quarta-feira, maio 05, 2021

Retorno

 


Ondina vivera já muitos anos. Passava dos noventa, agora. Tinha sido jovem aprendiz de costura na mestra da aldeia, cortando, cosendo e bordando o enxoval. Ainda nos verdes vinte, João, rapaz garboso e bom de palavra, tratou de conquistá-la e levá-la ao altar.  Logo se afadigou na lide da casa, em dar à luz duas filhas (que difíceis foram os partos, naquela casa apertada) e em educá-las nos preceitos antigos.

A vida correra sem grandes sobressaltos, mas também sem a alegria que imaginara enquanto bordava os lençóis de linho. João trabalhava de manhã à noite e, ainda que o garbo estivesse lá, as palavras foram morrendo aos poucos.

Recordava-o num misto de ternura e de raiva. Amara-o, é certo, mas mantivera escondida a revolta de se ter diminuído mais de sessenta anos, de nunca ter tido a coragem de ripostar quando lhe pedia palavras ternas e ele se ria dela.

Agora, no caminho da cama para a cadeira de rodas, deixava-se levar, enquanto jurava que, doravante, teria 20 anos e regressaria à costura.


 
              (Ólafur Arnalds - So Far)