domingo, agosto 31, 2014

Galope


(Wojtek Kwiatkowski )  

Quero um cavalo de várias cores,
Quero-o depressa, que vou partir.
Esperam-me prados com tantas flores,
Que só cavalos de várias cores
Podem servir.

Quero uma sela feita de restos
Dalguma nuvem que ande no céu.
Quero-a evasiva - nimbos e cerros -
Sobre os valados, sobre os aterros,
Que o mundo é meu.

Quero que as rédeas façam prodígios:
Voa, cavalo, galopa mais,
Trepa às camadas do céu sem fundo,
Rumo àquele ponto, exterior ao mundo,
Para onde tendem as catedrais.

Deixem que eu parta, agora, já,
Antes que murchem todas as flores.
Tenho a loucura, sei o caminho,
Mas como posso partir sozinho
Sem um cavalo de várias cores?


Reinaldo Ferreira




Será que 'inda é cedo?
Será que é já tarde?
Dai-me o meu cavalo
Talhado em jade

Deixai-me montá-lo
Que lhe crave esporas
Que me leve célere
A um campo de amoras

Que não pare agora
E parta a galope
Que só se detenha
Ao raiar da aurora

Pois é a essa hora
Que tu chegarás
E à primeira luz
Me resgatarás

Será que é mentira?
Será que é verdade?
Será que galopa,
Um cavalo de jade?

Maria Eu

Nostalgia


(Ana Barros - flores da praia de Esposende)




 
Rescendem a flores, as memórias. Ao tempo em que o Verão entrava pelos nossos olhos adentro  na areia de uma praia cheia de luz, quando ainda havia gaivotas na polpa dos dedos. Eram as horas da languidez absurda da ternura e da cegueira absoluta da paixão. Era o tempo dos dias felizes.



 

sábado, agosto 30, 2014

O meu amor


(Tibor Gyenis - Hommage á Ana Mendieta -1999)

Quando penso nele, nas suas mãos, percebo a beleza dos troncos de árvore e porque se erguem em direcção ao céu, percebo o dia e a noite.
Quando me beija e a sua boca devora a minha, percebo de que são feitas as mais exóticas especiarias.
Quando penso nele, percebo a cupidez de um pêssego.
Quando penso nos seus olhos percebo o olhar de um felino e quantas cores tem a paixão.
Quando penso nele não há tempo porque ele é intemporal.
Quando penso nos seus braços percebo a macieza, a doçura e a força de um abraço.
Quando penso no seu corpo percebo a beleza do mármore e o brilho do rubi. Quando penso na sua pele percebo o cheiro do Verão.
Quando penso nas suas coxas, no seu sexo, entendo o som, a dureza, a espuma das ondas do mar.
Ele é a minha força, o meu refúgio. Tigre na forma de homem, na forma de desejo, dos sabores de ontem, de hoje e de amanhã.
Quando penso nele não há mais nada, nem a palavra. 
Maria Eu 


sexta-feira, agosto 29, 2014

De como a sombra não existe sem a luz

 (Mark Kostabi - Irony is my shadow)

Haicais de Carlos Seabra

velha na fonte
os cântaros se enchem
o sol se esconde

espiral de sol
luz nas frestas
da escada em caracol

sol na varanda
sombras ao entardecer
brincam de ciranda




"Poetry is an echo, asking a shadow to dance." Carl Sandburg
"A poesia é um eco convidando uma sombra para dançar.

quinta-feira, agosto 28, 2014

Chagall e o Fantasma da Ópera de Paris

(imagem retirada daqui)

Quando se entra no Palácio Garnier, em Paris, certamente atraídos por um espectáculo, pode dar-se o caso de não prestarmos atenção a todos os detalhes do magnífico edifício, nomeadamente às pinturas do tecto. Fundado por Luís XIV em 1669 para albergar a Ópera de Paris merece que olhemos, de nariz literalmente no ar, para a maravilhosa pintura de Marc Chagall. De um detalhe meticuloso, para além de imagens diversas de Paris, retrata espectáculos de ópera de catorze compositores – Moussorgsky, Mozart, Wagner, Berlioz, Rameau, Debussy, Ravel, Stravinsky, Tchaikovsky, Adam, Bizet, Verdi, Beethoven, e Gluck.
Sendo o romance de Gaston Leroux, O fantasma da Ópera, a obra que mais leva o público a sorrir à lembrança desta imponente construção, supostamente edificada sobre um lago subterrâneo onde muitas das cenas se desenrolam, Chagall terá o privilégio de partilhar desse sorriso, basta que se olhe para um plano um pouco acima do habitual.

