quinta-feira, abril 30, 2015

Para a Catarina R.



Para a Catarina, um beijo terno e grato. Há coisas inexplicáveis nesta blogosfera. A doçura da Catarina é uma delas.
Este livro é para escrever com mil cuidados.

quarta-feira, abril 29, 2015

Dia de festa




Era dia de festa, diziam. Compraram-lhe um bolo, puseram-lhe velas, tantas quantas os anos que fazia (muitos). Todas acesas iluminaram-lhe o rosto quando as soprou ao som das vozes pouco afinadas. Saiu-lhe a alma junto com o sopro e, sem alma, até sorriu.


Bajulação

(Jorge Pinheiro)

Maria do Carmo não costumava frequentar eventos públicos na qualidade de figura de primeiras cadeiras da plateia. Recebia alguns convites e rasgava-os, preferindo engrossar a fila para a compra de bilhetes, ou, sendo gratuito, integrar a turba indistinta. Divertia-a observar a bajulação dos costumeiros Drs. aos Doutores ou, mesmo, de todos eles aos não Drs., desde que detentores de poder, e o espanto dos que a viam sair, provinda de um lugar mais discreto, quando sabiam que poderia estar lá na frente.


segunda-feira, abril 27, 2015

Força


(Edward Hopper)

Primeiro foi o cansaço, insidioso. Depois veio uma agonia, um aperto no peito. Agonizava, exausta, incapaz de um queixume. Forte até ao suspiro final. E, porém, ninguém a viu morrer. Aparentemente, respirava, movia-se, alimentava-se, falava, e comportava-se em tudo como se não fosse um cadáver. Houve até quem dissesse que fora passar férias numa casa com porta directa para o mar.


domingo, abril 26, 2015

Pelo São João


(Richard Tuschman inspirado em Edward Hopper)

Entristecera sem remédio, Maria do Rosário. Deram-lhe a beber chás, prescreveram-lhe anti-depressivos, levaram-na ao cinema, a concertos, a passear na praia... Nada lhe fazia brilhar os olhos como antes de António Carlos lhe ter sussurrado palavras de amor. 
Tinha sido por altura do São João. O rapaz tinha garbo e sabia como falar ao coração de uma mulher. Ela, que tanto se fechara às questões do amor, abriu-lhe primeiro uma fresta da janela, para pouco depois lhe escancarar a porta. Foi um namoro breve. Nem ela soube o quão breve, de entretida com os sonhos. Ficaram-lhe os papelinhos onde escrevera os nomes de homem para deixar numa bacia de água, no beiral da janela, durante a noite de 24 de junho, de modo a que São João fizesse abrir aquele onde se lesse o do seu amor verdadeiro. Fizera, porém, batota, com medo do resultado, e nos seis pedaços de papel, escritos a tinta indelével, lia-se ora António, ora Carlos. Mal ela sabia que São João é um santo muito atento. No dia 25, pela manhãzinha, quando foi espreitar a bacia, nenhum dos papéis se tinha desdobrado.


Asas

(Ramon Santiago)

Y era el amor

Y era el amor al fin se había posado
Era una mariposa sobre el seno dorado.
Y era el amor
Ese amor que por siempre la había perturbado
En mil noches de sueños ardientes, descarados.
Y era el amor
El amor del suspiro, del beso apasionado
El amor tan sublime, el amor esperado,
Y sí, era el amor
Y ya lo ha comprobado,
Por eso se ve triste,
Por eso ya no canta,
Por eso es que ha llorado.


Ramón Valdez



Veio assim, o amor, sem se fazer anunciado, num esvoaçar de asas assaz destemperado. 

sábado, abril 25, 2015

Abril

(imagem daqui)

Menina me passou à porta um sopro de alegre liberdade. Foi de olhos ávidos e fera prontidão que abracei um caminho de entusiasta defensora de princípios traçados por mãos que entendi serem também minhas. Fui adolescente de rosto alegre em multidões a gritar palavras de ordem. Cresci mulher em estradas que foram percorridas à sombra de ameaças ao que sonhara ser um mundo livre. Hoje, sou ainda um rosto alegre a juntar-se aos que se mostram nas ruas e nas praças. Talvez hesite mais na hora de acreditar mas o sonho ainda cá mora.
Nasci em Abril. Sou de Abril.


quinta-feira, abril 23, 2015

Destino

(Cruzeiro Seixas)

O destino, isso a que damos o nome de destino, como todas as coisas deste mundo, não conhece a linha recta. O nosso grande engano, devido ao costume que temos de tudo explicar retrospectivamente em função de um resultado final, portanto conhecido, é imaginar o destino como uma flecha apontada directamente a um alvo que, por assim dizer, a estivesse esperando desde o princípio, sem se mover. Ora, pelo contrário, o destino hesita muitíssimo, tem dúvidas, leva tempo a decidir-se. Tanto assim que antes de converter Rimbaud em traficante de armas e marfim em África, o obrigou a ser poeta em Paris. 

