sexta-feira, agosto 18, 2017

Narrador omnisciente

(Anna Kowalewicz)

Caía a noite devagar no quintal dos Avelares. A figueira secular estendia os braços fortes em direcção às janelas da sala de estar, como que a querer abri-las de par em par. Lá dentro, a luz difusa de um candeeiro de pé iluminava o cadeirão de couro castanho, onde uma mulher de rosto sardento se aninhava, descalça, embrenhada na leitura de um livro que, a avaliar pela sua expressão, deveria ser extremamente interessante.
Quem não se deixou impressionar pelo entusiasmo da leitora foram as duas crianças loiras que correram sala dentro, tropeçando no tapete persa, obrigando-a a acudir-lhes ao choro pouco convicto, mas que logo lhes serviu de desculpa para a puxarem numa dança de roda.
- Anda brincar, Mariana!
E Mariana rodopiou, dançou, cantou, rebolou no chão com elas em brincadeiras mil. Ouviam-se as gargalhadas cristalinas das três a ecoar pela casa. Só a mão terna do pai das mais pequenas conseguiu levá-las e deixar que o livro fosse retomado. De novo aberto, os olhos ávidos liam as palavras interrompidas. Havia, no entanto, para um observador mais atento, um pormenor estranho… Nunca a leitora mudara de página.
O narrador, felizmente capaz de fazer-se absolutamente invisível e espreitar-lhe por cima do ombro, aproximou-se, pé ante pé, e pôde enfim ver a prosa que tanto a encantava. Dentro do livro, o respeitável “Ensaios e artigos” de Agustina, numa folha de papel amarelo, um poema escrito à mão, a esferográfica de tinta azul, com letra elegante, marcadamente masculina, levemente inclinada para a direita. No fundo da folha, um nome, local e data. Os dedos de Mariana acariciavam os caracteres da assinatura e os olhos mantinham a avidez do primeiro minuto em que a vira no sofá da sala.


sábado, agosto 12, 2017

13 para o almoço

(Henri Matisse)

Da cozinha, evolava-se um aroma a carne assada com alecrim, à mistura com o da torta de cenoura acabada de desenformar. A voz alegre de Vó Nita cantarolava:

"Menina estás à janela
com o teu cabelo à lua
não me vou daqui embora
sem levar uma prenda tua

Sem levar uma prenda tua
sem levar uma prenda dela
com o teu cabelo à lua
menina estás à janela

(...)"

Faltava pouco para a hora de almoço e, na mesa da cozinha grande, já luzia a toalha de bordado azul e vermelho à Vianesa, com os pratos do serviço de festa, os talheres de alpaca e os copos a brilharem de tão limpos. Seriam 13. Alguns diriam que 13 não seria número de comensais a sentar a uma mesa, mas Vó Nita nunca se deixara levar por superstições. Nascera-lhe mais uma bisneta em Abril. Logo em Abril, o seu mês! Havia de ser levada, essa menina, pela certa. Touro! Apaixonada, com sangue quente, teimosa e lutadora. Como ela! Sorriu, enquanto ajeitava a cadeirinha no topo da mesa. Qual azar, qual quê, se o número 13 era a sua Mariana.



segunda-feira, agosto 07, 2017

Viagem de comboio

(Fanny Nushka, in Saatchiart)

O anúncio sonoro da chegada do comboio despertou-a do torpor ensonado da espera de mais de vinte minutos. Um frenesim apoderou-se dos passageiros em espera. O ruído das malas a rodar fazia lembrar metralhadoras. Carruagem 5, lugar 83, janela. Acomoda-se rapidamente, puxa a mesa do suporte, retira o livro da bolsa e, antes que o consiga abrir, um rapaz nos seus dezoito, barba crescida, cabelo rebelde, óculos de massa e vestuário "certinho", atira-se, literalmente, para o seu lado, enquanto acomoda um saco de dimensões consideráveis por baixo do banco da frente. Os esforços para encaixar o volumoso objecto são acompanhados de uma espécie de resfolegar e gestos largos. Tão largos que a obrigam a encolher-se de encontro à janela qual mosca indesejada. Apaziguado, o rapaz saca de um embrulho gorduroso e faz aparecer um hambúrguer que seria devorado enquanto o diabo esfregava um olho. Inclina-se para o saco que ainda há pouco se esforçara para acomodar espetando-lhe o cotovelo esquerdo repetidamente na cintura. Não conseguira colar-se à janela devidamente, pelos vistos. De nada valeram os olhares mortíferos ou os suspiros profundos e desaprovadores. O jovem mergulhara no telemóvel e os phones tornavam-no surdo. Mais de duas horas depois e, seguramente, umas nódoas negras por baixo da blusa branca de tanta agitação cotovelar, o pequeno selvagem levantou-se de um salto ao anúncio da próxima estação e puxou o saco com tanta violência que o fez estatelar-se no corredor. Mesmo dorida das cotoveladas, Clara desatou às gargalhadas. Afinal, não seria a única a levar umas mazelas da viagem.

quarta-feira, agosto 02, 2017

#parecesasvelhotas

(fotografia de  Ari Seth Cohen, do Advanced Style)

Sais com as filhas das tuas amigas (que tu só tens um rapaz e dele só ouves que #parecesasvelhotas) e, de repente, elas estão a experimentar as socas que tu usavas aos quinze, com aquela plataforma de dez centímetros, de vestidos compridos "flower power" e bolsas à tiracolo com franjas. Na verdade, se fores ao baú onde guardas os álbuns podes mostrar-lhes aquela foto na praia, num grupo de raparigas muito sorridente, tal e qual elas. Folheando o mesmo álbum, há aquela, em biquini reduzido, com laços de lado (oh, pá, que não tinha barriga nem nada), pirosa que só visto, em cima de uma rocha, ao pôr do sol, em pose cinéfila para o fotógrafo, um rapazinho moreno que te lera poemas nesse Verão. 
É então que perguntas à menina da loja se tem o teu número das socas, em castanho, e as raparigas se riem e acham que és uma cota muito à frente. Tu, que lhes fazes companhia, de jeans bordadas, túnica em crochet e sapatilhas! Cota! Pois... #parecesasvelhotas, não adianta!

E não, não lhes disse que li Eça aos treze anos porque isso ia ser fatal! Embora, intercalados, tivessem estado Hergé e Hugo Pratt.

*Versão muito light de uma corrente de posts iniciada pela Susana ,continuada pelo Pipoco, pelo Xilre e pela Linda Blue.