sexta-feira, janeiro 31, 2014

Falta

 (Lena Kramaric)
 



Virilha contra virilha
reconstruo o meu corpo
colado ao teu. Choro.
Não estás a meu lado.
Virilha contra nádega
asas de salvação efémera
reconstruo o teu corpo
junto ao meu. Choro.
Sem os meus braços
envolvendo-te a cintura,
sem as tuas pernas no meu pescoço,
sem a tua mão moldando-se
ao meu ventre
choro: não estás a meu lado.
Sem a tua boca
no meu peito, a tua língua
no meu sexo, os teus seios
soltos, desenfreados
choro: não estás a meu lado.
Sem as tuas fendas
e lagos sou um pobre animal
desamparado, e choro
sobre o teu ninho nos lençóis
em que não posso derramar
o olhar, o sémen, as palavras
de quando estás a meu lado. 


Casimiro de Brito


E há no meu corpo a saudade do teu, virilha contra virilha, da tua mão moldando-se ao meu peito, do derramar das palavras e do sémen de quando estás ao meu lado.


quinta-feira, janeiro 30, 2014

De espíritos desencarnados que estabelecem relações psychicas ou De como me apeteceu "postar" uma coisa mesmo estranha!



 (Andrew Brodhead)

"Um incidente estranho produziu-se no gabinete da doutora Anna Luckens, na tarde do domingo ultimo. Conversava-se a respeito do nosso querido amigo, o prof. Cope, morto quatro semanas antes da nossa volta de uma excursão de tres meses atravez do Mexico, na California e dos Estados do Noredeste.
Em certo momento, fiz allusão ao interesse que o defunto havia mostrado pelas pesquizas psychicas, notando a importancia que teria o facto de se obter algum sinal manifesto de sua sobrevivencia, ou de saberem as suas impressões sobre a existencia espiritual que elle tinha, havia pouco, ingressado.
Mal acabara de exprimir esse desejo, a grande caixa de musica da doutora começou espontaneamente a tocar e assim continuou durante mais de cinco minutos, com grande espanto nosso."

"Um curioso incidente que creio ter omittido em minha carta precedente, produziu-se cerca de um quarto de hora antes que a caixa de musica tivesse cessado de tocar.
Dirigi uma pergunta mental ao defunto professor Cope, concebida quasi assim: - Eduardo, foi V. quem fez tocar a caixa? - Immediatamente, tres pancadas foram dadas ao meu lado, no assoalho (...)."

"(...) graças à analogia com os phenomenos telephaticos, nos quaes uma pessoa, pelo facto de pensar intensamente noutra, se põe immediatamente em relação psychica com essa outra (...) não é preciso supor que o espirito do morto se encontrasse no lugar, mas o pensamento dos assistentes, dirigido com intensidade e affeição para o amigo desaparecido, houvesse estabelecido a relação psychica entre elles; o espirito desencarnado teria, então, intervindo para fornecer aos amigos que delle se lembravam a tão desejada prova da sua presença."

Extractos do livro Phenomenos Psychicos no Momento da Morte, de Ernesto Bozzano, traduzido por Carlos Imbassahy, conforme os direitos concedidos pelo autor à Federação Espírita Brasileira. Edição de 1927.


terça-feira, janeiro 28, 2014

Menino

O que faria o Menino se não fosse Jesus?
 
(Menino Jesus saltando ao eixo com São João Baptista - imagem que ornamenta uma livraria em Sevilha)




E, ao lado do Menino, o livro de Julia Navarro, Dispara, yo ya estoy muerto, que começa assim: 

Jerusalén, época actual.

«Hay momentos en la vida en los que la única manera de salvarse a uno mismo es muriendo o matando.» Aquella frase de Mohamed Ziad la había atormentado desde el mismo instante en que la había escuchado de labios de su hijo Wädi Ziad. No podía dejar de pensar en aquellas palabras mientras conducía bajo un sol implacable que doraba las piedras del camino. El mismo color dorado de las casas que se apiñaban en la nueva ciudad de Jerusalén construidas con esas piedras engañosamente suaves, pero duras como las rocas de las canteras de donde habían sido arrancadas.

segunda-feira, janeiro 27, 2014

Pergunta

"estamos quase no tempo do vinho maduro
soube-o pelo aroma que se desprende de teu sexo
intenso mel transportado pela fulvas abelhas
oferenda de verão árduo...cal secreta
onde garatujámos corações a canivete

noite dentro
embriago-me com vinho macio...sentado na desolação
duma esplanada mal iluminada debaixo dos pinheiros
o orvalho humedece o caderno em cima da mesa o lápis
a caneta um refrigerante intragável...tua ausência
pressentida na fresca seda dos caracóis

e mais além um valado de soturnas açucenas
uma árvore seca pássaros e canaviais...caminho
por onde nunca me aventurei."


