segunda-feira, janeiro 29, 2018

Música a dois


(Jack Vettriano)


o suporte da música

o suporte da música pode ser a relação
entre um homem e uma mulher, a pauta
dos seus gestos tocando-se, ou dos seus
olhares encontrando-se, ou das suas

vogais adivinhando-se abertas e recíprocas,
ou dos seus obscuros sinais de entendimento,
crescendo como trepadeiras entre eles.
o suporte da música pode ser uma apetência

dos seus ouvidos e do olfacto, de tudo o que se
ramifica entre os timbres, os perfumes,
mas é também um ritmo interior, uma parcela
do cosmos, e eles sabem-no, perpassando

por uns frágeis momentos, concentrado
num ponto minúsculo, intensamente luminoso,
que a música, desvendando-se, desdobra,
entre conhecimento e cúmplice harmonia.

Vasco Graça Moura, in "Antologia dos Sessenta Anos"



Mariana e José não precisavam de falar. Um olhar, um olhar bastava para que se completasse uma frase, se recordasse um detalhe, se abrisse um sorriso, ou assomasse uma lágrima. Separados, Mariana era extrovertida, faladora, ainda que tranquila, enquanto José evitava grandes conversas, vivia mais no seu mundo interior, ainda que tenso. Juntos... Juntos havia harpas nos dedos que se tocavam, cânticos nas bocas a arder num beijo, sinfonias completas quando se entregavam, inteiros, um ao outro.

sexta-feira, janeiro 26, 2018

Os donos do açúcar

(Teddi Parker)

O açúcar

O branco açúcar que adoçará meu café 
nesta manhã de Ipanema 
não foi produzido por mim 
nem surgiu dentro do açucareiro por milagre.
Vejo-o puro 
e afável ao paladar 
como beijo de moça, água 
na pele, flor 
que se dissolve na boca. Mas este açúcar 
não foi feito por mim.
Este açúcar veio 
da mercearia da esquina e tampouco o fez o Oliveira, dono da mercearia. 
Este açúcar veio 
de uma usina de açúcar em Pernambuco 
ou no Estado do Rio 
e tampouco o fez o dono da usina.
Este açúcar era cana 
e veio dos canaviais extensos 
que não nascem por acaso 
no regaço do vale.
Em lugares distantes, onde não há hospital 
nem escola, 
homens que não sabem ler e morrem de fome 
aos 27 anos 
plantaram e colheram a cana 
que viraria açúcar.
Em usinas escuras, 
homens de vida amarga 
e dura 
produziram este açúcar 
branco e puro 
com que adoço meu café esta manhã em Ipanema.

Ferreira Gullar




O açúcar branco e doce feito por mãos tisnadas e amargas que nunca o usam assim, refinado. Os verdadeiros donos do açúcar e dessas mãos, nunca viram, decerto o mar em Ipanema, nem os açucareiros nas mesas das esplanadas. 


segunda-feira, janeiro 22, 2018

Há sempre uma lua


(Paulina Otylie Surys)

There's always a moon



The grey grey sky

against the moon
sits in rags of
clouds



The rags of

clouds
sit against the sky
under the  moon



Is there a moon

in the grey grey sky?



There is always

a moon in the sky
despite the grey.

Maria Eu


domingo, janeiro 21, 2018

Fragmentos

(Angélina Nové)


Percebeu que se rasgara por dentro quando sentiu o travo agridoce do sangue. Teria mais cuidado quando pusesse pedaços de coração de volta dentro do peito.



quarta-feira, janeiro 17, 2018

Amizade entre iguais

(imagem daqui)


Paco e Irene tinham chegado há duas semanas à cidade. Estranharam o frio, a chuva, a aridez da língua que não enrolava os erres nem soava a canção de amor. Traziam pouca coisa na bagagem, três mudas de roupa, artigos de higiene básica e os documentos de identificação. Zabelita, chegada uns meses antes, alugara-lhes um apartamento na periferia. Sabiam que não seria suficiente para grande coisa, mas nada os fazia prever a degradação do bairro. Nem o taxista quisera entrar no emaranhado de ruas estreitas, tão estreitas que parecia terem voltado ao local que tinham abandonado em busca de uma vida menos dura.
Paco tirou do bolso do casaco coçado o papel onde anotara o endereço que passaria a ser o deles.  Irene limitava-se a segui-lo, olhos negros ainda mais negros de aflição. 
O prédio, cinzento e negro das chuvas, já tinha sido azul. Viam-se manchas da tinta antiga aqui e ali, à  mistura com as pichagens. Tentaram usar o elevador, em vão. Subiram as escadas esconsas até ao 4º Esq.-Frente. A chave estaria debaixo do vaso branco, ao fundo do corredor, dissera-lhes Zabelita. Parecia-lhes extraordinário que assim fosse, mas estava lá. Franquearam a entrada. Apesar da pobreza, estava tudo limpo e, em cima da mesa da cozinha, bananas e laranjas davam uma nota alegre.
Irene abeirou-se da janela. Num repente, um pardalito veio bicar o vidro. Sorriu, pela primeira vez desde há muito, e repetiu o som das bicadas com o dedo, pelo lado de dentro. 
-¿Vamos a descansar un poco ?, perguntou Paco.
-¡Sí, es mejor !, respondeu.
Acordaram com o vento a fustigar a persiana. 
-Voy a buscar fruta para comermos., disse Irene, levantando-se a custo.
Na janela da cozinha, o pardalito aninhava-se num recanto, como que esperando-a, apesar da neve. Mal deu conta da sua presença, retomou as bicadas. Irene descascou uma banana, esmagou um pedaço e, abrindo a vidraça com cuidado, estendeu-o na mão aberta à avezita que não se fez rogada à refeição. Olhava-a nos olhos entre cada degustação, como se lhe quisesse agradecer. 
-Irene! 
Paco chamava-a
-Excusa. ¿Nos vemos después?
O passarinho chilreou, como que a responder-lhe e ela, antes de fechar a janela, tirou a fruta do cesto, forrou-o com um pano, protegendo a parte de cima com uma cobertura improvisada de um saco de plástico, deixando o abrigo bem entalado no parapeito para que não fosse levado pelo vento.
-Ahora que tengo un amigo, va a ser más fácil., pensou Irene, sorrindo, enquanto via o chilreador acomodar-se.


sexta-feira, janeiro 12, 2018

Inverno

(Saatchi Art Artist Lazar Lekovic; Photography, "Winter day in the forest")



Winter trees


All the complicated details

of the attiring and

the disattiring are completed!

A liquid moon

moves gently among

the long branches.

Thus having prepared their buds

against a sure winter

the wise trees

stand sleeping in the cold



William Carlos Williams









Árvores de Inverno


Todos os detalhes complicados do vestir e do despir estão completos! Uma lua líquida move-se suavemente entre os longos ramos. Tendo preparado os seus rebentos contra um inverno certo as sábias árvores erguem-se dormindo ao frio.

William Carlos Williams traduzido por Maria Eu

terça-feira, janeiro 09, 2018

Coração

(Amy Friend)



                       
                                                        saber                  escrevia
                                              Sem             como                  na
                                                 forma                             doce
                                                    terna                      suave
                                                           de                um
                                                                coração