sexta-feira, setembro 22, 2023

Coração



(imagem daqui)

    

Coração


O coração, ao contrário da pele*,

não se renova ou perde de sete em sete anos.

Transforma-se ao sabor dos sentimentos,

torna excitante a permanência humana.

O coração pulsa, tem ritmo, fica louco

ou quase quieto de emoção.

O coração não aparece na foto

do documento da nossa identidade.

E porém...

O coração É a nossa identidade.

 

* ver Pedro Mexia, in "Duplo Império"

 

(Benjamim Clementine - Eternity)

quarta-feira, setembro 20, 2023

Azul Klein



Diziam-lhe dos sonhos adiados, dos dias desencantados, do correr do tempo cego, do cansaço desabado em sono precoce no sofá.
Mostravam-lhe as rugas precoces nos rostos tristes, o olhar baço, as mãos quietas e mudas.

Teimava em pintar de azul klein o seu presente, feito futuro.

(Stephan Moccio - Le temps qui passe)

terça-feira, setembro 19, 2023

Inferno

 

(imagem daqui)

Maria Joana deparou-se com a notícia, atraída pela fotografia que a acompanhava. Três freiras, de costas.

"Três freiras foram detidas por suspeitas de maus-tratos contra menores, residentes num lar juvenil, em Vila Viçosa."


Já há longos anos que arrumara num canto bem escuro as memórias do internato. O acordar abrupto com as palmas da Irmã Severa, acompanhada de uma oração gritada a plenos pulmões, não para que Deus a ouvisse, mas sim para que nenhuma se deixasse ficar no quente dos lençóis; o duche mais do que apressado; o frio a avermelhar as pernas a descoberto a partir do rebuço dos soquetes brancos; a missa, ainda em jejum; as filas encabeçadas pela freira "ao serviço", para todas as tarefas; as saudades de casa...


Mas, o título! O título... Viu a Flor! A Flor, franzina, morena, grandes olhos escuros e tristes na carinha magra, de pé, ao fundo do refeitório, lençóis nos braços, a tremer na camisa de noite fina.

"Olhem bem para a vossa colega (chamavam-lhe asilada e não interna, por não poder pagar)! É uma porquinha! Fez chichi na cama!"

Hoje não toma pequeno almoço e vai daqui para o tanque lavar o que sujou!"


Guardava sempre uns biscoitos que a mãe lhe mandava para a Flor, enquanto, em pensamento, fazia uma prece para que todas as freiras fossem para o Inferno!


(Solas - James Duffy)

sexta-feira, junho 23, 2023

Do envelhecimento dos troncos

 


Havia, no campo da casa grande, muitas árvores: pinheiros mansos, abetos, cameleiras, laranjeiras, ameixoeiras, cerejeiras, pessegueiros, mas a nespereira… a nespereira tinha sempre sido especial.

Talvez por tê-la visto crescer, acolhido o seu corpo de menina em escaladas e assistido aos primeiros suspiros e desgostos de amor, ladeando a janela do seu quarto durante tantos anos, primeiro usando a sombra das paredes para ir trepando sem secar, depois oferecendo ela sombra nas tardes quentes de Verão.

Pousou as mãos no tronco ferido pela idade. Tantas feridas abertas. Tantas cicatrizes. Seriam as dela ou as de ambas?


(Ludovico Einaudi - Broken Wings)

terça-feira, abril 25, 2023

Abril, 25.



E, quase sem se dar conta, era outra vez Abril! 


 

(Traz outro amigo também - Zeca Afonso)

segunda-feira, abril 24, 2023

Aurélia

 

"Aurélia distinguia-se pela sobriedade, que  era nela a consequência de temperamento e educação. Não quer isto dizer que fosse dessa espécie de moças papilionáceas que se alimentam do pólen das flores, e para quem o comer é um ato desgracioso e prosaico. Bem ao contrário, ela sabia que a nutrição dá a seiva da beleza, sem a qual as cores desmaiam nas faces e os sorrisos nos lábios, como as efémeras e pálidas florações de uma roseira ética.

Assim não tinha vergonha de comer; e sem vaidade acreditava que o esmalte de seus dentes não era menos gracioso quando eles se triscavam como a crepitação de um colar de pérolas; nem o matiz de seus lábios menos saboroso quando chupavam uma fruta, ou se entreabriam para receber o alimento."

Senhora, José de Alencar


Adorava ver Aurélia comer! Costumava sentar-se numa mesa desde onde a pudesse observar, sempre tão composta, a inquietar-se perante  as opções do menu; imaginando cada sabor, cada aroma... Era toda brilho no olhar. E quando pousavam na mesa o prato escolhido, então! Uma festa!

Aurélia era, nesses momentos de gula, a mais sensual das mulheres, toda ela boca e mãos, deixando a quem a observasse a sugar o tutano de uma costelinha de borrego ou a trincar um bago de uvas, um calafrio na espinha, um desejo instantâneo de a possuir com o mesmo apetite que mostrava, recorrendo ao mesmo método para se deleitar.

Maria Eu


(Sueño con ella - Buika)