Al Berto, O Medo 

 (Eduardo Naranjo)


Doce é o sabor do vinho que bebemos contidamente.
Como seria se nos tivessemos embriagado?



domingo, janeiro 26, 2014

Whiskey? Straight, please!

Looking for the next whiskey bar, somewhere in Alabama. 
Shall we choose Ute Lemper's...

 

... or shall we go for Jim Morrison's? 

sábado, janeiro 25, 2014

Amor, sinónimo de entrega

Define amor. Amor é sinónimo de entrega. 
 
 (Anyes Galleani)

"E só então (...) nos entregávamos, deliciados, ao amor exigente, inesgotável de Diana, coberta de bálsamos mas pedindo para ser usada, usa-me, dizia, quero ser usada por ti; teria eu o sentido apurado dos limites para não passar do uso ao abuso? Ela impedia-me de o saber. Nunca conhecera mulher mais exigente mas também com mais completa entrega, recoberta de unguentos etéreos, perfumados, saborosos, sem os quais, Diana, eu já não saberia viver. O amor é não fazer outra coisa. O amor é esquecer esposos, pais, filhos, amigos, inimigos. O amor é eliminar todos os cálculos, todas as preocupações, toda a avaliação dos prós e dos contras. (...) 
Fodia incessantemente. 
- Um dia - ria-se de bom humor - estarei em estado de subjectividade total. Isto é, morta. Ama-me agora. 
- Ou entretanto..." 

Carlos Fuentes, in Diana ou a Caçadora Solitária



sexta-feira, janeiro 24, 2014

Marcas de um país não tão distante

Faça-se silêncio para os homens, as mulheres e os meninos de Trás-os-Montes dos anos oitenta! Anos duros. Hoje, poucos meninos há e, mesmo homens e mulheres, debandaram dos lugares mais inóspitos, fugindo de um destino de pobreza. Faça-se,ainda, silêncio, para ouvir os Galandum Galundaina a cantar em Mirandês, a segunda língua oficial em Portugal!





(Serra do Barroso, Trás-os-Montes, início dos anos oitenta. Fotos © Georges Dussaud)

Vou falar-lhes dum Reino Maravilhoso. Embora muitas pessoas digam que não, sempre houve e haverá reinos maravilhosos neste mundo. O que é preciso, para os ver, é que os olhos não percam a virgindade original diante da realidade, e o coração, depois, não hesite. (...)Um mundo! Um nunca acabar de terra grossa, fragosa, bravia, que tanto se levanta a pino num ímpeto de subir ao céu, como se afunda nuns abismos de angústia, não se sabe por que telúrica contrição.(...) Bata-se a uma porta, rica ou pobre, e sempre a mesma voz confiada nos responde: - Entre quem é! Sem ninguém perguntar mais nada, sem ninguém vir à janela espreitar, escancara-se a intimidade duma família inteira. O que é preciso agora é merecer a magnificência da dádiva.(...) Dentro ou fora do seu dólmen (maneira que eu tenho de chamar aos buracos onde vive a maioria) estes homens não têm medo senão da pequenez. Medo de ficarem aquém do estalão por onde, desde que o mundo é mundo, se mede à hora da morte o tamanho de uma criatura. Acossados pela necessidade e pelo amor da aventura emigram. Metem toda a quimera numa saca de retalhos, e lá vão eles. Os que ficam, cavam a vida inteira. E, quando se cansam, deitam-se no caixão com a serenidade de quem chega honradamente ao fim dum longo e trabalhoso dia. O nome de Trasmontano, que quer dizer filho de Trás-os-Montes, pois assim se chama o Reino Maravilhoso de que vos falei. 

Miguel Torga, in Um Reino Maravilhoso (Trás-os-Montes)


 

quinta-feira, janeiro 23, 2014

Do prazer entre portas



 (Pablo Picasso: Nude, Green Leaves and Bust)

Su piel sin poros
 
Echo de menos el sexo.
Todos sus aspectos.
Todos mis respetos.
La perversión es la comprensión.
Meter la cara en la vagina
con la boca llena de aspirina
y un dedo desconocido
en el culo.
Y diez minutos después
sentarte en un taxi como si nada,
las piernas cruzadas, las manos en el regazo. Y sin embargo el prefecto candado
de nuestros cuellos, y su lengua
en mi nuca y el constante
calor de su piel sin poros
jamás podrán revivir.


