quarta-feira, setembro 30, 2015

Amante e amado

(Man Ray)


Do meu amor sei que é forte e que me abraça como se me fosse guardar dentro do peito. Sei que tem mãos que desenham lírios no meu corpo e os rega com beijos orvalhados. Sei, também, que diz o meu nome com uma doçura de que mais ninguém é capaz. 
Amante e amado é o meu amor. 


domingo, setembro 27, 2015

Dança a quatro mãos



Foi num dia claro, de céu azul, que José foi ao encontro de Ana Maria. Ela não o esperava. Ele só tinha por certeza que a veria no final da tarde. Diria, quem os visse, de mãos em conversa ansiosa por cima do tampo da mesa do salão de chá, que se desafiavam. 

Nunca soube, quem os viu, como acabou o encontro de ambos mas nunca mais esqueceram a intensidade daquela dança a quatro mãos.


sábado, setembro 26, 2015

Tempo de ouriços

(Ann Lehman)


Havia um castanheiro no quintal da Sra. Rosalina. Este era um facto que Clarinha sabia, muito mais agora, que o Outono revelava os ouriços prenhes de castanhas gordas e reluzentes, a abri-los antes do tempo, em parto forçado. Ela bem trepava ao muro que dividia o seu quintal do da vizinha e via um desperdício de frutos, ali amontoados por entre a erva densa. 
- Oh, mãe, a Sra. Rosalina não apanha as castanhas? 
- E que tens tu com isso, menina? São dela, faz o que lhe aprouver!
Mas parecia que não lhe aprouvia nada pois as ditas apodreciam no chão e as que restavam em equilibrismo ouriçado iriam acabar de igual modo.
Clarinha tomou como suas as dores dessas castanhas em perigo, trepou, uma vez mais, ao muro, alçou uma perna para o outro lado e deixou-se escorregar. Havia uns ramos de videira secos que prontamente foram remexidos até que um, mais comprido, lhe serviu de extensão às mãos para varejar a árvore. Era um regalo, a chuva de castanhas! Apanhou-as para o bibe de quadrados azuis e brancos, debruado a espiguilha, que a mãe tinha costurado. Porém, logo percebeu que não poderia sair como entrara. Olhou, aflita, para o muro que, do lado em que se encontrava, era liso que só visto. Nem uma mísera reentrância para pôr um pé, ou uma pedra saliente para se agarrar. O coração batia cada vez com mais força, os olhos marejados de lágrimas. Sabia que só passando frente à casa e transpondo o portão que dava para o caminho conseguiria sair. Contou até três e desatou a correr, as mãos agarrando o bibe-fruteira. Enquanto abria, nervosamente, o portão, e se esgueirava a custo para correr em direcção a casa, ouviu a voz da Sra. Rosalina dirigindo-se-lhe em tom alto e divertido:
- Ai tu andaste-me a limpar o castanheiro? Podias ter dito que te abria o portão!



sexta-feira, setembro 25, 2015

Uma questão de sapatos

(Jacob Lawrence)


Entregava os sapatos pretos, de pele baça, martelada, e tacão elegante, para que o sapateiro os pusesse como novos.
- São capas novas, Sr. João. Ah, e não se esqueça de os deixar bem engraxados, se faz o favor!
- Pois não, Dona Ana Maria! Deixe-me dizer-lhe que a Sr.ª é tão bonita! Está sempre muito bonita, pronto!
Perante o levantar de sobrancelha e o ar surpreendido, acrescentou:
- Com todo o respeito, Dona Ana Maria, com todo o respeito!



quarta-feira, setembro 23, 2015

Juntos

(Rene Magritte)


Trago-te ao Espaço da Janela

Trago-te ao espaço da janela.
De novo surgiram deste lado da rua.
Em voz baixa disse «uma alucinação». A
única resposta foi entrar em casa
subir ao quarto mudar de roupa
ser jovem com quem soube bem ser jovem
sábio com quem quiseste ser sábio
velho com os velhos.
Trago-te para perto da janela
o rio vê-se daqui.
A cor da terra circula.

«Talvez seja a morte» «não»
«se for a morte o coração baterá mais ou menos forte».
O corpo
não tem grande lugar.

João Miguel Fernandes Jorge, in "Meridional"




Juntos, transpúnhamos a porta

Juntos, transpúnhamos a porta
Na rua adivinha-se o sol
Exclamo, "vou buscar-te"!  A
resposta imediata foi voltar à sala
pegar-te nas mãos frias
ser eu mesma com quem quer que eu seja eu
beber dos lábios de quem sabe beijar
amantes como os amantes.
Levo-te para a ombreira da porta
o sol ilumina-te.
O azul do céu cega.

