segunda-feira, junho 30, 2014

Entrega

Despi-me toda:
dos dedos ao ventre,
da minha pele à tua,
do meu pulsar à tua mão.
Estendi-me,
a oferenda dos deuses:
palpitante, morna,
balbuciando segredos.
E puseste as mãos
em concha, como ninhos,
e sentiste o fogo
e fechaste os olhos.
A luz brilhante cega
quando não a esperamos.


Lourdes Espínola



(Simone Lipschitz)

Nas tuas mãos palpita, quente, a minha carne rósea. Nos meus olhos afundam-se, acerados, os teus olhos. A ti me ofereço, grávida de ternura e de desejo. Toma-me assim, inteira, e antes de partires colhe dos meus lábios o rubro ardor de um beijo.

 

domingo, junho 29, 2014

Sei que é Verão mas não consigo esquecer-me do Inverno

Havia o peso dos cobertores da serra que parecia esmagar-nos a cada movimento, nos Invernos sempre frios. Custava, mesmo, entrar na cama para despir as últimas peças de roupa sem tiritar, até sentir o calor do pijama de flanela acabado de desenrolar da botija de estanho (mais tarde substituída por uma de borracha que dava, imagine-se, para abraçar). Às vezes, a mãe tardava em vir apagar a luz (tardar significava vir "só" pelas 10 horas da noite) e ficava ali, de barriga para cima, apenas com a testa e os olhos de fora da roupa da cama, a olhar o tecto onde umas sombras de humidade desenhavam sombras que podiam parecer fantasmas, cavaleiros, castelos, ... 

(Sándor Mulaj)

O edredon é leve e o ar condicionado nem permite que haja pijama, quanto mais botija. Entro na cama e os braços nus ficam por fora da roupa. É tarde, uma da manhã.  Esqueço-me de apagar a luz. Fico deitada, de barriga para cima, a olhar o tecto imaculadamente branco, sem fantasmas, nem cavaleiros, nem castelos, ... 
"Saudades de quando vinhas apagar a luz, mãe!"



sexta-feira, junho 27, 2014

Marge Simpson, a Diva do cabelo azul!


Marge Simpson, sexy como nunca, foi retratada nos desenhos deliciosos do ilustrador AleXsandro Palombo, tendo como inspiração fotografias famosas.









quinta-feira, junho 26, 2014

Dos sonhos prosaicos


(Sebastião Salgado)

"(...) Quando, à primeira luz da manhã, o canto dos pássaros me despertava, ele já não estava ali (o avô), tinha saído para o campo com os seus animais, deixando-me a dormir. Então levantava-me, dobrava a manta e, descalço (na aldeia andei sempre descalço até aos 14 anos), ainda com palhas agarradas ao cabelo, passava da parte cultivada do quintal para a outra onde se encontravam as pocilgas, ao lado da casa. Minha avó, já a pé antes do meu avô, punha-me na frente uma grande tigela de café com pedaços de pão e perguntava-me se tinha dormido bem. Se eu lhe contava algum mau sonho nascido das histórias do avô, ela sempre me tranquilizava: "Não faças caso, em sonhos não há firmeza". Pensava então que a minha avó, embora fosse também uma mulher muito sábia, não alcançava as alturas do meu avô, esse que, deitado debaixo da figueira, tendo ao lado o neto José, era capaz de pôr o universo em movimento apenas com duas palavras. Foi só muitos anos depois, quando o meu avô já se tinha ido deste mundo e eu era um homem feito, que vim a compreender que a avó, afinal, também acreditava em sonhos. Outra coisa não poderia significar que, estando ela sentada, uma noite, à porta da sua pobre casa, onde então vivia sozinha, a olhar as estrelas maiores e menores por cima da sua cabeça, tivesse dito estas palavras: "O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer". Não disse medo de morrer, disse pena de morrer, como se a vida de pesado e contínuo trabalho que tinha sido a sua estivesse, naquele momento quase final, a receber a graça de uma suprema e derradeira despedida, a consolação da beleza revelada.(...)"