Carlos Fuentes




 

Nota: Pois... Hoje é (mais) para adultos...

Jogamos?

(© Svetlana Bekyarova)

Levou-lhe malmequeres brancos. Sabia que gostava do jogo... Mal me quer, bem me quer, mal me quer, bem me quer. Faziam-no juntos e riam-se da disparidade do resultado, a cada flor.

quarta-feira, janeiro 22, 2014

Manhã

(Henri Cartier-Bresson) 
Veio pela manhã, a neblina ainda beijava o rio e a luz atravessava-a, aparecendo difusa aos olhos menos atentos. Abraçaram-se em silêncio, pele com pele, coração com coração. Aproveitaram a neblina e esconderam-se de todos os olhos, mesmo dos mais atentos.

terça-feira, janeiro 21, 2014

(Des)equilíbrio

She wore the dress though naked
The flowing water of her thougths
The stream, the river, the sea
Can you feel the wind blowing?
Is there a change of tide?
No birds, no birds, no flight
Hanging by a thread...

(Elena & Vitaliy Vasilievy)

Usou o vestido, mesmo estando nua
O fluir aquoso dos seus pensamentos
O ribeiro, o rio, o mar
Sentes o vento a soprar?
Haverá uma mudança de maré?
Não há pássaros, não há pássaros, não há voo
Suspensa por um fio... 

(Maria, Eu)

 

segunda-feira, janeiro 20, 2014

Da beleza

(Chris Loewert)

“You lethargic, waiting upon me,
waiting for the fire and I
attendant upon you, shaken by your beauty

Shaken by your beauty
Shaken.” 



William Carlos Williams, in Peterson


"Tu, à minha espera, letárgica
à espera do fogo e eu
dependente ti, assombrado pela tua beleza

Assombrado pela tua  beleza
Assombrado."

(William Carlos Williams, in Peterson - Tradução, Maria, Eu)


domingo, janeiro 19, 2014

O amor tudo cumpre


"Nas paredes ao redor do templo, tanto na parte interna como na externa, ele esculpiu querubins, tamareiras e flores abertas."

(Versículo 29, 1 Reis 6 do livro 1 Reis da Bíblia)


(Querubins - Giuseppe Sanmartino)


O amor tudo cumpre, o amor não vê limites. Não há anjo, nem árvore, fruto ou flor que não ofereça, numa profusão de beleza diáfana, em arroubos de entrega total.


Voo

(Lourdes Castro)

Ambos costumavam passear naquela avenida sempre que o sol espreitava por entre os edifícios escurecidos pelo tempo. Saíam de casa, olhando a sombra projectada no chão, sorrindo para aquela companhia que a luz permitia dar-lhes. Sonhavam poder voar, olhar a cidade de cima para baixo. 
Quando as suas sombras se encontraram, aconteceu! Deixaram-nas a falar uma com a outra e levantaram voo!


sábado, janeiro 18, 2014

30 anos sem Ary

Ary dos Santos (1905-1957)
30 anos sem Ary. Uma eternidade com as suas palavras.
 
 (de Nezart Design)


Caminharemos de Olhos Deslumbrados  

Caminharemos de olhos deslumbrados
E braços estendidos
E nos lábios incertos levaremos
O gosto a sol e a sangue dos sentidos.

Onde estivermos, há-de estar o vento
Cortado de perfumes e gemidos.
Onde vivermos, há-de ser o templo
Dos nossos jovens dentes devorando
Os frutos proibidos.

No ritual do verão descobriremos
O segredo dos deuses interditos
E marcados na testa exaltaremos
Estátuas de heróis castrados e malditos.

Ó deus do sangue! deus de misericórdia!
Ó deus das virgens loucas
Dos amantes com cio,
Impõe-nos sobre o ventre as tuas mãos de rosas,
Unge os nossos cabelos com o teu desvario!

Desce-nos sobre o corpo como um falus irado,
Fustiga-nos os membros como um látego doido,
Numa chuva de fogo torna-nos sagrados,
Imola-nos os sexos a um arcanjo loiro.

Persegue-nos, estonteia-nos, degola-nos, castiga-nos,
Arranca-nos os olhos, violenta-nos as bocas,
Atapeta de flores a estrada que seguimos
E carrega de aromas a brisa que nos toca.

Nus e ensanguentados dançaremos a glória
Dos nossos esponsais eternos com o estio
E coroados de apupos teremos a vitória
De nos rirmos do mundo num leito vazio.


Ary dos Santos, in 'Liturgia do Sangue'



* Publicado depois de ver a homenagem n' O Puma.