«Talvez seja o fim» «não»
«se for o fim o teu sorriso não se abrirá».
A palavra
não tem qualquer sentido.

Maria Eu

Mil e uma noites

(daqui)



"O amor é profundo e faz eco"

As Mil e Uma Noites, de Miguel Gomes, não é um filme sobre o Amor. Ou, então, talvez seja, por ter Portugal no centro de todas a histórias, por contar como somos, como estamos, o que fizeram de nós.


domingo, setembro 20, 2015

Paixão


(da autora do blog Voo noturno)



Cio

Entre as pernas te prendo
serpente e presa em duelo

Instintivos golpes
em obscena estratégia
– despudorada arma

Vitoriosa
bebo em teu cálice
o sêmen


...chove sobre o cio

Gloria Sartore





Paixão

Nos meus braços te enlaço
fêmea e macho num puzzle

Intencionais carícias
em apaixonada dança
- deliciosa excitação

Gulosos
devoramos vagarosamente
os corpos


...faz sol sobre os amantes

Maria Eu

sexta-feira, setembro 18, 2015

Elegia



(Hisano Hisashi - 1939)


Elegy for the Living


We wash up side by side
to find each other


in the speakable world,
and, lulled into sense,


inhabit our landscape;
the curve


of that chair draped
with your shirt;


my glass of  water
seeded overnight with air.


After this bed
there’ll be another,


so we’ll roll
and keep rolling


until one of  us
will roll alone and try to roll


the other back — a trick
no one’s yet pulled off — 


and it’ll be
as if   I dreamed you, dear


as if   I dreamed this bed,
our touching limbs,


this room, the tree outside alive
with new wet light.


Not now. Not yet.

 KATHRYN SIMMONDS





Elegia aos vivos


Lavamo-nos lado a lado
para nos encontrarmos

no mundo dizível
e, embalados até à percepção

habitamos a nossa paisagem
a curva

daquela cadeira drapeada
com a tua camisa

o meu copo de água
insuflado com ar durante a noite.

Depois desta cama
haverá uma outra

e assim rodamos
e continuamos a rodar

até que um de nós
rode sozinho e tente rodar

o outro de volta - um truque

que ninguém conseguiu, ainda -

e seria
como se eu te tivesse sonhado, querido, 

como se eu tivesse sonhado esta cama

os nossos membros tocando-se

este quarto, a árvore lá fora, viva
na luz recente e húmida.

Não agora. Não ainda.

KATHRYN SIMMONDS, traduzida por Maria Eu

quarta-feira, setembro 16, 2015

Notícias

(Maluda)

Era pela manhã que o Sr. Rodrigo passava no quiosque da Aninhas para comprar o jornal. Gostava de estar a par das notícias e o telejornal não lhe inspirava a mesma confiança que as letras de imprensa. Parecia-lhe sempre que os apresentadores tinham alguma na manga, sorrindo maliciosamente e, até, piscando o olho, como aquele que também escrevia livros de mais de duzentas páginas e a sua filha mais velha lia ao fim de semana. Notícias eram notícias, ora! Deviam ser dadas com seriedade! 
- Não acha, menina Aninhas, que na televisão brincam com as notícias?
- Se acho, Sr. Rodrigo! E é tão bom ler estas letras, assim alinhadas página a página, nas folhas do jornal. 
- Ai, também gosta de as ler assim? 
- Todos os dias, sem falta. Pego nos maços dos jornais, logo que chegam, pelas sete da manhã, corto o fio, e ainda antes que os arrume nas prateleiras é um fartar de ler notícias!
- Muito me alegra, menina! Muito me alegra!
E Rodrigo olhava, encantado, para o sorriso de Aninhas, como se a visse pela primeira vez. 

Foi no jornal da terra, como deve ser, que os vizinhos leram do desaparecimento Sr. Rodrigo, empregado do café Estrela, viúvo, de 65 anos, com três filhas e cinco netos,  e da Aninhas, empregada do quiosque Imprensa, solteira, de 30 anos. Passado um tempo, alguém trouxe a notícia que tinham montado uma gráfica e viviam felizes, juntos, no meio de páginas e páginas de letras alinhadas.


terça-feira, setembro 15, 2015

A arte de bem dizer

 
(Salvador Dalí, evocação de René Magritte)  

Havia alguma coisa em José que fazia com que Ana Maria não deixasse de pensar nele. Era o sorriso inesperado que abria as covinhas na face usualmente fechada, o levantar do sobrolho a uma interrogação, as mãos longas que desenhavam as palavras com gestos a um tempo enérgicos e suaves. E, depois, falava-lhe ao coração e à razão. Dizia-lhe dos livros, das viagens, dos sonhos e dos desejos. Era bom a dizer, o José, e Ana Maria gostava tanto de "dizeres"! Secretamente, gostava também do perfume que a inebriava quando o cumprimentava. Comprara um frasco dele e punha-o nos pulsos antes de se deitar. Dormia, assim, com José, ainda que ele o não soubesse.



