o suporte da música o suporte da música pode ser a relação entre um homem e uma mulher, a pauta dos seus gestos tocando-se, ou dos seus olhares encontrando-se, ou das suas vogais adivinhando-se abertas e recíprocas, ou dos seus obscuros sinais de entendimento, crescendo como trepadeiras entre eles. o suporte da música pode ser uma apetência dos seus ouvidos e do olfacto, de tudo o que se ramifica entre os timbres, os perfumes, mas é também um ritmo interior, uma parcela do cosmos, e eles sabem-no, perpassando por uns frágeis momentos, concentrado num ponto minúsculo, intensamente luminoso, que a música, desvendando-se, desdobra, entre conhecimento e cúmplice harmonia.
Vasco Graça Moura, in "Antologia dos Sessenta Anos"
Mariana e José não precisavam de falar. Um olhar, um olhar bastava para que se completasse uma frase, se recordasse um detalhe, se abrisse um sorriso, ou assomasse uma lágrima. Separados, Mariana era extrovertida, faladora, ainda que tranquila, enquanto José evitava grandes conversas, vivia mais no seu mundo interior, ainda que tenso. Juntos... Juntos havia harpas nos dedos que se tocavam, cânticos nas bocas a arder num beijo, sinfonias completas quando se entregavam, inteiros, um ao outro.
O branco açúcar que adoçará meu café nesta manhã de Ipanema não foi produzido por mim nem surgiu dentro do açucareiro por milagre.
Vejo-o puro e afável ao paladar como beijo de moça, água na pele, flor que se dissolve na boca. Mas este açúcar não foi feito por mim.
Este açúcar veio da mercearia da esquina e tampouco o fez o Oliveira, dono da mercearia. Este açúcar veio de uma usina de açúcar em Pernambuco ou no Estado do Rio e tampouco o fez o dono da usina.
Este açúcar era cana e veio dos canaviais extensos que não nascem por acaso no regaço do vale.
Em lugares distantes, onde não há hospital nem escola, homens que não sabem ler e morrem de fome aos 27 anos plantaram e colheram a cana que viraria açúcar.
Em usinas escuras, homens de vida amarga e dura produziram este açúcar branco e puro com que adoço meu café esta manhã em Ipanema.
Ferreira Gullar
O açúcar branco e doce feito por mãos tisnadas e amargas que nunca o usam assim, refinado. Os verdadeiros donos do açúcar e dessas mãos, nunca viram, decerto o mar em Ipanema, nem os açucareiros nas mesas das esplanadas.
(Angélina Nové) Percebeu que se rasgara por dentro quando sentiu o travo agridoce do sangue. Teria mais cuidado quando pusesse pedaços de coração de volta dentro do peito.
Paco e Irene tinham chegado há duas semanas à cidade. Estranharam o frio, a chuva, a aridez da língua que não enrolava os erres nem soava a canção de amor. Traziam pouca coisa na bagagem, três mudas de roupa, artigos de higiene básica e os documentos de identificação. Zabelita, chegada uns meses antes, alugara-lhes um apartamento na periferia. Sabiam que não seria suficiente para grande coisa, mas nada os fazia prever a degradação do bairro. Nem o taxista quisera entrar no emaranhado de ruas estreitas, tão estreitas que parecia terem voltado ao local que tinham abandonado em busca de uma vida menos dura.
Paco tirou do bolso do casaco coçado o papel onde anotara o endereço que passaria a ser o deles. Irene limitava-se a segui-lo, olhos negros ainda mais negros de aflição.
O prédio, cinzento e negro das chuvas, já tinha sido azul. Viam-se manchas da tinta antiga aqui e ali, à mistura com as pichagens. Tentaram usar o elevador, em vão. Subiram as escadas esconsas até ao 4º Esq.-Frente. A chave estaria debaixo do vaso branco, ao fundo do corredor, dissera-lhes Zabelita. Parecia-lhes extraordinário que assim fosse, mas estava lá. Franquearam a entrada. Apesar da pobreza, estava tudo limpo e, em cima da mesa da cozinha, bananas e laranjas davam uma nota alegre.
Irene abeirou-se da janela. Num repente, um pardalito veio bicar o vidro. Sorriu, pela primeira vez desde há muito, e repetiu o som das bicadas com o dedo, pelo lado de dentro.
-¿Vamos a descansar un poco ?, perguntou Paco.
-¡Sí, es mejor !, respondeu.
Acordaram com o vento a fustigar a persiana.
-Voy a buscar fruta para comermos., disse Irene, levantando-se a custo.
Na janela da cozinha, o pardalito aninhava-se num recanto, como que esperando-a, apesar da neve. Mal deu conta da sua presença, retomou as bicadas. Irene descascou uma banana, esmagou um pedaço e, abrindo a vidraça com cuidado, estendeu-o na mão aberta à avezita que não se fez rogada à refeição. Olhava-a nos olhos entre cada degustação, como se lhe quisesse agradecer.
-Irene!
Paco chamava-a
-Excusa. ¿Nos vemos después?
O passarinho chilreou, como que a responder-lhe e ela, antes de fechar a janela, tirou a fruta do cesto, forrou-o com um pano, protegendo a parte de cima com uma cobertura improvisada de um saco de plástico, deixando o abrigo bem entalado no parapeito para que não fosse levado pelo vento.
-Ahora que tengo un amigo, va a ser más fácil., pensou Irene, sorrindo, enquanto via o chilreador acomodar-se.
Árvores de Inverno Todos os detalhes complicados
do vestir e
do despir estão completos!
Uma lua líquida
move-se suavemente entre
os longos ramos.
Tendo preparado os seus rebentos
contra um inverno certo
as sábias árvores
erguem-se dormindo ao frio. William Carlos Williams traduzido por Maria Eu