O perfume de Deus

Eros

The flowerlike          
animal perfume               
in the god’s curly           
hair —                            

don’t assume                    
that like a flower             
his attributes                   
are there to tempt            

you or                            
direct the moth’s          
hunger —                      
simply he is                  
the temple of himself,   

hair and hide                 
a sacrifice of blood and flowers
on his altar                     

if any worshipper         
kneel or not.                  


sexta-feira, janeiro 17, 2014

Arte


(Luca Lupi)

Estranharam-lhe a forma, a orientação, a nudez agressiva dos ramos.
Cresceu assim, feito arte.


quinta-feira, janeiro 16, 2014

De uma vida e da aproximação da morte, sem ilusões

 (Czeslaw Milosz drawn by David Levine)

 

An Honest Description of Myself with a Glass of Whiskey at An Airport, Let Us Say, in Minneapolis



My ears catch less and less of conversations, and my eyes have weakened, though they are still insatiable.
I see their legs in miniskirts, slacks, wavy fabrics.
Peep at each one separately, at their buttocks and thighs, lulled by the imaginings of porn.
Old lecher, it’s time for you to the grave, not to the games and amusements of youth.
But I do what I have always done: compose scenes of this earth under orders from the erotic imagination.
It’s not that I desire these creatures precisely; I desire everything, and they are like a sign of ecstatic union.
 
It’s not my fault that we are made so, half from disinterested contemplation, half from appetite. 

If I should accede one day to Heaven, it must be there as it is here, except that I will be rid of my dull senses and my heavy bones.
Changed into pure seeing, I will absorb, as before, the proportions of human bodies, the color of irises, a Paris street in June at dawn, all of it incomprehensible, incomprehensible the multitude of visible things.
 
(Translated from the Polish by Robert Hass and Czeslaw Milosz)
 
 
 
Uma Descrição Honesta de Mim Próprio com um Copo de Whyskey num Aeroporto, digamos, em Minneapolis

Os meus ouvidos cada vez ouvem pior as conversas, e os meus olhos, apesar de insaciáveis, estão enfraquecidos.
Vejo as pernas delas em mini-saias, calças e tecidos esvoaçantes.
Observo-as uma a uma, os traseiros e as coxas, embalado por visões pornográficas.
Velho depravado, está na hora de ires para a cova, não de te dedicares a jogos e diversões juvenis.
Mas eu faço o que sempre fiz: construo  cenas deste mundo comandado pela imaginação erótica.
Não que eu deseje estas criaturas em particular; eu desejo tudo, e elas são como um sinal de união delirante.

Não tenho culpa que sejamos feitos assim, metade contemplação desinteressada, metade desejo.



Se algum dia ascender ao Céu, lá deve ser tal como aqui, à excepção de me ter libertado do tédio dos meus sentidos e do peso dos meus ossos.
Tornado puro o olhar, entenderei, de novo, as proporções do corpo humano, a cor da íris, numa rua de Paris em Junho amanhecendo, tudo incompreensível, incompreensível, a multiplicidade de coisas visíveis.



(Tradução do Inglês por Maria, Eu)

Nota: Czeslaw Milosz (1911-2004), foi um escritor, ensaísta e poeta Polaco, tendo lutado ao lado da resistência, em Varsóvia, durante a ocupação nazi, na Segunda Guerra Mundial. Abandona o país em 1951, desiludido com a governação comunista, vive em Paris e, mais tarde, nos Estados Unidos, onde morre. Prémio Nobel da Literatura em 1980.


quarta-feira, janeiro 15, 2014

Intangível

INTANGÍVEL
in·tan·gí·vel (in- + tangível) adjectivo de dois géneros 
Em que não se pode tocar. = IMPALPÁVEL, INTOCÁVEL 
(in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa)



                                  (Antonio Palmerini)


Intangível  

Quero-te como quero à abóbada nocturna,
Ó vazo de tristeza, ó grande taciturna!
E tanto mais te quero, ó minha bem amada,
Por te ver a fugir, mostrando-te empenhada
Em fazer aumentar, irónica, a distância

Que me separa a mim da celestial estância.
Bem a quero atingir, a abóbada estrelada,
Mas, se a julgo alcançar, vejo-a mais afastada!
Pois se eu adoro até - ferro monstro, acredita! -
O teu frio desdém, que te faz mais bonita!