segunda-feira, setembro 14, 2015

Sonho de fim de tarde

(Alex Colville)


Era ao fim da tarde que Manuela pegava no cesto branco, o enchia com a roupa acabada de retirar da máquina, e ia estendê-la no quintal. Era, também, ao fim da tarde, que metia no recanto mais fundo de si a vontade de esquecer a roupa suja, a máquina de lavar e o cesto vazios, e deixar-se levar pela música da telefonia numa dança que lhe desarrumasse o vestido de corte discreto e lhe despenteasse o cabelo sempre caprichado. Mas era só ao fim da tarde. Logo, a noite chegava.



sábado, setembro 12, 2015

Não te irei visitar

(Brenda Goodman)


Não te irei visitar.Estás em que piso? Dois? Recebes visitas, agora, ou já não? Corre-te nas veias soro com morfina. Não terás dores. Dormes, por certo. Irreconhecível, como quando vieste ao último funeral. Absurdo, não é? Encontrarmo-nos em funerais e, agora, saber que aguardo o teu... Não! Acho que não quererias que te visitasse agora. Não a ti, homem cordato, de sorriso aberto e olhar doce, mas a esse outro, inerte e pálido, adormecido numa qualquer cama de hospital. Dizem que morres. Para mim, não morrerás. Por isso, não, não te irei visitar.


quinta-feira, setembro 10, 2015

Entrega

(Marc Chagall)


Sabiam que o amor não era eterno. Tinham tropeçado nele, como se enredados no novelo de lã a ser dobado, pacientemente, pela mãe que a destina aos primeiros carapins do filho prometido. E é com a ternura, a luz, o enlevo de mãos amantíssimas que, a cada dia, se entregam um ao outro como se fosse, a um tempo, a primeira e a última vez.


Mulher num quarto de hotel






Edward Hopper Study: Hotel Room


While the man is away
telling his wife
about the red-corseted woman,
the woman waits
on the queen-sized bed.
You'd expect her quiet
in the fist of a copper
statue. Half her face,
a shade of golden meringue,
the other half, the dark
of cattails. Her mouth even—
too straight, as if she doubted
her made decision, the way
women do. In her hands,
a yellow letter creased,
like her hunched back.
Her dress limp on a green chair.
In front, a man's satchel
and briefcase. On a dresser,
a hat with a ceylon
feather. That is all
the artist left us with,
knowing we would turn
the woman's stone into ours,
a thirst for the self
in everything—even
in the sweet chinks
of mandarin.






Uma mulher loira, de corpete vermelho, senta-se na cama, lendo uma carta escrita em papel amarelo. No chão, um saco masculino. Será que ele partiu para sempre e a abandonou naquele quarto de hotel, atirando-lhe palavras de adeus? Ou apenas lhe diz que, não tarda nada, voltará para a abraçar? 

segunda-feira, setembro 07, 2015

Melro


(José Rosinhas)


Oficio a un melro

Eu comunícolhe a vostede, Senhor Melro,
que anda a cantar tan ben no silveiral:
e súa canción, souril e velha,
pon unha arela de luz no meu sentir.
É como si en mín nacera algún milagre
ou unha roseira inefabel me apampara
deixándome estantío.
É como si unha voz de anxo, tan acesa,
puxera no corazón tal senhardade.
Pro eu comunícolhe a vostede, Senhor Melro,
que non lhe diga a ninguén o seu cantar.
Vostede non ten licencia da Academia
e non se pode cantar sin máis nin máis.

Manuel Maria (F. Teixeiro), in 99 poemas





É que não se pode cantar assim tão bem, despertar uma repentina vontade de dançar, de abraçar, de beijar. Que me oiça, Sr. Melro, não se pode!

sexta-feira, setembro 04, 2015

Gaivota



Ana Maria caminhava devagar, apreciando o calor tépido do entardecer. O passeio largo, onde as palmeiras se descabelavam ao vento Norte, convidava a passos tranquilos e o mar, espraiando-se em sucessivas vagas de um azul claríssimo, quase galgava o paredão, embranquecendo-o de espuma. Subiu o caminho que leva ao farol com um sorriso nos lábios. Tinha sido ali, há alguns anos, que Júlio lhe passara os braços pelos ombros desprevenidos, a puxara de encontro ao peito e lhe chamara gaivota. 
Talvez por isso, não resistia a embriagar-se de mar e a deixar-se voar com as gaivotas, quem sabe em viagem até Júlio.