quarta-feira, dezembro 08, 2021

 


(imagem daqui)



Havia um sapo no jardim. Diziam-no jardineiro, auxiliar dos que tratavam as rosas, os cravos e demais flores, as plantas verdes e a horta.

Joaninha vira-o a espreitar por entre a relva já um pouco crescida, a precisar das mãos hábeis do Sr. Joaquim na tesoura afiada que repousava no armário das ferramentas.

Ia, desde então, visitá-lo a cada dia, quando chegava da escola. E lá estava ele, como que a dizer-lhe olá, os olhos muito brilhantes no verde relvado. Ficava ali, na conversa, contando-lhe das aulas, das brincadeiras no recreio, das saudades que tinha sempre de chegar a casa.

Um dia, a professora contou um conto dos irmãos Grimm, no qual uma princesa, enojada com a figura de um sapo, o atirava a uma parede, transformando-se o bicho num príncipe.

Joaninha correu todo o caminho, ansiosa por se encontrar com o seu amigo. Em chegando, nem sequer disse olá. Pegou-lhe, levou-o para a garagem, e atirou-o com toda a força de encontro à parede que logo se tingiu de sangue.

Por mais que esperasse, a menina não via transformação nenhuma, a não ser a da falta de brilho nos olhinhos de seu amigo.

Decidiu aguardar até ao dia seguinte à tarde.

Logo na primeira aula da manhã, a professora continuou o tema do dia anterior:

- “Como a aula terminou no preciso momento em que o garboso príncipe sorria para a princesa, não tive tempo de vos contar que há muitas versões desta história. Dizem que o sapo dos Grimm, afinal, teria morrido, e que a princesa só conseguiria transformá-lo com um beijo, ou então, deixando-o dormir na sua almofada.”

Lavada em lágrimas, Joaninha contou à professora o sucedido. Aprendeu, desde então, que a realidade nada tem a ver com a ficção, ainda que assim seja contada em certos livros.



(ONUKA - TIME)

domingo, novembro 21, 2021

Penumbrar

 

(Leonard Rosoman)

Passo a passo

fica um espaço

na calçada

 

Penumbra-se

a pedra mole

o coração  



(Beethoven "Moonlight" Sonata, III "Presto Agitato" Valentina Lisitsa)

terça-feira, outubro 19, 2021

Transmutação

 

(Sebastian Fernandes/Artmajeur)

Sentava-se no lugar do costume, na posição do costume, com os livros do costume, numa rotina cada vez mais muda. Lentamente, parecia fundir-se com o cadeirão que, de dia para dia, ia tomando paulatinamente a forma do seu corpo. Ou seria o oposto, e era ela que parecia vestir a forma do cadeirão, arriscando-se a desaparecer na profusão de flores cor de vinho do tecido?


(Camille Thomas – Dvorák: Songs My Mother Taught Me)

quinta-feira, agosto 26, 2021

Felicidade

 


                                                                      (Paul Bond)

A modorra da tarde quente instalara-se na casa e nela. Gotículas de suor perlavam-lhe o corpo semi-desnudo, na penumbra do quarto. Os lençóis brancos realçavam-lhe os contornos do corpo, deixando perceber alguma flacidez muscular, denotando a idade. Havia algum tempo que aquela cama lhe servia de refúgio nos Verões, cortinados corridos e portas abertas em corrente de ar. Se o corpo aparentava calma, por dentro, era um turbilhão! Anos felizes eram como um filme nas paredes brancas pouco iluminadas, à semelhança dos que eram projectados no passado, em tela portátil, nos longos serões familiares. As gargalhadas dos primos e amigos sazonais, o cheiro intenso do bolo de canela acabado de sair do forno e do licor de leite a fermentar na sala, as cantorias com a mãe durante os preparativos do jantar e o olhar ternurento do pai quando achava que as “suas meninas” estavam mais desatentas.

Chegam-lhe as gargalhadas das meninas e meninos, herdeiros dos tempos felizes. O relógio da torre da igreja bate 6 vezes. É hora de se levantar e juntar mais memórias doces, com novos personagens. 

(Hania Rani - Glass)

terça-feira, agosto 17, 2021

Há um rio

 


Havia um rio perto. Pela manhã, era um mar de prata a adentrar-lhe os olhos. O ruído, ao contrário do que lhe acontecia noutros lugares, trazia nele música: cantos de pássaros, rumores do vento nos canaviais, água em correria nas pedras do leito e um ou outro galo desconcertado nas horas.

Era um rio amigo de há longos anos. De menina, via as mulheres debruçadas nele, as bacias ajoujadas de roupa que iam sovando e esfregando com sabão azul, enquanto punham em dia a conversa que se não tinha com os maridos e filhos.