Charles Baudelaire, in "As Flores do Mal"
Tradução de Delfim Guimarães


terça-feira, janeiro 14, 2014

The man I love

( Richard Zimler  e Alexandre Quintanilha - © Fotografia Nelson Garrido)

Amor
Amor, não te escondas
Olha-me nos olhos
Vê o brilho dos meus
Não temas nada
O amor nada pode temer 

Maria, Eu

(Inspirado no post do blog Ainda que os Amantes se percam)


Vem ver-me enquanto é hora

Visita-me Enquanto não Envelheço 

visita-me enquanto não envelheço
toma estas palavras cheias de medo e surpreende-me
com teu rosto de Modigliani suicidado

tenho uma varanda ampla cheia de malvas
e o marulhar das noites povoadas de peixes voadores

ver-me antes que a bruma contamine os alicerces
as pedras nacaradas deste vulcão a lava do desejo
subindo à boca sulfurosa dos espelhos

antes que desperte em mim o grito
dalguma terna Jeanne Hébuterne (*) a paixão
derrama-se quando tua ausência se prende às veias
prontas a esvaziarem-se do rubro ouro

perco-te no sono das marítimas paisagens
estas feridas de barro e quartzo
os olhos escancarados para a infindável água

com teu sabor de açúcar queimado em redor da noite
sonhar perto do coração que não sabe como tocar-te


Al Berto, in 'Salsugem'


.
 





















* Jeanne Hébuterne (1989-1920), pintora de pouco relevo mas de estranha beleza, companheira de  Amedeo Modigliani, por ele pintada até à exaustão. História marcante, não apenas por ter sido companheira do pintor, por quem se apaixonou aos 18 anos, mas pelo seu gesto de desgosto pela morte deste, de tuberculose, quando, aos 21 anos e grávida de nove meses (já tinham uma filha com um ano), se atira da janela de um 5º andar. 
 Rejeitada em vida pelos pais, continua a sê-lo em morte e é enterrada às escondidas, envergonhadamente, nos arredores, enquanto Amedeo recebia honras de grande artista e era sepultado no maior e mais famoso cemitério de Paris, o Pèrre-Lachaise. Só nove anos depois, o irmão convenceu os pais a trasladar o corpo de Jeanne e o do feto para junto daquele por quem se matara.

É a este arroubo de paixão suicidário que Al Berto se refere no poema. 
De que vale aguardar a visita se, a acontecer, poderá ser tarde de mais?

segunda-feira, janeiro 13, 2014

Do olhar amoroso

No olhar dos amantes há a limpidez de uma manhã de Verão. Um reflecte-se nos olhos do outro, replicando o amor até ao infinito.






















Cristina Coral Photography

O paraíso terrestre é uma flor verde.
As árvores abrem-se ao meio.
O que é sucessivo perde-se.
Se o tempo modifica os seres e os objectos
eu sinto a diferença e gasto-me.
O sol é um erro de gramática, a luz da madrugada
uma folha branca à transparência da lâmpada.
Soam então os barulhos. Soam
de dentro das caixas fechadas há mais tempo,
de dentro das chávenas de café.
É tarde e és tu.
acima de tudo,
entre a manhã e as árvores,
à luz dos olhos,
à luz só do límpido olhar.   

Nuno Júdice, in "Poesia Reunida 1967-2000", O Mecanismo Romântico da Fragmentação






Conselho

(Ahmet Murat Karayilan) 

Mata o ciúme antes que ele te mate a ti.

domingo, janeiro 12, 2014

Antes cicuta

 (James Harvey)
 
Mata-me agora, sim, agora
Dá-me a beber cicuta
Não me deixes morrer devagar


Sobre as mães e o Peter Pan


 (Pablo Picasso)

  a mãe
«A senhora Darling ouviu falar pela primeira vez de Peter Pan quando estava a arrumar as ideias dos filhos. É costume, à noite, todas as boas mães, depois de os filhos estarem a dormir, inspeccionarem os seus espíritos e porem as coisas nos seus lugares para a manhã seguinte, colocando nos lugares próprios muitas das coisas que andaram desarrumadas durante o dia. Se pudessem ficar acordados (mas claro que não podem) veriam a vossa mãe a fazer isso e achariam muita graça observá-la, é muito parecido com arrumar gavetas. Vê-la-iam de joelhos, alegremente, espero, de volta de algumas das vossas alegrias, pensando onde teriam ido descobrir, fazendo descobertas muito agradáveis e outras menos, apertando isto contra o rosto, como se fosse um gatinho e afastando apressadamente outra coisa. Quando acordam de manhã, a maldade e as paixões ruins com que se deitaram foram dobradas e guardadas no fundo da vossa mente e por cima, lindamente arejados, estão estendidos os vossos pensamentos mais bonitos, prontos para serem usados.»

