sexta-feira, novembro 25, 2016

O estranho caso de Tagik, o berbere contador de histórias - A rainha Aliyyah


(Tamara Natalie Madden)



Havia tanto tempo que Jabalamar, o escudeiro do rei, se não via longe do seu amo que dera em perseguir a rainha. Convencera-se que aquele diplomata não passava de um charlatão que, como outros antes dele, ficara ofuscado pela beleza negra e radiosa de Aliyyah, encontrando um subterfúgio para afastar o rei. Enviara, por isso, um pássaro azul de entre aqueles que costumavam esvoaçar pelo palácio e vinham comer à sua mão, com o intuito de o encontrar, guiando-o de volta à ilha.

Enquanto isso, a rainha Aliyyah ouvia as estórias do diplomata, de olhar desperto e coração inquieto pelo seu rei que tanto se demorava. 

- E como haveis ficado tão sabedor das coisas desses mundos distantes, Senhor?

Com um sorriso misterioso, qual prestidigitador, o estrangeiro retirou da túnica um livro com capa de couro velho e título gravado a ouro

- Eis um dos mais belos registos dessas coisas, Alteza!

- “O homem das quatro vidas”, leu a rainha.

E, como um grão de areia do deserto do Sahara soprado pela mais forte das tempestades, Aliyyah viu-se transportada para uma biblioteca onde as estantes ligavam o chão a um tecto tão alto que tocava o céu





O estranho caso de Tagik, o berbere contador de histórias

quinta-feira, novembro 24, 2016

Lenda

O amor é o amor
O amor é o amor - e depois?!
Vamos ficar os dois
a imaginar, a imaginar?..

O meu peito contra o teu peito,
cortando o mar, cortando o ar.
Num leito
há todo o espaço para amar!

Na nossa carne estamos
sem destino, sem medo, sem pudor,
e trocamos - somos um? somos dois? -
espírito e calor!
O amor é o amor - e depois?!

Alexandre O´Neill




(Marc Chagall)


Chamaram-lhe Celeste por ter vindo ao mundo sob um céu estrelado de Outono. Ninguém soubera como fora possível sobreviverem, mãe e filha, naquele descampado, desamparadas de conforto e de calor humano.
Cresceu arredia, sempre de sapatos na mão, calcorreando os campos, trepando às árvores, enfeitando-se de grinaldas de malmequeres amarelos.
Um dia, chegou à aldeia um homem-estátua. Olhar brilhante, poucas falas, como convém a um imitador de estátuas que se preze, e uma mala pequena que dizia ser portadora de todos os seus bens. Tinha a particularidade de caminhar com os pés nus. Os sapatos, reluzentes de tão bem engraxados, atava-os pelos cordões à pega da mala.
O homem-estátua e Celeste encontraram-se junto ao rio, quando ele mergulhava os pés, cansados da posição estática que mantivera horas a fio, e ela colhia os malmequeres mais bonitos. Anoitecia, era Outono, e o céu enchia-se de estrelas amarelas como as flores que coloriam os cabelos de Celeste, brilhantes como o olhar do homem-estátua.
Diz quem por ali passava que deram as mãos e voaram.



terça-feira, novembro 22, 2016

Estio


O estio que finalmente chegara não impedia a nespereira de se enfeitar de flores. Há muito que a árvore crescia, generosa em frutos amarelos agridoces, a ombrear-lhe a janela do quarto. Nela moravam pardais, cantavam melros e arrulhava o casal de rolas que lhe embalava as sestas preguiçosas das férias de Verão. Encostada ao tronco robusto, já com cicatrizes de podas e uma ou outra riscadas pela Maria Inês e pelo José, estas em forma de coração trespassado por uma seta ou da palavra "amo-te" ladeada pelos nomes de ambos, encontrava-se a escada de madeira. Pobre dela, abandonada ao frio e ao calor, agora sem outro préstimo que o de lhe recordar o tempo em que o pai a subia para colher as nêspera mais bonitas para a sua menina.


sábado, novembro 19, 2016

Inquieto coração

(imagem daqui)


Era de noite e não chovia. Não havia nuvens a perturbar o brilho da lua nem sequer uma brisa a despentear as árvores. Tudo estava quieto e belo. Porque seria, então, que a Clara se inquietava o coração?


domingo, novembro 13, 2016

Ervilhas


Andrea Kowch

- Ontem vi-o!
As duas mulheres estavam sentadas na cozinha, cada uma debruçada sobre o seu alguidar de barro, as mãos nervosas a esventrar vagens de onde caíam pérolas verdes, engrossando o contraste no fundo laranja.
- Viu quem, Joana? Credo! O seu falecido?
O rosto de Joana abriu-se num sorriso rasgado.
- Abrenúncio, menina! Qual falecido? Jasus, minha Nossa Senhora de Fátima, o que lhe passou na cabeça!
Após uma leve hesitação, sem nunca parar a tarefa de fazer crescer o monte de ervilhas, acrescentou:
- Eu vi foi o outro, menina!
- Ai! Oh, mulher, explique-se que eu já não percebo nada!
Baixando a voz, os olhos a brilhar, a revelação:
- O meu amor tardio. Sim, menina, que eu não morri nem fui enterrada com o Joaquim!
E, sem parecer ralar-se com o ar estupefacto da outra, alheou-se do verde das vagens, gordas de prenhas, perdida na lembrança do ontem.


quarta-feira, novembro 02, 2016

Refrega

(Carolee Schneemann)

Veio a saudade e mordeu-a. Mastim bicéfalo de presas aguçadas, abriu-lhe o peito, o ventre. Tentou conter o sangue e as vísceras com as mãos, apertando os rasgos profundos, enquanto pontapeava violentamente o monstro. Rangia os dentes na dor furiosa da luta, arquejando e cuspindo palavras incoerentes. Veio-lhe à memória o ritual voodoo de um filme antigo, marioneta empurrada a vontade alheia, cúmplice de um modelo seu distante. Ficou no chão, na refrega da luta, ferida, despida de defesas, na inércia dolorosa que antecede a rendição.