quarta-feira, agosto 27, 2014

Pobres


(Fernando Botero)

Ainda ontem fazia exercícios de mulher informada e pretensamente desligada, a comentar uma crónica do Miguel Esteves Cardoso (eu sei que podia escrever MEC mas detesto usar iniciais) sobre a pobreza. Pois que nem dou esmolas na rua, dizia eu, mas quando dava não ia dizer ao pobre que fosse gastar bem o dinheiro, ou o obrigava a sentar-se comigo na mesa do café para que comesse aquilo que eu entendesse dar-lhe. O pobre tem o direito de gastar a esmola conforme decidir.
Hoje, imprevistamente, uma voz familiar num corpo com uma cara menos familiar pediu: Dra., não me pode dar uns trocos? Acenei que não, com a cabeça. O corpo e a cara ficaram ali, na minha frente, a rapariga dona deles sentou-se no muro baixo do jardim, bem rente à cadeira vazia da mesa do café, fixando-me. Olhei-a. Primeiro de relance, depois de frente, estremecendo. A Ana tinha apenas a mesma cor dourada na pele, embora a da cara já não o seja. O cabelo loiro e suave desapareceu para dar lugar a uma cabeça rapada. O sorriso aberto deu lugar a um esgar que mostra falta de dentes. Tirei o porta-moedas da carteira e dei-lhe os trocos que tinha. Sem reflectir, dei por mim a dizer-lhe, enquanto ela ensaiava um agradecimento e metia as moedas no bolso: Agora vê lá se o gastas com juízo, rapariga!
Porra, que fiquei a limpar as lágrimas por detrás dos óculos de sol enquanto a via correr sei lá com que destino!



Citação integral da "Mãe Preocupada"

 
(Daniel Calder)

"Esse amor

Ponho-me às vezes a pensar que talvez possa estar enganada e o amor seja, afinal, esse absurdo de que falam os poetas. O desassossego do sono, as arritmias do tempo, a intermitência da febre. Suor frio, prostração, espanto, urgência, desacato. Crença absoluta em mais um desses deuses que tudo prometem e nada cumprem, os seus olhos são cheios de misericórdia e as suas vestes são brilho magnético e os seus braços um acolhimento que nunca sossega, antes pede, cobra, manda ajoelhar para confissão e penitência. Em seu nome tudo é consentido. Acredita. Acredita, cego e mudo, e o paraíso que nos momentos de êxtase se vislumbra há de um dia ser real e eterno.
Se os poetas não dizem a verdade sobre o amor, quem haveria de a dizer?"
Depois destas palavras, só me resta o silêncio.  O silêncio e Chet Baker...



terça-feira, agosto 26, 2014

Coração partido?

(Edvard Munch)



A melhor amante


(Retrato de Madre Paula, do ábum de Boião de Cultura)

Paula Teresa da Silva e Almeida nem imaginava que, ao entrar no convento de Odivelas com a tenra idade de 17 anos, iria atrair a cobiça do rei D. João V
Dona de uma considerável beleza, começou por aquecer a cama do Conde de Vimioso, também Marquês de Valenças. Porém, o rei D. João V, mal lhe pôs a vista em cima, logo abandonou a outra freira que o consolava em Odivelas para ordenar ao Conde que deixasse Paula para si.

A jovem freira, mais nova para cima de trinta anos do que o régio amante, era tão meiga e solícita na cama que se tornou na favorita, ascendendo a Madre e vendo-se dona de uma considerável soma mensal, luxuosos aposentos e protecção de toda a espécie para a sua família. 
Destes amores ardentes (consta-se que o rei não resistia a visitas quase diárias) nasceu José, o mais jovem dos "Meninos de Palhavã", assim nomeado por ter sido criado e educado neste palácio, bem como os outros filhos bastardos reconhecidos do rei, que viria a ser inquisidor-geral. (Pergunto-me a que torturas condenaria pai e mãe pelas loucuras de alcova, caso os pudesse julgar?)
Muitos nobres passaram a inclinar-se perante Madre Paula que conseguia de D. João V o que outros jamais seriam capazes.
Saramago, no Memorial do Convento, põe a seguinte descrição de Paula nos lábios do rei: "flor de claustro perfumada de incenso, carne gloriosa".
Imagino o rei que amou a música a deleitar-se com Paula, num banho tomado na banheira de prata maciça que lhe ofereceu, enquanto se ouviam os acordes das composições de Carlos Seixas...




