Tinham-lhe dito que seguisse a primeira estrela. Assim o fez. Não que fosse muito de obedecer. Lembrava-se bem dos castigos que a professora Lurdes lhe aplicava quando, menina pequena de bata branca, empinava o nariz e fingia não a ouvir mandá-la parar de ler o livro que trazia de casa e escondia por baixo do caderno aborrecido de aritmética. Era ler à socapa e desenhar em qualquer pedacinho de folha branca. Era nos cabeçalho dos textos de História, no verso dos desenhos aguarelados, nos quadrados do rodapé das equações... Meninas de cabelos compridos e pestanas longas, flores exóticas, paisagens com mar e coqueiros. Um dia, até se aventurou a rabiscar n'Os Lusíadas!
Sacrilégio! E logo uma mulher nua, de "lácteas tetas"!
Pois se era assim que o Canto II dizia, como deveria tê-la feito? Custou-lhe os intervalos de uma semana, a proeza, e uma folha arrancada, solenemente, na frente da turma horrorizada. O diabo! Decerto era o diabo que a tentava a retratar a impudica nudez das ninfas, habitantes de um canto que lhes tinha sido interditado do estudo.
Seguiu, então, a estrela primeira e entrou-lhe a memória alma adentro, avivando os desenhos arquivados, onde cada traço vinha completando o esquiço que continuava ali, naquele céu azul petróleo a encimar os recortes dos montes, a sua vida ainda inacabada.
(enquanto recordava, pegara num recibo de gasolina e rabiscara, maquinalmente, uma praia banhada por um mar revolto)