quinta-feira, abril 25, 2024

Cravo

 

(imagem daqui)


Era menina quando lhe floriu um cravo vermelho no peito. Era Abril.


(Sérgio Godinho - A Barca dos Amantes)

quinta-feira, abril 18, 2024

Siêncio

(Vilhelm Hammershøi)

Houve um tempo de silêncio. Não se sabe como se perderam as palavras, mas fora de repente. A rapariga apaixonada não foi capaz de dizer do seu amor, o homem da mercearia deixou de enunciar as maravilhosas especiarias chegadas de Marrocos, nas escolas não mais se ouviram algarviadas de meninos.

Foram os pássaros que, estranhando a mudez, iniciaram a época dos gorjeios permanentes. Dia e noite, excediam-se em melodias extraordinárias, como que a lembrar da beleza da voz.

Primeiro, apenas as criaturas aladas se fizeram ouvir (diz-se que eram anjos disfarçados de pássaros), mas ao longo dos dias e noites, pouco a pouco, começaram as palavras ditas em surdina pelos amantes, logo as crianças se apressaram a desenrolar pequenas frases em reposta aos incentivos dos pais e, não tardou nada a ser um novo tempo, o tempo das palavras ditas.



(Something Not Right - Glen Alfred)

quinta-feira, março 28, 2024

Cicatrizes

 

(Henri Rousseau)

Desde pequena que tinha aquele hábito. Fechava-se no quarto, persianas corridas, a ver no escuro.

Menina. O que tanto vês no escuro? Perguntava-lhe a mãe.

Tanta coisa! Tudo o que eu quiser!

Era no escuro que sentia o corpo mais vivo. Ontem, as veias a latejarem de sangue jovem e quente. Hoje, a evidência da idade nas cicatrizes que lhe marcam a pele.

Quedam-se-lhe as mãos no baixo ventre, onde uma une as virilhas, logo se encontrando com duas mais pequenas, simétricas, um pouco abaixo. Não são as únicas testemunhas da frieza do bisturi. Um pulso, um pé… E ainda as marcas de quedas nos joelhos.

Há ainda uma, a mais recôndita e importante de todas, irregular, por vezes dolorosa, traço primeiro de uma vida a rasgar caminho, portal para o mundo de todas as dores e todos os prazeres.


(Mei-Lan, Eternal Soul)

segunda-feira, fevereiro 19, 2024

Perda

 


Tinha 18 anos quando João morrera. Não sabia ainda da dor da perda física e de como se estranhava, atingindo o peito como uma bala explosiva, causadora de ferimento maior. 

Fora logo pela manhã. Tinha acabado de se sentar na cozinha, o café com leite quente, na chávena de flores da Vó Zira, ainda intocado. A Tia Manecas dizia palavras cinzentas na manhã clara e nada as podia fazer voltar atrás! 

Demorou a acreditar na mensageira de tamanha desgraça. Ainda Domingo o calor das mãos dele, do João, do seu João, tinha aquecido as suas, subrepticiamente, no final da missa. Nem um beijo sequer haviam trocado. 

Tinha 18 anos e julgou nunca mais amar. 


(Cigarretes After Sex - Cry)