quarta-feira, julho 31, 2019

Pensamentos de Verão III


Julgo que, às vezes, são as lancheiras que comem o que guardam, tal é a velocidade a que tudo desaparece.



(Cymande - Dove)

segunda-feira, julho 29, 2019

sábado, julho 27, 2019

Pensamentos de Verão I

(Salvador Dali)

Quanto tempo se vive sem ter o mar nos olhos?


(Sodade - Cesária Évora e Bonga)

segunda-feira, julho 22, 2019

Joana

(foto de Pinterest, guardada por Carmelo C.S.V.)

Viam-se muito de quando em vez. Sabiam-se amigas e isso bastava para que se alegrassem a cada encontro. Ambas carregavam um tempo de vida que justificava o disfarce dos cabelos brancos com tons de cobre e o uso de saltos menos altos.
Abraçaram-se estreitamente e Laura percebeu que Joana tinha um brilho que lhe não via há anos. Disse-lho e recebeu um sorriso rasgado. Joana, a mulher alegre, de convicções fortes, tinha encontrado, sem aviso prévio, o amor. 
Falou-lhe do espanto, do coração disparado, das mãos trémulas. Contou-lhe que achara um disparate, aquela coisa de se apaixonar a caminhar para os sessenta, mas que era tudo igual ao que sentira quando jovem. O sangue que se não aquietava, o pensamento sempre preso aos momentos de encontro, o sorriso tonto quando se perdia nas lembranças daquelas mãos apertando as suas. Confessou, ainda, que não seria um daqueles amores "para sempre", mas que era tão bom, mas tão bom, que não importava se durasse meses ou anos.
Quando se separaram, Laura seguiu Joana com o olhar até que desaparecesse na porta do corredor onde se encontrava. Como eram leves, os seus passos!


(Chavela Vargas - Adoro)

sábado, julho 13, 2019

Cabeleireiro Mimar – Beleza e Elegância


(Betty Pieper)


Nem sabia porque entrara ali há uns bons vinte anos. Era Agosto, o calor insuportável da cidade, cada vez mais de betão, instalara-se de armas e bagagens e quase não saía de casa, a não ser para uma incursão rápida ao supermercado ou à frutaria Leal. Foi junto à frutaria, Leal do nome herdado do Sr. João, homem de rubicunda barriga e bigode farfalhudo, que reparou pela primeira vez no modesto letreiro a preto e branco. Lia-se, ao lado do desenho de uma tesoura de considerável dimensão: Cabeleireiro Mimar – Beleza e Elegância.
O cabelo estava mesmo precisado de cuidados, farto de sol e água salgada. Olha, nem é tarde nem é cedo, vou-me às mãos de Mimar!
Fui recebida por um alegre bom dia de uma senhora pequenina, olhar vivíssimo e sorriso rasgado.
A Sr.ª deseja alguma coisa?
Bom dia! Lavar e secar, pode ser?
Claro que sim! Faça o favor de entrar! Sente-se!
E foi nas mãos seguras e suaves da Dona Clotilde que me entreguei sem medos. Da amena mas curta conversa, fiquei ciente da pouca afluência àquele espaço.
É humilde, sabe? E como sou um bocadinho velhota, acho que as senhoras e as meninas não se sentem tentadas a entrar...
Não me pareceu assim. Um pouco antiquado, de facto, o salão, mas espaçoso e com muita luz a entrar pela ampla janela. Sofás azuis (pronto, não muito bonitos) e armários brancos onde pontu(av)am uns malmequeres de onde em onde, muito anos sessenta. Mas as mãos! Ah, as mãos da Dona Clotilde eram de fada! Lavou-lhe o cabelo com três porções de champô, amaciador a deixar um perfume maravilhoso, e secou-lho com escova de pêlo de javali nuns escassos 20 minutos. Melhor do que isso, ainda, sem conversas sobre o jet set das revistas cor de rosa, ou acerca das clientes mais ou menos satisfeitas. Só o amplo sorriso e o secador a aflorar o cabelo que ia enrolando na escova. Ao perguntar o preço, nem dava para acreditar!
Pois que é assim, minha Sr.ª! Nem pense em dar mais! É o que eu levo. Pode ser que fique minha cliente!
Já passaram muitos anos. A Dona Clotilde já dobrou os setenta há sete anos e continua ali, firme, a enrolar cabelos numa escova de pêlo de javali.
Então, ainda consegue estar tanto tempo de pé? Tem que pensar em descansar!
Eu? Nem pensar! Isso é para as velhotas do lar onde vou fazer voluntariado!
E ri-se à gargalhada, comigo a acompanhá-la.

* inspirada nos posts da Mãe Preocupada e do Pipoco Mais Salgado



terça-feira, julho 09, 2019

Grito

(Rodrigo Guimarães)

Eram ásperas, as palavras. Sabia que feriam como facas, mas nada mais importava que a expressão da nuvem negra que lhe ensombrava o peito. Adiara-as por tanto tempo que chegara a duvidar ser capaz de, alguma vez, voltar a falar. Era-o! 


(Big Will & The Bluesmen - Hard Times)

quarta-feira, julho 03, 2019

Fuga adiada

(David Bromley)

Saiu pela porta da cozinha, depois de encher uma saca de pano com maçãs e pão de milho. Na mão, umas poucas moedas.
Encontraram-se junto ao poço do campo da quinta abandonada como costumavam fazer sempre que podiam.
Deram-se as mãos e ele disse: Sempre fugimos?
Fugimos!- respondeu.
Caminharam até à casa grande e cinzenta onde ninguém vivia há longos anos. Um restolhar de folhas secas atingiu-os. Entreolharam-se, assustados, e correram, voltando para trás.

Tinham sete anos. Podiam fugir mais tarde.



(Fly me to the moon - Diana Panton)