Extracto do Discurso de José Saramago na Academia Sueca



Não há quem não sonhe. Podem, até, ser sonhos que nos pareçam prosaicos, como ir a Lisboa ver os jacarandás em flor, ou passear de mãos dadas junto ao Tejo. Podem, mesmo, não passar de sonhos como ter um dia seguinte mais claro, ou comer uma sopa de peixe. 
Não há quem não tenha sonhos, ainda que prosaicos.

domingo, junho 22, 2014

Em branco



 (Kazimir Malevitch)

Por uns dias, penduro nesta casa um quadrado branco sobre fundo branco.Carregado de sentido(s), como o imaginou Malevitch.




sábado, junho 21, 2014

Modernidade



(Grace Cossington Smith)


Como se Morre de Velhice 
  
Como se morre de velhice
ou de acidente ou de doença,
morro, Senhor, de indiferença.

Da indiferença deste mundo
onde o que se sente e se pensa
não tem eco, na ausência imensa.

Na ausência, areia movediça
onde se escreve igual sentença
para o que é vencido e o que vença.

Salva-me, Senhor, do horizonte
sem estímulo ou recompensa
onde o amor equivale à ofensa.

De boca amarga e de alma triste
sinto a minha própria presença
num céu de loucura suspensa.

(Já não se morre de velhice
nem de acidente nem de doença,
mas, Senhor, só de indiferença.)


Cecília Meireles, in 'Poemas (1957)'



 

sexta-feira, junho 20, 2014

(Des)atar



 (Elena & Vitaliy Vasilievy)

"Sou mais de nós do que de laços. Depois de feitos, é-me difícil desatá-los." disse-lhe.
"Não faz mal, eu sou muito bom com nós."  respondeu-lhe.
E Clara não entendeu se ele era bom a lidar com nós bem feitos ou se era bom a desatá-los.



quinta-feira, junho 19, 2014

Sei das coisas nada sabendo delas


 

 (Gustav Klimt)

Não sou jovem. Também não sou velha.
Tenho a idade da experiência. E somente sei
que tenho bastante idade para o
reconhecimento da dor e da alegria e
para saber quando partem os pássaros na vez definitiva
no seu ciclo de migração.
Reconheço o uivo do poder a ganância do dinheiro
e sei dos rios que secam no seu leito de pedras.
Sei da volatilidade das palavras nos discursos acesos
assentes em premonição e tragédia. Mas não sei
da coragem corporal de palavras e gestos
nem de fontes gotejando pérolas.


Bernardete Costa



Sim, sei das coisas. Sei que a vida é um conjunto de dias desiguais onde nada é certo. Sei, ainda, que a certeza das coisas não é condição para a felicidade.

Asfixia




 (© Romina Ressia, Argentina)

Há um mapa da sua vida em cima da mesa. Observa cuidadosamente cada relevo, cada depressão. Um ponto ridiculamente pequeno move-se aleatoriamente em escaladas e descidas. Segue-o com o dedo. Irritante, este incessante movimento num mapa que, supostamente, lhe pertence... Estica o indicador e, de um golpe, atinge-o!
Uma dor súbita no peito! Uma asfixia! O ponto?! Não se reconhecera nele...


quarta-feira, junho 18, 2014

Mandei-te um postal

(Dorothee Golz)

Mandei-te um postal com um poema escrito
  
Mandei-te um poema escrito num postal.
Um postal ilustrado, de um qualquer museu.
Seria um Renoir? Seria um Chagal?
Sei que o mandei e que era bonito. 
Mandei-te um postal mas não respondeste. 
Será porque ainda o não recebeste? 
Ou será apenas porque não quiseste?


 

terça-feira, junho 17, 2014

Geminação

(© Dori Caspi)


Desossaste-me
cuidadosamente
inscrevendo-me
no teu universo
como uma ferida
uma prótese perfeita
maldita necessária
conduziste todas as minhas veias
para que desaguassem
nas tuas
sem remédio
meio pulmão respira em ti
o outro, que me lembre
mal existe
Hoje levantei-me cedo
pintei de tacula* e água fria
o corpo aceso
não bato a manteiga
não ponho o cinto
VOU
para o sul saltar o cercado

Ana Paula Tavares

* Tacula: árvore africana com veios carmesim brilhante, usada para fazer tintos. Alguma tribos africanas, nomeadamente angolanas, pintam o corpo com uma tinta que fazem a partir dela.