Na descida para a areia mais branca, chegava a sentir a mão a ser apertada pela do seu pai, quando ele a levava para a água, onde a guiava em braçadas inseguras, numa aprendizagem com o mínimo de técnica e o máximo de amor.


(Einaudi - Waves - The paino collection vol. II)

segunda-feira, junho 21, 2021

Hoje, o futuro.

(Marc Chagall)


Durante quase toda a vida, Joana pensara no futuro.

Primeiro, quando seria capaz de ler os livros colocados na estante mais alta da sala. Depois, quando lhos permitiriam ler.

Pelos seus 10 anos, perguntava-se como seria “ser mulher”. Ouvia as conversas sussurradas das mais velhas e não se lhe afigurava coisa de muito interesse. De grande interesse, por outro lado, eram as perspectivas de descobrir a que saberia um beijo, daqueles longos e apaixonados dos romances, lidos aos 13 anos.

O beijo veio aos 15. Não foi longo nem apaixonado. Oh, desilusão! Ficou o futuro prometendo melhor. E foi! Paixão, ardor, namoro dos 17! Nem imaginava outro assim! Mas houve outros beijos, de outros lábios. Mais os beijos que os lábios, é certo, mas bons por demais, antevendo não desapontarem.

Universitária, sonhava com a profissão. 

Curiosamente, chegou um tempo em que o futuro era o agora. Celebrava os momentos como se fossem únicos e últimos. Os livros começaram a ser (re)lidos ainda com mais entusiasmo e os beijos (ah, os beijos), sempre ardentes e demorados.


(Gustavo Santaolalla - Alma)

sexta-feira, junho 11, 2021

Dia de Todos os Santos

 

(Norman Rockwell)

Era no Dia de Todos os Santos que a família se reunia. Primeiro à volta da mesa, onde o peru era rei e Joana se arrepiava com a visão ávida dos tios, que atacavam as travessas com as mãos e terminavam a refeição com o queixo a pingar gordura, os dentes roxos do vinho tinto e a camisa com nódoas de várias cores, quando não com bocados de arroz ou leite-creme em versão minimalista e seca.

Enquanto os homens se arrastavam até à mesa de pedra do quintal para fumarem e acabarem com a garrafa de bagaço e as crianças jogavam ao esconde-esconde ou à macaca, as mulheres afadigavam-se para arrumarem a cozinha. No dia anterior, a elas tinha cabido a ida ao cemitério, levar os baldes, os materiais de limpeza e as flores, para as “suas” campas ficarem a brilhar e os arranjos dignos de inveja.

Juntavam-se, então, ao portão da quinta e iam, em passo lento, até ao cemitério. Uma pequena feira de vaidades, essa visita. Sussurravam-se críticas e elogios, cumprimentavam-se aqueles que só nesse dia se deslocavam à aldeia, enchiam-se os caminhos esconsos de “filhos Pródigos”.

Joana nunca gostara dessa data. Os primos mais velhos, João Maria e Manuel António, olhavam-na do alto dos seus 15 e 17 anos vividos no Porto, como se fossem príncipes e ela encolhia-se no vestido novo, soquetes brancas e sapatos de verniz devidos ao Domingo, apesar de os 14 anos já lhe permitirem umas meias de vidro e uns sapatos de meio tacão. Vingava-se a atiçar-lhes o cão e a meter-lhes minhocas pela roupa dentro!

Havia, porém, uma coisa que a incomodava ainda mais do que a atitude altiva dos primos, o tempo passado junto às campas. Jurava que os mortos se agitavam, falavam entre si e, no caso das crianças falecidas, até choravam, despertadas do seu sono.

Quando eu morrer, pensou Joana, quero ser feita em cinza. Assim, estarei em todos os lugares sem estar em lugar nenhum.


 

(Dead Can Dance Anabasis)

quarta-feira, maio 05, 2021

Retorno

 


Ondina vivera já muitos anos. Passava dos noventa, agora. Tinha sido jovem aprendiz de costura na mestra da aldeia, cortando, cosendo e bordando o enxoval. Ainda nos verdes vinte, João, rapaz garboso e bom de palavra, tratou de conquistá-la e levá-la ao altar.  Logo se afadigou na lide da casa, em dar à luz duas filhas (que difíceis foram os partos, naquela casa apertada) e em educá-las nos preceitos antigos.

A vida correra sem grandes sobressaltos, mas também sem a alegria que imaginara enquanto bordava os lençóis de linho. João trabalhava de manhã à noite e, ainda que o garbo estivesse lá, as palavras foram morrendo aos poucos.