J. M. Barrie, Peter Pan (1911)

tradução: Lucília Filipe
(roubado descaradamente do blog A procura do colofão

sábado, janeiro 11, 2014

Do avesso do corpo



(Júlio Pomar)

Olhar e Sentir             

Olhar e sentir
por dentro do corpo a massa de que é feito o avesso dele.
Ossos músculos nervos veias
tudo o que está no corpo e mundo é
a pintura contém e depõe na tela e
se acaso aí o pintor deixou reservas
nesse sem nada o avesso do mundo se
recolhe e mostra a face.


Júlio Pomar, in "TRATAdoDITOeFEITO"



Só o avesso do corpo é verdadeiro,
Só aí reside a textura, o calor irrigado pelo sangue.
É também no seu avesso que se esconde a alma. 

 

sexta-feira, janeiro 10, 2014

Do amor não se diz

Amor é o olhar total, que nunca pode
ser cantado nos poemas ou na música,
porque é tão-só próprio e bastante,
em si mesmo absoluto táctil,
que me cega, como a chuva cai
na minha cara, de faces nuas,
oferecidas sempre à àgua.

    Fiamma Hasse Pais Brandão, in Cantos do Canto


        (Dia Mundial dos Correios, Póvoa do Lanhoso, Fotografia particular de António Abreu)

       Escreveu uma carta dizendo do amor
       Aberta, apenas três palavras: "da tua, Maria"
       Porque do amor não se pode dizer


quinta-feira, janeiro 09, 2014

A vez primeira



 -Nunca havia sido beijada antes! disse-lhe. 
 -Nunca? perguntou, espantado. 
 -Nunca assim! respondeu-lhe.

 
(Cecilia Westerberg)

quarta-feira, janeiro 08, 2014

A idade da inocência

        (imagem do blog snake and snail)

- ... as plantas... 
E Setora interrompeu. Empertigou-se. 
Carregou no rosto chumbo de ocasião.
- Dá cá esse papel!
A miúda encolheu-se.
Faces incendiadas a rubro,
fogo de aflição.
Refugiou-se em silêncio solidário.
Resistiu.
- Esse papel!
Vergou.
Estendeu a folha,
o olhar a nascer das lágrimas,
a mão aberta sem alento.
A professora leu
no segredo das palvras mal riscadas:
       "Bea
        Diz-me só isto. Gostas de mim?
        Bea
        Ainda gosto de ti.
        Disse aquilo 
        Que tu para mim morreste        
         Não quer dizer que eu não gosto de ti.
        Só disse aquilo porque tu rasgaste a carta.
        Bea
        Gosto de ti
        Muito muito.
        Lê e dá a resposta.
        Depois de leres rasga
        ou mete no lado que tu quiseres
        Bea
        Faço anos no dia 27 deste mês.
        Se tu quiseres ir a minha casa diz-me
        E se tu quiseres podes levar a tua irmã.
        Bea
        Amo-te muito
        Bea
        Se tu gostasses de mim a gente era muito feliz.
        Dá a resposta em Trabalhos Manuais.
                                                                     Luís

A Setora negou a carta
à mão pedinte da miúda.
Olhou os olhos grandes do garoto
aflitos de inocência.
Suspendeu a palavra agreste 
nos lábios finos
Sorriu à saudade.
Dobrou a carta
com a benevolência dos cabelos prateados,
guardou o papel
no bolso branco mais rico
e continuou:
- ... as plantas...

Franco Carretas, in "Baladas de uma revolução"


terça-feira, janeiro 07, 2014

Instruções para aproximação a um pássaro



 (Kevin Sloan)

Quando te aproximares de um pássaro, fá-lo cuidadosamente. Os pássaros assustam-se facilmente e voam de imediato, ao menor movimento suspeito. Talvez possas deixar crescer asas, com penas brilhantes, e surpreendê-lo ao rasgares o céu ao seu lado. Mas, atenção, nunca abordes uma águia se fores um pardal do campo ( a não ser que tenhas a absoluta certeza de que ela é um pardal disfarçado).


Porquê, Alice?



 (Fotos de Sebastião Salgado)

Diz-me, Alice, porque quiseste voltar ao mundo dos sisudos, dos trambiqueiros, dos políticos de pacotilha, das diferenças abissais, das guerras, da miséria, ...? Porque não ficaste em Wonderland?


segunda-feira, janeiro 06, 2014

Deixem que Deus desate o nó. Logo ambos se encontrarão e atravessarão a cortina, uma e outra vez...