* este post inspirou-se num outro, de Ana Porfírio, no seu Boião de Cultura.

segunda-feira, agosto 25, 2014

O tempo dos morangos

Morangos  

No começo do amor, quando as cidades
nos eram desconhecidas, de que nos serviria
a certeza da morte se podíamos correr
de ponta a ponta a veia eléctrica da noite
e acabar na praia a comer morangos
ao amanhecer? Diziam-nos que tínhamos

a vida inteira pela frente. Mas, amigos,
como pudemos pensar que seria assim
para sempre? Ou que a música e o desejo
nos conduziriam de estação em estação
até ao pleno futuro que julgávamos

merecer? Afinal, o futuro era isto.
Não estamos mais sábios, não temos
melhores razões. Na viagem necessária
para o escuro, o amor é um passageiro
ocasional e difícil. E a partir de certa altura
todas as cidades se parecem.


Rui Pires Cabral, in 'Longe da Aldeia'



 
(Roxanne Grooms)


Perto da luz das estrelas, na aldeia onde a escuridão se iluminava de pontos brilhantes no céu, nem a ideia da morte nos assombrava. Morangos? Comiam-se ali mesmo, apanhados frescos das morangueiras acabadas de regar. O amor parecia fácil. Não havia porque apanhar o eléctrico já que o futuro era o agora.


sábado, agosto 23, 2014

Nos (a)braços

(Serge Strosberg)


Prendes-me sem laços.
E quando cativa nos teus braços,
Sou livre,
Senhora de mim.
A liberdade está no espaço criado pelos teus braços
Formando um abraço.
Saudade é prisão que me prende,
Em laços sem braços,
Espaços ausentes de ti.


Encandescente, Bestiário



É, afinal, nos (a)braços que reside a liberdade.

quinta-feira, agosto 21, 2014

Vento



 (Bannon Fu)

Levantou-se um pequeno furacão por aqui. A Lena teve que correr porta fora para apanhar a roupa que parecia querer ser arrancada pelo vento para perseguir as folhas e as pétalas de flores que rodopiavam, numa dança incessante e meio louca.Não houve como travar a blusa vermelha. Seguiu , esbracejante, numa coreografia intensa, parecendo uma bailarina moderna a estrelar um bailado importante num teatro de primeira água.




Míope mas pouco

 (Jorge Martins – Harém míope, 1969)

"O que é a miopia?

Vulgarmente também designada de visão curta ou vista curta (...)"

Em 2013, no dia 2 de Dezembro, a Ana era míope no meu blog. Em Julho de 2014, a Ana foi crismada e mudou de nome para Maria, embora continue míope e tenha a mesma imagem. 
Uma honra, ser plagiada por quem plagia a Mãe Preocupada, entre outros bloggers de extrema qualidade. 

terça-feira, agosto 19, 2014

A cor do querer



 (Jalil El Harrar)

Sei qual é cor em que prefere calçar-se.
Sei qual é a cor em que prefere vestir-se.

Porém, caminhar não é o mesmo que dormir
e usar não é o mesmo que acordar.

Portanto perguntei-lhe: qual é a tua cor preferida para dormir,
qual é a tua cor preferida para acordar?

A cor dos teus olhos, respondeu-me. A cor da tua pele.
Não fui à procura. Não necessito de andar à procura para saber que

não existe nenhuma loja que venda edredões nessas cores.
Não há outra solução a não ser dormir

com ele para sempre.

Tjiske Jansen, traduzida por Maria Leonor Raven-Gomes



Dou-te a minha pele e os meus olhos enquanto neles vires a cor do teu querer.

