ele olhou-a, abraçou-a, beijou-a e começou a despi-la.
"-Não gostas do meu corpete?" perguntou-lhe.
"-Gosto! Gosto muito! Mas gosto de te ver nua!" respondeu-lhe.
"-Mesmo imperfeita?" retorquiu ela.
"-Por seres imperfeita!" disse-lhe, sorrindo.
Ai, poetisa. Metade Japonesa, Choctaw-Chickasaw, Negra, Irlandesa, Cheyenne do Sul e Comanche.
Florence Anthony (1947-2010) foi uma poetisa e educadora Americana, vencedora do National Book Award, que mudou legalmente o nome para Ai Ogawa.
Ai, descrevia-se como sendo metade Japonesa, Choctaw-Chickasaw, Negra, Irlandesa, Cheyenne do Sul e Comanche.
Ai significa amor, em Japonês.
Conversation
We smile at each otherand I lean back against the wicker couch.
How does it feel to be dead? I say.
You touch my knees with your blue fingers.
And when you open your mouth,
a ball of yellow light falls to the floor
and burns a hole through it.
Don't tell me, I say. I don't want to hear.
Did you ever, you start,
wear a certain kind of dress
and just by accident,
so inconsequential you barely notice it,
your fingers graze that dress
and you hear the sound of a knife cutting paper,
you see it too
and you realize how that image
is simply the extension of another image,
that your own life
is a chain of words
that one day will snap.
Words, you say, young girls in a circle, holding hands,
and beginning to rise heavenward
in their confirmation dresses,
like white helium balloons,
the wreathes of flowers on their heads spinning,
and above all that,
that's where I'm floating,
and that's what it's like
only ten times clearer,
ten times more horrible.
Could anyone alive survive it?
(Alireza Sadreddini)
Sorrimos um para o outro
e eu inclino-me para trás contra o sofá de vime.
Como é a sensação de estar morto? Pergunto.
Tocas nos meus joelhos com os dedos azuis.
E quando abres a boca,
uma bola de luz amarela cai ao chão
e queima-o, formando um buraco.
Não me contes, digo eu. Não quero ouvir.
Um dia, começas por
usar um certo tipo de vestido
e só por acidente,
tão inconsequente que mal nos apercebemos,
os dedos arranham ovestido
e ouves o som de uma faca de cortar papel,
vê-lo também
e percebes como a imagem
é simplesmente a extensão de uma outra imagem,
que a tua própria vida
é uma cadeia de palavras
que um dia vai explodir.
Palavras, dizes, jovens num círculo, de mãos dadas,
e começando a subir para o céu
nos seus vestidos de comunhão,
como balões de hélio brancos,
as grinaldas de flores girando sobre a cabeça,
e, acima de tudo isso,
que é onde eu estou a flutuar,
e é assim que isto é
apenas dez vezes mais claro,
dez vezes mais horrível.
Poderia alguém, vivo, sobreviver-lhe?
Tradução de Maria Eu
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