                               (Max Ernst)



WHEN MAN ENTERS WOMAN
When man
enters woman,
like the surf biting the shore,
again and again,
and the woman opens her mouth in pleasure
and her teeth gleam
like the alphabet,
Logos appears milking a star,
and the man
inside of woman
ties a knot
so that they will
never again be separate
and the woman
climbs into a flower
and swallows its stem
and Logos appears
and unleashed their rivers.

This man,
this woman
with their double hunger,
have tried to reach through
the curtain of God
and briefly they have,
though God
in His perversity
unties the knot.





QUANDO O HOMEM ENTRA NA MULHER
Quando o homem

entra na mulher,
como a rebentação
batendo na costa,
uma e outra vez,
e a mulher abre a boca de prazer
e os seus dentes brilham
como o alfabeto,
Logos aparece ordenhando uma estrela,
e o homem
dentro da mulher
ata um nó,
de modo que nunca mais
possam voltar a separar-se
e a mulher
trepa a uma flor
e engole o seu pecíolo
e Logos aparece
e solta os seus rios.

Este homem,
esta mulher
com o seu duplo desejo
tentaram atravessar
a cortina de Deus
e conseguiram-no por um instante,
embora Deus
na Sua perversidade
desate o nó. 
Poema de Anne Sexton, retirado do blog Poesia & Lda

domingo, janeiro 05, 2014

Do corpo perecível

Falta-te o ar, já não há o cheiro a flores e, porém, tantas que te rodeiam, agora. Abandonaram-te as palavras em que te (re)vias e por mais que falem os que ali vês, não te chega o que dizem. Gélido, o corpo. Imóveis, as mãos.

 ( ©Thorsten Schnorrbusch)

O Corpo  

Ante as portas desgarradas, paradoxal
é a morte: impossível, feito realidade,
acaso predito. Corpo, deus imortal,
para sempre cego e mudo, abandona-te ao livre

ar. Que te transformes e assemelhes à noite.
Tempestade final das sombras, foste, corpo,
respiração com voz, área que habitaste,
vária e discordante, a cada movimento.

E agora que a luz desfalece e não a tocas,
nem por ela és tocado, a palavra deixou
de ser a tua pátria e não mais esfolias

o espaço. Agora, que já nada mudará,
nenhuma eternidade te rescende. A morte
petrifica o frágil espaço que foi teu.


Orlando Neves, in "Decomposição - o Corpo"




Vive!


                                (Maria Louceiro)

Rasga os dias 
Vence as noites
Deixa marcas
Faz-te forte

Salta os muros
Sobe às árvores
Colhe o fruto
Morde a vida

Sai de ti
Entra em ti
Vê-te nua
Vive, agora! 

(Maria, Eu)

sábado, janeiro 04, 2014

Terna saudade

SAUDADE
Magoa-me a saudade
do sobressalto dos corpos
ferindo-se de ternura
sói-me a distante lembrança
do teu vestido
caindo aos nossos pés

Magoa-me a saudade
do tempo em que te habitava
como o sal ocupa o mar
como a luz recolhendo-se
nas pupilas desatentas

Seja eu de novo a tua sombra, teu desejo,
tua noite sem remédio
tua virtude, tua carência
eu
que longe de ti sou fraco
eu
que já fui água, seiva vegetal
sou agora gota trémula, raiz exposta

Traz
de novo, meu amor,
a transparência da água
dá ocupação à minha ternura vadia
mergulha os teus dedos
no feitiço do meu peito
e espanta na gruta funda de mim
os animais que atormentam o meu sono


Mia Couto

 (Cícero Dias)

Quando me faltas, cego.

sexta-feira, janeiro 03, 2014

O lado luminoso das Trevas




 (Ansel Adams)


Os Bruxos

Em alguns de nós, o olhar
queda-se paralelo
ao do mocho
que há muito do ombro
nos soou.

Estas pálpebras
humedecem os olhos
como ninguém o faz
a uma fronte.

Em seu reduto, velam

separando
a luz das Trevas.

Sebastião Alba, in "Uma pedra ao lado da evidência"

Dinis Albano Carneiro Gonçalves, de seu pseudónimo Sebastião Alba (1940-2000), foi um poeta muito particular. Viveu em Moçambique com a família, licenciando-se em Jornalismo. Casou, teve filhos. Regressou a Portugal em 1984, a Braga, e, sem que nada o fizesse prever, "faz-se" à rua, transformando-se num sem-abrigo. Vive em umbrais de portas, nos adros de igrejas... Conhecem-no pelas palavras, pela sensibilidade para as artes, em particular para a música. Nunca mais quis ter casa. Morreu atropelado, numa das rodovias que envolvem a cidade de Braga.
Num bilhete dirigido ao irmão afirmava "Se um dia encontrarem o teu irmão Dinis, o espólio será fácil de verificar: dois sapatos, a roupa do corpo e alguns papéis que a polícia não entenderá".