Recordava-o num misto de ternura e de raiva. Amara-o, é certo, mas mantivera escondida a revolta de se ter diminuído mais de sessenta anos, de nunca ter tido a coragem de ripostar quando lhe pedia palavras ternas e ele se ria dela.

Agora, no caminho da cama para a cadeira de rodas, deixava-se levar, enquanto jurava que, doravante, teria 20 anos e regressaria à costura.


 
              (Ólafur Arnalds - So Far)

sábado, abril 24, 2021

Sem aviso

 

(Man Ray - The kiss)


Era Verão quando o amor veio de visita. Chegou sem aviso, pegou-lhe nas mãos e beijou-lhas. 

Não se importou com detalhes. Quis ficar aninhado no seu coração e assim o fez, adoçando-lhe os dias com ternura e inflamando-lhe as noites com impetuosidade.


(Jacob Gurevitsch - Lovers In Paris)

quarta-feira, abril 07, 2021

Vento e Eros

 (imagem daqui)

Vem o vento, manso e leve, qual carícia de um amante, fazer dançar o vestido

Cria, então, aquela roda, e ora se enfuna e revela as pernas pelo tecido

Ora sopra mais um pouco a fazê-lo enroscar-se no corpo que já se entrega

Ora avança, pouco a pouco, de lascivo e todo louco, pelas alças escorrega


(Cucurrucucú Paloma | Sílvia Pérez Cruz i Raül Fernández)

quarta-feira, março 31, 2021

Diminutivo

 

(Marc Chagall)

Efigénia da Conceição crescera devagar nas sombras da casa grande. Das raras vezes em que se agarrara à saia da mãe, logo levara um arrepelão.

- Sai-te p`ra lá, Efigénia da Conceição!

Julgar-se-ia que a pequena seria chamada por Gena, Geninha, Efi, São, Sãozinha, mas não, o nome completo, assim duro e escorreito, não fosse a miúda habituar-se a mimos desnecessários.

Foi-se fechando, fechando, até que deixou de “aparecer” que não fosse para se sentar na ponta da mesa da cozinha, à espera do prato de sopa e de mais qualquer sobra que houvesse para levar à socapa para o Malhado e a para a Micas, canitos seus companheiros de escapadelas campestres.

Num instante, Efigénia da Conceição era adolescente, rapariga feita, mulher. Porém, nenhuma das mulheres da casa parecia aperceber-se da sua existência. Sombra nas sombras, olhar triste e carregado.

Nem ela nem as outras repararam que, do outro lado do muro, a coberto das frondosas trepadeiras, uns olhos vivos lhe acompanhavam o crescimento e a tristeza. Um dia, o sol de uma Primavera quente e soalheira levou-a à sombra do caramanchão e, de repente, o dono dos olhos vivos chamou: Geninha! Geninha!

 

Assim começou a fazer-se ternura na vida de Efigénia da Conceição.


(Ballaké Sissoko & Vincent Ségal "a benim kahve sesli, ince sızım" )

quinta-feira, março 25, 2021

Castanhas e figos

 

(imagem daqui)


Morreu-me o castanheiro sem aviso. Os ouriços emprenharam de castanhas, e vieram, como de costume, atapetar em círculo o espaço por baixo da copa. Eram pequenos, os frutos, sei bem, mas doces. Bastou uma trintena de dias. Em subindo a rampa, rente ao muro, a visão do tronco seco, encimado pelos ramos despenteados e hirtos, sem que o vento os fizesse, sequer, estremecer.

Morreu-me o castanheiro. E a figueira, namorada de sempre, começa a dar sinais de querer segui-lo.

Não hei-de comer de outras castanhas ou figos enquanto me não crescerem as árvores que plantar!


(Max Richter - Non-Eternal)

quinta-feira, março 11, 2021

Gaivota

 

(Imagem daqui)

De quando em vez, Maria Clara gostava de escapar à tristeza dos dias sem luz e abrir os olhos do lado de dentro, onde habitavam sempre o mar, as dunas, o azul intenso do céu de Verão e as gaivotas em voos feéricos, à espreita do peixe.

Quem a observasse, diria que dela se apoderara um sono profundo.

Foi num destes dias que Maria Clara se viu num sol da manhã, pés descalços e sandálias na mão, caminhando rente à babugem das ondas, que vinham salpicar-lhe as pernas. Demorou-se ali, o horizonte largo, um navio cargueiro a acompanhar essa linha, o cheiro intenso a algas.

Sabia que não estaria só por muito tempo. Ali, nunca estava sozinha. Afinal, uma gaivota não voa sozinha.