Existo. Faço-me uma a cada dia com metade de mim. Inteira e dividida. Vejo o rio mesmo que o não veja. Respiro aqui e aí. Meio pulmão enxertado no teu. 

domingo, junho 15, 2014

Poder



 (Erwan Soyer)

Era o tempo da terra seca, do cheiro intenso a queimado. Cigarras cantavam tresloucadas e os pássaros esvoaçavam entontecidos, de ramo em ramo, sem ficarem pousados em sossego, debaixo do sol tórrido desse Verão dos Trópicos. 
Havia, decerto, um oásis mas não se descortinava onde. Quando o sol endurece, nem os mais fortes resistem à sede, muito menos a um fazedor de chuva...



sábado, junho 14, 2014

Coisas da Maria II


A Maria não consegue ser frugal. Há nela uma voracidade pelas coisas todas, não só pelo pão quente pela manhã ou pelos figos que colhe da árvore do quintal, mas também pelas palavras que lhe entram olhos adentro nos livros ou pelas coisas que aprende a cada dia.
A Maria não consegue ser discreta. Pode tentar mas há aquela gargalhada que lhe escapa da garganta ou a voz que se levanta à discordância, à revolta...
A Maria não consegue ser fria. Transborda sentimento no olhar, no toque. Treme quando ama e quando odeia.
A Maria aprende muito e nunca aprende nada.



sexta-feira, junho 13, 2014

Do desejo terno


(João Werner)

Falarei menos que um peixe, amor,
das líquidas emoções ou desejo serpenteado
sobre o que começa junto às rotas umbilicais.
Não me procures no rumo do vento
no cansaço da lua asfixiante, no mistério
ritmo da noite voltada para disponibilidade
de um sexo tecido de felicidade.
Diz-me com ternura imensa, a dor profana
a finitude do prazer de te descobrir
procuradamente na suavidade duma errância
com que te inicio no embrulho do teu calor
langoroso.
É um orvalho matinal que te rega
um suspiro húmido com sabor a algas
dos teus seios fugidios, ardente abandono
lascivo amanhecer.
Na carta que sustenta este ardor
sôfrego desejo me embala a fadiga
de te possuir com secreta evasão,
sentida excitação de me deixar aprisionar
no excesso fantasmagórico da sublimação
primitiva da vida e do amor que germina.


Américo Teixeira Moreira, O corpo restituído



No aveludado da pele se perdem as mãos, no prazer infinito de te conhecer, na ânsia de fazer da tua pele a minha pele.

Como manter uma ferida

(Michelle Hold)

Ponha-se o dedo na ferida
aberta e viva
Salgue-se, depois, em fresca
sangrenta e dolorosa
Não se deixe fechar
deformante e inflamada

Cuide-se a ferida para que não cicatrize.


quarta-feira, junho 11, 2014

Fogo de artifício



(Retirada da internet - fogo de artifício em festa popular)


É lindo, o fogo de artifício das festas de Verão. Pode iluminar os céus numa panóplia de cores, pode, até, ser rastilho de incêndios ocasionais... mas é apenas temporário.
 

De como as crianças olham as histórias

(John Singer Sargent - Perseus and Andromeda)


"(…) recordei uma história que meu pai lia para mim, de um tal Perseu que matou a Gordona, uma bruxa horrível e gorda, toda enroscada em serpentes, mas antes chegou uma deusa linda, alta e loira, de cinema, e perguntou se ele topava dar uma de herói e talvez morrer jovem, ou se preferia viver bastante e feliz como um bosta qualquer, e ele disse que topava, e ela deu a ele uma espada, um escudo e umas sandálias com asas, isso era o que eu mais gostava, as sandálias que voavam (…)"

Ettori Bottini, in Uns Contos




Como pode uma criança resistir a uma deusa com ar de estrela de cinema e que, para além do mais, ofertava umas sandálias voadoras?

terça-feira, junho 10, 2014

Subitamente


Fragmentos


Desde a obscuridade
de tudo que tudo
é inocente. Nunca se pode ver a noite toda de súbito.

Herberto Helder




 (© Yusuke Sakai, Japan)

Nada se pode ver de súbito. Nem a luz. 

 

domingo, junho 08, 2014

Porque haverias de querer a minha alma na tua cama?

(Willem de Kooning)

E por que haverias de querer… 

E por que haverias de querer minha alma
Na tua cama?
Disse palavras líquidas, deleitosas, ásperas
Obscenas, porque era assim que gostávamos.
Mas não menti gozo prazer lascívia
Nem omiti que a alma está além, buscando
Aquele Outro. E te repito: por que haverias
De querer minha alma na tua cama?
Jubila-te da memória de coitos e de acertos.
Ou tenta-me de novo. Obriga-me.