Maracujás



Olho pela janela e o azul do céu cega-me de luz apesar de entrecortada pelos ramos do maracujazeiro. Chegam-me ecos de música da festa ao santo padroeiro da aldeia vizinha à mistura com o canto dos pássaros e o grasnar dos patos. Há algum tempo que me sento aqui, um livro de poesia no colo (sabes bem como amo a poesia), num torpor feito de memórias e saudade. Efeito das férias, acho. Isto de não ocupar o espírito nem o corpo com trabalho nem sempre dá o resultado animador esperado.Melhor deixar a poesia de lado e ir colher maracujás!



segunda-feira, agosto 18, 2014

Marca

(Marne Adler)

Dóis-me. Não há como dizê-lo de outra fora. Dóis-me no peito, na carne que marcaste a ferro e fogo, como se houvesse ainda aquele hábito terrível de deixar no corpo dos escravos o sinal de que tinham dono. Não sou escrava. Nunca fui nem vou ser escrava. Só me dóis, ponto.




sábado, agosto 16, 2014

Do início das cartas de amor



 (JAMES CARROLL BECKWITH)

Meu amor, começava assim a carta que tinha escrito no papel de linhas finas e de cor branca. Coisa mais antiga, isto de escrever cartas e ainda mais começar assim, de chofre: meu amor. Meu? Ninguém é de ninguém, rapariga. Até o outro canta isso no refrão daquela canção que fez sucesso há uns tempos atrás. Não conheces? Cantava-a aquele rapazinho de ar melancólico, agarrado a uma viola; na, na, ra, na, na, na, na...na, ra, na, na, na, na, na... Depois é essa coisa de, para além de meu (teu) ser amor! Amor? Sabes lá tu o que é amor, rapariga! Ah, e tal, "amor é fogo que arde sem se ver"! Se Camões soubesse o que era amor tinha morrido nos braços de uma mulher bonita, cuidado e amparado em vez de se finar de peste, sozinho e na miséria. 
Onde é que eu ia mesmo? Na introdução da carta? Ainda? Melhor parar por aqui que esta coisa de cartas de amor deixa-me com azia! Olha, rapariga, sabes que mais? Manda-lhe um email, ou uma sms, sempre é mais moderno e mais rápido!

Eco

(Almada Negreiros - Adão e Eva)

O Echo  

Tão tarde. Adão não vem? Aonde iria Adão?!
Talvez que fosse á caça; quer fazer surprezas com alguma côrça branca lá da floresta.
Era p'lo entardecer, e Eva já sentia cuidados por tantas demoras.
Foi chamar ao cimo dos rochedos, e uma voz de mulher tambem, tambem chamou Adão.
Teve mêdo: Mas julgando fantazia chamou de nôvo: Adão? E uma voz de mulher tambem, tambem chamou Adão.
Foi-se triste para a tenda.
Adão já tinha vindo e trouxera as settas todas, e a cáça era nenhuma!
E elle a saudá-la ameaçou-lhe um beijo e ella fugiu-lhe.
- Outra que não Ella chamára tambem por Elle.


Almada Negreiros, in 'Frisos - Revista Orpheu nº1'





De ecos ardilosos rezam histórias de amores e de enganos.

sexta-feira, agosto 15, 2014

Do meu dia




Hoje esteve vento, sabes? Um céu muito azul a reflectir-se na água e a relva particularmente verde, destes dias que mais pareceram de Outono, deixaram-me espaço para poder sentar-me na espreguiçadeira e, imagina, procurar a sombra daquele pinheiro manso que cresceu desmesuradamente no canto direito do jardim para ler o livro que me deste. Também se ouviram pássaros: pardais comuns, um gaio atrevido (veio bem pertinho debicar algo que me pareceu um insecto) e as rolas que sempre me visitam, pousando em arrulhos no local mais prosaico de todos, o fio de electricidade que liga dois postes da EDP. 


