segunda-feira, julho 22, 2024

Tempo de flores

 


Era um tempo de flores. Não daquelas que enchiam de cor os canteiros do jardim da casa da sua mãe, nem tampouco das que rompiam nos lugares mais imprevistos, como os muros dos caminhos da aldeia onde crescera. Essas eram sempre perfumadas, algumas, até, intoxicantes, de tão intenso o perfume.

Das que falo, as deste tempo, veem em ramos. Lindas, perfeitas, nem um pé mais torcido, ou uma pétala com o traço característico de um caminho feito pela pequena lagarta verde.

Cumprem o seu propósito, seja de amor ou dor, sempre iguais, sem que a ocasião lhes desmanche a perfeição quase como se fossem artificiais.

 

(Cabaret de Luxe - Le Temps des Fleurs)

sexta-feira, junho 21, 2024

Etelvina

 

Fora num dia gélido, ao rasgar de um raio e ribombar de um trovão que Etelvina viera ao mundo. A mãe, mulher da vida nocturna, esvaíra-se em sangue na esquina da rua onde lhe rebentaram as águas e foi um engraxador de sapatos ambulante que lhe cortou o cordão umbilical com a faca de raspar as solas dos sapatos. Levou-a com ele, embrulhada num trapo sujo de graxa. Não tivera mulher nem filhos e agora decidira criar aquele nico de gente que berrava por quantas tinha.

A Sra. Bina, vizinha de sempre, prometeu ajudá-lo. Afinal, também nunca tivera nos braços uma cria sua.

                                                        (imagem daqui)

Etelvina cresceu à míngua e tinha no olhar, azul escuro, um mar revolto. Diziam os poucos que a provocaram que tinha uma faca nos dentes.

Quando ficou sozinha, quedava-se no casebre do sapateiro durante o dia e saía de noite para rondar os caixotes de lixo dos restaurantes à beira rio. Sempre arranjava algum resto de boa comida para matar a fome.

Um dia, deu com Simão, apanhador de ameijoa no Tejo, homem de poucas falas e faca nos dentes e juntaram as suas solidões, facas largadas no chão de uma viela esconsa.


                                            (Etelvina - Sérgio Godinho)

quinta-feira, abril 25, 2024

Cravo




Era menina quando lhe floriu um cravo vermelho no peito. Era Abril.


(Sérgio Godinho - A Barca dos Amantes)

quinta-feira, abril 18, 2024

Silêncio

(Vilhelm Hammershøi)

Houve um tempo de silêncio. Não se sabe como se perderam as palavras, mas fora de repente. A rapariga apaixonada não foi capaz de dizer do seu amor, o homem da mercearia deixou de enunciar as maravilhosas especiarias chegadas de Marrocos, nas escolas não mais se ouviram algarviadas de meninos.

Foram os pássaros que, estranhando a mudez, iniciaram a época dos gorjeios permanentes. Dia e noite, excediam-se em melodias extraordinárias, como que a lembrar da beleza da voz.

Primeiro, apenas as criaturas aladas se fizeram ouvir (diz-se que eram anjos disfarçados de pássaros), mas ao longo dos dias e noites, pouco a pouco, começaram as palavras ditas em surdina pelos amantes, logo as crianças se apressaram a desenrolar pequenas frases em reposta aos incentivos dos pais e, não tardou nada a ser um novo tempo, o tempo das palavras ditas.



(Something Not Right - Glen Alfred)

quinta-feira, março 28, 2024

Cicatrizes

 

(Henri Rousseau)

Desde pequena que tinha aquele hábito. Fechava-se no quarto, persianas corridas, a ver no escuro.

Menina. O que tanto vês no escuro? Perguntava-lhe a mãe.

Tanta coisa! Tudo o que eu quiser!

Era no escuro que sentia o corpo mais vivo. Ontem, as veias a latejarem de sangue jovem e quente. Hoje, a evidência da idade nas cicatrizes que lhe marcam a pele.

Quedam-se-lhe as mãos no baixo ventre, onde uma une as virilhas, logo se encontrando com duas mais pequenas, simétricas, um pouco abaixo. Não são as únicas testemunhas da frieza do bisturi. Um pulso, um pé… E ainda as marcas de quedas nos joelhos.

Há ainda uma, a mais recôndita e importante de todas, irregular, por vezes dolorosa, traço primeiro de uma vida a rasgar caminho, portal para o mundo de todas as dores e todos os prazeres.


(Mei-Lan, Eternal Soul)

segunda-feira, fevereiro 19, 2024

Perda

 


Tinha 18 anos quando João morrera. Não sabia ainda da dor da perda física e de como se estranhava, atingindo o peito como uma bala explosiva, causadora de ferimento maior. 

Fora logo pela manhã. Tinha acabado de se sentar na cozinha, o café com leite quente, na chávena de flores da Vó Zira, ainda intocado. A Tia Manecas dizia palavras cinzentas na manhã clara e nada as podia fazer voltar atrás! 

Demorou a acreditar na mensageira de tamanha desgraça. Ainda Domingo o calor das mãos dele, do João, do seu João, tinha aquecido as suas, subrepticiamente, no final da missa. Nem um beijo sequer haviam trocado. 

Tinha 18 anos e julgou nunca mais amar. 


(Cigarretes After Sex - Cry)