 

(Anoushka Shankar - Bright Eyes ft. Alev Lenz)

sexta-feira, março 05, 2021

Pássaros


(Jessica Pisano)


    Andam                                      da cidade

pássaros           ruas

        nas 


 

Há ruas                                pássaros

  da                      com

   cidade 


                          

Anda                                    de pássaros

 a                    cheia

cidade  

 


Viste a cidade cheia de  pá        ros?

                                                  ssa


(Mari Samuelsen – Einaudi: Una Mattina)

terça-feira, fevereiro 23, 2021

De dentro para fora

‘Blind Curve’ (2010) © Felix Lucero

O que fazer se me faltam as palavras? Sei que as tinha, algures, guardadas numa inesgotável fonte de águas claras. Aos poucos, a água foi escasseando, talvez a tenham confinado em lugar incerto. Ou tê-la-ão levado por outros caminhos que não este? Haverá alguém que a use e às palavras que eram minhas, noutra “prisão” que não aquela em que me enclausuro?

Há pássaros em gorjeios à desgarrada fazendo-se ouvir através dos vidros. Sons de obras à mistura com o troar de motores mais potentes, na via rápida. Uma mulher de voz alterada grita que não aguenta mais, ao que outra voz, masculina, responde que não tem culpa.

Da varanda, onde as plantas começam a florir timidamente, vê-se a rua deserta. Por entre os prédios de dez andares, uma nesga de verde, um monte encimado por uma igreja branca. Serpenteante, a estrada estreita que sobe até ao templo faz um recorte no pinhal, um desenho cheio de curvas e contracurvas, como o que traçam os meninos para fazerem pistas de automóveis e brincarem aos pilotos.


(Gabor Szabo - Dreams)

sábado, fevereiro 06, 2021

Apontamentos VII

 

(Paul Bondart)


Proibiram-na de sair

Voou para todos os lugares



(Little Jimmy Scott - When Did You Leave Heaven)

terça-feira, fevereiro 02, 2021

Apontamentos VI

 


A nespereira floriu

Abriu a janela e cantou



(Omara Portuondo- "Dos Gardenias" y " Besame mucho")

Apontamentos V

 



Chegou uma carta em papel amarelo

Respondeu em papel verde água


(Natalia Lafourcade - Tú sí sabes quererme)

sábado, janeiro 30, 2021

quinta-feira, janeiro 28, 2021

segunda-feira, janeiro 25, 2021

Apontamentos II

 

(Marc Chagall - The blue bird)


Um pássaro azul cantou

Ela pôs-se a dançar



(L'Arpeggiata - Athanasius Kircher (1602-1680) - Tarantella Napoletana, Tono Hypodorico)

sábado, janeiro 23, 2021

Apontamentos I

 

(imagem daqui)


Caiu chuva na varanda

Descalçou-se e deixou-se molhar


                                (Ben Harper - Winter is for lovers)

quinta-feira, janeiro 14, 2021

A Leitora

(Francine Van Hove. #drawinganatomyandart)

Maria da Luz começara a juntar as letras com três anos. Um dia, sentada à mesa, enquanto os pais se entretinham a falar de como fora o seu dia, exclamou: “Aceite virgem Galo!”

A mãe riu-se e perguntou “– Oh, Milú, o que é isso? Azeite?”

“Ali, mãe! Diz ali, na garrafa de aceite!”, ripostou a criaturinha de 95 centímetros e caracóis loiros, de dedo espetado para o rótulo da garrafa que repousava na mesa, junto do seu prato.

“Oh, Milú, lê aqui isto!”, pediu o pai, mostrando-lhe a impressão numa caneta que retirou do bolso da camisa.

“Escola de Ano Bom”, leu a pequenina.

Nessa noite, sentada na cama entre o pai e a mãe, leu uma página inteirinha do Capuchinho Vermelho.



A cabeça ornada por uma longa cabeleira loira parecia não se mover há horas. Na ampla sala da biblioteca, apenas aquela mulher lia com tanta concentração. O seu registo era, de longe, aquele em que mais entradas constavam. Havia romances, biografias, poesia, História e, no início, contos de fadas e de aventuras. Milhares de livros, milhares de milhões de palavras!

Só na hora de encerrar, a bibliotecária, estranhando a demora da leitora, se aproximou, verificando que os cabelos loiros se espalhavam pela mesa, cabeça e mãos caídas, o livro derradeiro a amparar-lhe a face pálida.

Consta que o coração lhe quis dar um fim naquela sala. Diz-se, também, que houve um ruído imenso de palavras sussurradas quando lançaram as suas cinzas no jardim da Biblioteca, levantando uma revoada de pássaros, numa desgarrada de chilreios.

 

(Camille Thomas – Gluck:Dance of the Blessed Spirits)