Ah, é verdade! Quase me esquecia de dizer-te que aquelas flores meio estranhas e exóticas já são fruto, no seu lugar pendem maracujás. E a vinha... a vinha está exuberante, prenha de uvas brancas, ainda ligeiramente amargas mas prometendo a doçura de que gostas. 

quinta-feira, agosto 14, 2014

Caravaggio para principiantes

The Incredulity of Saint Thomas by Caravaggio


José Rodolfo Loaiza Ontiveros – The Incredulity of Saint Donald (Caravaggio Tribute)

Caravaggio, dono da luz entre as sombras. Homenagem que a muitos parecerá profanação mas que a mim suscita um sorriso e que, certamente, despertará uma grande curiosidade pela obra do Mestre num público menos avisado.
Uma outra homenagem, mais séria, da BBC.

quarta-feira, agosto 13, 2014

terça-feira, agosto 12, 2014

Do imaginário infantil ao Pop não convencional

José Rodolfo Ontiveros desmonta algumas figuras que animaram a nossa infância revelando-as de forma, no mínimo, irreverente. Profanity Pop é o nome da exposição. Porque gosto de desafios ao que é politicamente correcto, deixo algumas das imagens.

Branca de Neve. Aquele príncipe era demasiado bem comportado!


Pateta e Donald. Isto explica as vozes estranhas!


Minnie e Margarida. Bem me parecia que elas não ligavam grande coisa ao Mickey e ao Donald!



As princesas, nos copos, com Frida Kahlo. Corações partidos?


Uma música retirada da banda sonora de uma Branca de Neve bem fora do estilo clássico!

segunda-feira, agosto 11, 2014

Disfarce


(Jack Vettriano)

"Y después de hacer todo lo que hacen, se levantan, se bañan, se entalcan, se perfuman, se peinan, se visten, y así progresivamente van volviendo a ser lo que no son."


Julio Cortazar, in Un tal Lucas (1979)




 *Obrigada ao Xilre por me ter dado a conhecer Jack Vettriano.

domingo, agosto 10, 2014

Que me perdoem o(a)s pudico(a)s

(Di Calvacanti)


Exterior
 
Por que a poesia tem que se confinar?
às paredes de dentro da vulva do poema?
Por que proibir à poesia
estourar os limites do grelo
da greta
da gruta
e se espraiar além da grade
do sol nascido quadrado?

Por que a poesia tem que se sustentar
de pé, cartesiana milícia enfileirada,
obediente filha da pauta?
Por que a poesia não pode ficar de quatro
e se agachar e se esgueirar
para gozar
carpe diem!
fora da zona da página?

Por que a poesia de rabo preso
sem poder se operar
e, operada,
polimórfica e perversa,
não pode travestir-se
com os clitóris e balangandãs da lira?


Waly Salomão



A poesia não se prende, não se fecha numa gaiola, não se restringe a palavras bem comportadas. A poesia é um ser vivo, um sexo ardente, carne rósea pronta a explodir em orgasmos infinitos.

sábado, agosto 09, 2014

Até morrer

(Maria Eu)

He had infected her blood like a poison. Although facing death, she didn't allow anyone to cut into her ill flesh and bleed him out of her system. Nor did she take any of the oblivion pills recommended as an antidote.



A vez primeira



 (Peter Fabian)

Corriam pelos campos em algarviadas preenchidas de sorrisos. As vacas nem se incomodavam a erguer os olhos do chão coberto de erva, continuando a retoiçar, de habituadas a que os miúdos que as levavam a pastar tivessem companhia. Às vezes, até lhes consentiam a brincadeira de se sentarem no chão, pernas cruzadas, bem por baixo do úbere, fazendo esguichar o leite directamente para a boca. Lena recorda-se bem dessas brincadeiras. Olha para o pé descoberto nas sandálias leves e a cicatriz, visível, deixa-a a sorrir... "Ai, que me estrepei!", gritara ao bater com o pé descalço num toco de milho recém cortado. 
Fora nesse dia que o Carlos da Mena lhe pegara ao colo e lhe dera um beijo tímido e fugaz, o seu primeiro...



quinta-feira, agosto 07, 2014

Vento de Verão com dedicatória

Descalçou-se, em ligeiro desiquilíbrio. O pára-vento numa mão, a toalha e o saco colorido na outra. Quase caiu ao desapertar as fivelas das sandálias brancas que segurou nas pontas dos dedos até chegar ao recanto das dunas. O vento fustigava a praia, trazendo nuvens de areia que magoavam as pernas. Desertavam os veraneantes enquanto ela chegava. Louca! Pensariam os que abandonavam o areal. 
Sem hesitar, a mulher pousou no chão o que transportava, montou o pára-vento, estendeu a toalha, tirou um livro do saco e, indiferente, deitou-se de barriga para baixo e embrenhou-se na leitura. Leu-o do princípio ao fim. Só então se levantou, sacudiu a areia do cabelo revolto e da toalha, recolheu o pára-vento e as sandálias, e foi embora, deixando ali o livro. O vento parara. O rapaz que viera passear o cão pegou no livro abandonado, "Navegação de acaso", de Nuno Júdice. Na primeira página, uma dedicatória: À Clara, para ler na praia onde fomos felizes. Beijo apertado, António.