(Hilda Hilst)



"Viste-me, há pouco, a alma?" perguntou-lhe, no abraço depois do amor.
"Não te procuro a alma quando te tenho na cama!" respondeu, sem ver o halo que pairava sobre ambos reflectido nos olhos dela.

Voo com gaivota



(Jay Maisel)


Clara gostava de coisas simples. Bastava-lhe o sol na pele e os pés descalços na areia. Por Luís deixou de ir à praia e calçou tacões em ruas sinuosas de cidades, em salões de festa onde a luz do sol se perdia nos cortinados de veludo. Sorria sempre, Clara, apesar dos pés apertados nos sapatos elegantes e da falta que o sol lhe fazia. Um dia, depois de mais um brinde com champanhe, numa vernissage de inauguração de um hotel de luxo, bem no topo de uma torre no Algarve, abeirou-se da varanda por detrás do reposteiro vermelho, abriu a porta, olhou as gaivotas, descalçou-se e voou.
(Diz-se que uma gaivota a acompanhou no voo e que desapareceram juntas, no horizonte, rasando o mar azul.)


sábado, junho 07, 2014

A árvore



 (Ria Kooistra)

Mostra agora as raízes fortes, longas. Descarnada da terra onde se agarrava desde há longo tempo, começou por inclinar-se para logo cair, em desamparo, no chão. Como que por milagre, continuou viva, a seiva a correr-lhe nos veios com uma força inusitada. Foi no início de Junho que folhas tenras lhe explodiram nos ramos e um pássaro veio aninhar-se neles, trinando. Era quase Verão mas, para ela, apenas começava a Primavera.



sexta-feira, junho 06, 2014

Efemérides


(Robert Capa durante o desembarque na Normandia)

Lembrar o desembarque na Normandia de 6 de Junho de 1944, hoje, não seria possível sem Robert Capa (nascido Endre Friedmann), o fotógrafo Húngaro da Life Magazine que acompanhou as tropas e registou esses momentos. Capa é "O" fotógrafo de guerra. A sua máquina fez milhares de cliques sob saraivadas de balas, explosões de bombas e morteiros, gritos de desespero e de vitória. Morreu em 1954, no Vietname, aos 40 anos, vítima da explosão de uma mina terrestre, durante a Guerra da Indochina. Nas mãos, a máquina fotográfica.

Se as fotografias não são suficientemente boas, é porque não se está suficientemente perto." Robert Capa




quinta-feira, junho 05, 2014

Afirmação


(Mariano Couso)



Um dia, arranco o coração do peito, meto-o numa caixa e atiro-o ao mar.
 

Dança


E                                                
  S                  D
    V             N   
      O         A
         A    Ç
          
 (Robert Doisneau)
             
E                      O
  S                  D
    V             N   
             A
         A    Ç
          
                   


quarta-feira, junho 04, 2014

Entrega


(Helena Santos - Love/Life)

Entras em mim descalça, vulnerável
como um alvo próximo, ferida
nos joelhos e nas coxas. Pelo tacto
nos conhecemos, é essa luz
oblíqua que nos cega. E te pertenço
e me pertences como
a lâmina
à bainha, a chama
ao pavio.

(...)

Albano Martins




A ti me entrego, trémula e nua
sangue em borbotões, abismo,
procuro o gume da espada. Das mãos 
surgimos outros, transformamo-nos
nelas, vibrantes. És, agora,
a palavra  que me habita...

Maria Eu





segunda-feira, junho 02, 2014

Protegei-me de mim

(© Maria Pleshkova, Russia)

"Há uma lei secreta e para mim incompreensível: só através do sofrimento se encontra a felicidade. Tenho medo de mim pois sou sempre apta a poder sofrer. Se eu não me amar estarei perdida — porque ninguém me ama a ponto de ser eu, de me ser. Tenho que me querer para dar alguma coisa a mim. Tenho que valer alguma coisa? Oh protegei-me de mim mesma, que me persigo."

Clarice Lispector 



Preciso gostar de mim. Preciso gostar de mim. Preciso gostar de mim. Preciso gostar de mim.Preciso gostar de mim.

Terna é a noite


 (Gérard Schlosser)


Visto-me depressa para que me dispas devagar.