quarta-feira, julho 29, 2020

Ver-se por dentro




Maria Clara respirava devagarinho, olhos fechados na penumbra do quarto, o corpo suado da noite quente. Quem a visse diria que ainda dormia, de tão quieta. 

Clarinha! Clarinha! Oh, filha, até fiquei preocupada de te ver assim!
Estava a ver-me por dentro, mãe!

Vinham-lhe à memória as palavras da mãe e a gargalhada sonora que soltara com a resposta, enquanto se via por dentro, tal como em menina.


(Ludovico Einaudi-Fly)

quinta-feira, julho 23, 2020

O Verão acontece



Era o tempo do calor, das noites mal dormidas na ânsia da manhã fresca e das vozes alegres do José, da Maria e do Francisco junto à sua janela. A nespereira já sem frutos, mas explodindo em verde, o Pantera a arranhar-lhe a porta do quarto, pronto para lhe saltar aos ombros e mostrar a língua rosada como que a fazer-lhe caretas.
Há quantos anos fora? Quantos Verões? 
As brincadeiras mil em correria pelos campos amarelados de malmequeres que se transformavam em coroas de reis e rainhas, os braços grossos e longos das oliveiras que lhes serviam de casa e castelo, os muros vencidos à custa de arranhões e feridas nos joelhos, a leveza dos dias, embora longos, alimentada a café com leite e pão com marmelada caseira.

O Verão acontece, ainda. A memória enche-o de cheiros, vozes e rendilhados recortes.


(Debussy - Deux Arabesques (Harpe) - Héloïse de Jenlis)

terça-feira, julho 21, 2020

O lugar certo



o lugar do amor
é aqui pai

o lugar certinho para te beijar
sem ter medo
que não tenho
sabes bem
só tenho medo do que não tem amor
e fujo para os teus olhos
quando vejo sombras em lugar de sol

o lugar do amor
é aqui

li num livro que não é teu
é de um outro António que fala de coisas
como tu
ou tu é que falas como ele

o lugar certo
para dormir nos teus braços
na "ignorância da morte"

António Teixeira Castro



(Joan Miró)


De quando em vez, vinha o eco do riso, a lembrança do amor que nunca morre. O cheiro a after-shave (que isso de perfumes sofisticados, filha, não é para mim) e a café, o abraço apertado, as mãos fortes aternurando-se no seu cabelo. Fora ali, o lugar do amor...



(Yann Tiersen - The Long Road)

quinta-feira, julho 02, 2020

Da espera



Desde sempre que Maria se habituara a esperar. Ajustava o corpo ao sofá que começara por ser castanho-escuro com flores e, de ano para ano, clareara até um bege desmaiado, onde as ramagens teimavam em resistir.
Esperara por José, quando ele se atrasava para o jantar. Esperara por ele, ainda, noite dentro, adormecendo em leituras longas. Esperara, em vão, quando ele saiu para uma viagem curta de trabalho e nunca mais voltou.
Esperara pelos filhos, nos dias que o verão prolongava até as estrelas esmaecerem. Esperara por eles sem sucesso, tantos fins-de-semana, a solidão a morder-lhe os olhos em lágrimas.
Esperara pela morte, sem medo, até que ela veio, em jeito terno, levando-a ao colo.

Joana apaixonou-se pelo sofá, assim que o viu na montra da loja do Sr. Joaquim dos estofos.
Tão bom que deve ser para esperar, pensou!


(Mísia - Sem saber)