 (Kumi Yamashita)


PREPARATIVOS DE VIAGEM

Ao fazer a mala, tenho de pensar em tudo o que lá
vou meter para não me esquecer de nada. Vou ao
dicionário e tiro as palavras que me servirão
de passaporte: o equador, uma linha
de horizonte, a altitude e a latitude,
um lugar de passageiro insistente. Dizem-me
que não preciso de mais nada; mas continuo
a encher a mala. Um pôr-do-sol para que
a noite não caia tão depressa, o toque dos teus
cabelos para que a minha mão os não esqueça,
e aquele pássaro num jardim que nasceu
nas traseiras da casa, e canta sem saber
porquê. E outras coisas que poderiam
parecer inúteis, mas de que vou precisar: uma frase
indecisa a meio da noite, a constelação
dos teus olhos quando os abres, e algumas
folhas de papel onde irei escrever o que a tua ausência
me vem ditar. E se me disserem que tenho
excesso de peso, deixarei tudo isto em terra,
e ficarei só com a tua imagem, a estrela
de um sorriso triste, e o eco melancólico
de um adeus.


Nuno Júdice, in "Navegação de Acaso" 



quarta-feira, agosto 06, 2014

Ser ou parecer


 (Giambattista Valli FW'14 dress in the Spring, Summer '14 issue of Creem)

"Na competição em termos de prestígio apenas parece sensato tentarmos aperfeiçoar a nossa imagem em vez de nós próprios. Isso parece ser a forma mais económica e directa para produzirmos o resultado desejado. Acostumados a viver num mundo de pseudo-eventos, celebridades, formas dissolventes, e em imagens-sombra, nós confundimos as nossas sombras com nós próprios. A nós elas parecem mais reais que a realidade. Porque é que elas não deveriam parecer assim aos outros?"

Daniel J. Boorstin, in 'The Image. A Guide to Pseudo-Events in America'




terça-feira, agosto 05, 2014

Obama faz hoje 53 anos


(KONSTANTIN BESSMERTNY)

Oásis

(Tania Rutland)

"- Quando atravessamos o deserto, todos merecemos um oásis." disse-lhe ele, enquanto a cabeça dela repousava no seu colo.
"- E os oásis nunca são tomados pelo deserto?" perguntou-lhe ela, olhando-o com receosa ternura.



segunda-feira, agosto 04, 2014

Vai tu!



Hoje, apetecia-me que alguém me mandasse à merda, só para responder: Vai tu!



Imperativo

(Detalhe de leito retirado do quadro "A Tranca", de Fragonard)


Encontrem-se os amantes nos lábios húmidos, nos gestos lânguidos, nos olhares brilhantes.
Calem-se as bocas com beijos, manietem-se os braços com afagos, 
soltem-se apenas os gemidos.
Amarrotem-se os lençóis e as palavras, numa luta de corpos sem vencedores nem vencidos.


domingo, agosto 03, 2014

Onde ides que estais nus?

(imagem retirada daqui)


Com a Fortuna não Perde o Ser de Besta  

Na carreira veloz, a deusa cega
Lança às vezes a mão a um feio mono
E o sobe, num instante, a um coche, a um trono,
Onde a Virtude com trabalho chega.

Porém se, louca, num jumento pega,
Por mais que o erga não lhe dá abono:
Bem se vê que foi sonho de seu sono,
Quando a vara ou bastão ela lhe entrega.

Pouco importa adornar asno casmurro
Com jaezes reais, mantas de festa,
Se a conhecer se dá no rouco zurro.

Quem, no berço, por vil se manifesta,
Quem nele baixo foi, quem nasce burro,
Co'a Fortuna não perde o ser de besta.


Francisco Joaquim Bingre, in 'Sonetos'





Na cegueira da avidez e da ganância, poder não significa, necessariamente, saber.