quinta-feira, janeiro 02, 2014

Toque

(Carson Barnes)

Ainda que fizesse escuro, bastava tocar-lhe com a polpa dos dedos para que o sol lhe brilhasse no olhar. 

quarta-feira, janeiro 01, 2014

Malmequeres amarelos

(Marlene Lee)
  
Há muito que não visitava a casa que em tempos fora sua. 
Aproximou-se, o portão estava fechado a cadeado. Ergueu-se em bicos de pés tentando ver a varanda onde se debruçara tantas vezes para olhar o caminho por onde viria Carlos. Lá estava o parapeito, levemente desgastado pelos cotovelos das mulheres que, como ela, se tinham debruçado horas e horas em esperas. A tia Luísa, oito anos noiva, a quem o garboso namorado tinha abandonado no altar e que nunca mais deixara de permanecer pelas tardes na varanda, de olhar perdido no horizonte, até morrer. A prima Anitas, loira, de olhos verdes, sempre tão cortejada, que se ia demorando noite dentro, em mímicas complexas, com os inúmeros rapazes que vinham de aldeias distantes flirtar com a jovem de beleza inigualável e que, um dia, foi expulsa de casa pelos pais ao encontrarem o Aspirante Macedo adormecido nos seus braços. Quantos mais teriam subido pelo caramanchão que tanto embelezava a pedra escurecida pelo tempo? 
Suspirou. Carlos também subira muitas vezes, a coberto da noite, seguindo-a, de sapatos na mão, até ao quarto onde se entregavam um ao outro com ardor, a cada vez como se fosse a última. Era tudo tão intenso que, no íntimo, adivinhavam que não poderia ser para sempre. Por isso se beijavam fundo, se tocavam longamente, se mordiam, arranhavam, penetravam, quase como que numa luta contra o tempo que sentiam a fugir-lhes.
Virou as costas ao portão. No carro, as flores que colhera no caminho para pôr nas jarras de casa. Eram malmequeres amarelos e ela sabia que o João gostava de ver a casa enfeitada com aquelas flores.

A magia de Max Ernst


Max Ernst (1891-1976), nascido Alemão, naturalizado Francês, expoente do Surrealismo e do movimento Dada com nomes da estatura de Andrè Breton, Louis Aragon ou Salvador Dali. Pintor, poeta, fotógrafo. Considerado um traidor e um vendido, pelo movimento por ter aceite o Grande Prémio de Pintura da Bienal de Veneza, em 1954.
Homem de paixões intensas, as mulheres desempenharam um papel primordial na sua inspiração artística. Diz-se mesmo que sem Luise Straus, a sua primeira mulher, de quem teve o seu único filho, não teria entrado tão rapidamente no meio Surrealista. (Luise era uma jornalista e historiadora, crítica de arte influente, pertencente a uma sólida família Judia. Morreu vítima do Holocausto, na Polónia, já divorciada de Max Ernst que, entretanto, se tinha perdido de amores por Gala Elouard [mais tarde, Gala Dali].)

 (Luise Straus-Ernst, Paul and Gala Eluard with their daughter Cécile and Max Ernst with Jimmy in the Insbrucker Hofgarten, Insbruck 1922)


(Max Ernst e Dorothea Tanning, a sua última companheira)


Hirondil hirondelle 

Où jadis une maison s'élevait

s'élève maintenant une montagne


Où jadis une montagne s'élevait

s'élève maintenant une étoile


Les daffodils jouent un concert pour cor et orchestre

stridulent distinctement dans la nuit


forgent une tempête

éclatent de rire

et s'endorment dans les yeux des daffodelles


Le tout viole le néant

le tout distribue quelques planètes

le tout gobe des océans d'air frais

et disparaît à l'ouest

sans laisser trace


Et voilà ô noces chimiques

où jadis une étoile s'élevait

hirondil hirondelle s'élèvent maintenant

oiseau de nos jours

la promise du jour

(...)

Alors les prunelles de ses yeux deviennent globes terrestres

il les prend entre le pouce et l'index

les roule sur la table

les fait éclater sur le sol

les lance en balles contre le mur

les rattrape au vol

et les fourre

avec la lune et la clé dans sa poche

et voilà ô noces chimiques

ô hirondil ô hirondelle


Où jadis s'élevait une étoile

une étoile maintenant se lève



Où jadis s'élevait une montagne

une montagne maintenant se lève


Où jadis s'élevait une maison

une maison maintenant se lève.