José Saramago, in 'Cadernos de Lanzarote (1994)'




Sinuosas são as estradas que percorremos na descoberta do mundo. Curvas e contra-curvas, rectas, lombas, obstáculos atirados para o caminho por tempestades... Se acredito no destino? Talvez no acaso.

quarta-feira, abril 22, 2015

Samba pa ti

(Jack Vettriano)

Havia aquele rapaz que a fazia corar, só de passar perto dele. Seria que era por ter namorado as mais cobiçadas do liceu e agora a olhava com um sorriso desarmante, a cada vez que se cruzavam nos corredores? No Sábado à tarde, foi com ela que dançou o tempo todo, no baile de garagem da Rita.Trémula, ergueu o olhar e os lábios, no calor de um slow, para o primeiro beijo.
(ainda se dançam slows?)


segunda-feira, abril 20, 2015

A minha liberdade



Em Abril me fiz gente. Saí, a custo, do ventre de minha mãe, virada "do avesso". Mau sinal, dizem, pois que quem assim nasce está predestinado a ter mau feitio. Não era para ser mulher. Meu pai me queria homem e não foi com um sorriso na cara que me viu pela primeira vez. Cresci Maria mas brinquei muito à Manel. Trepei às árvores, rodei arcos, nadei no rio com câmaras de ar de pneus a fazer de bóias, arranquei grilos das suas tocas a fazer xixi lá para dentro, esfolei os joelhos em calções curtos. Cresci mulher quando os homens eram mais livres. Foi nos livros que descobri a liberdade, primeiro, foi em Abril que a liberdade passou por mim, depois. Visto a liberdade de vermelho, cor de sangue, cor de cravo.


Hoje


(Joan Pujol)

"Vive o Dia de Hoje!

Não penses para amanhã. Não lembres o que foi de ontem. A memória teve o seu tempo quando foi tempo de alguma coisa durar. Mas tudo hoje é tão efémero. Mesmo o que se pensa para amanhã é para já ter sido, que é o que desejamos que seja logo que for. É o tempo de Deus que não tem futuro nem passado. Foi o que dele nós escolhemos no sonho do nosso absoluto. Não penses para amanhã na urgência de seres agora. Mesmo logo à tarde é muito tarde. Tudo o que és em ti para seres, vê se o és neste instante. Porque antes e depois tudo é morte e insensatez. Não esperes, sê agora. Lê os jornais. O futuro é o embrulho que fizeres com eles ou o papel urgente da retrete quando não houver outro. "

Vergílio Ferreira, in "Escrever"




O que é viver o dia de hoje? Viver como se gostaria de viver? Viver na medida das possibilidades? Viver para si, para os outros, com ou sem os outros? Viver a nossa urgência não precisa da urgência de outros? Embrulha o futuro nos jornais, diz Virgílio Ferreira. Mas se, agora, tantos jornais lidos são virtuais. Não servem para embrulhar o futuro nem sequer para papel urgente. Fica, então, o futuro por embrulhar e o agora à espera que a urgência passe.

sábado, abril 18, 2015

Laranjas



Maria do Carmo costumava sentar-se debaixo da laranjeira, nos dias soalheiros. Muitas páginas leu e muitos sonhos a embalaram à sombra daqueles ramos de onde pendiam laranjas doces, de umbigo. Quando tinha sede, estendia o braço e colhia uma, descascando-a com os dedos e comendo-a, gomo a gomo, deixando o sumo correr na garganta enquanto mastigava a polpa.
De vez em quando, parecia que uma laranjeira lhe nascia no peito, e que o seu corpo tinha raízes, ramos e frutos, pronto a abrigar , proteger e matar a sede a quem à sua sombra se viesse sentar.

Nota: Na laranjeira, havia pássaros, tal como no peito de Maria do Carmo.


De um homem

Há os homens. E, depois, há este homem.



"As mulheres gostam mais de sexo do que os homens. Muito mais, mesmo. Por isso é que o querem menos vezes. É comum os homens pensarem que as mulheres não gostam tanto de sexo assim que ouvem o primeiro "hoje não me apetece" da namorada ou da amante. O que eles não percebem é que para elas o sexo é um prato gourmet, para eles é um hambúrguer num restaurante de fast food.
Pensem num Caril de Peixe com frutas em que juntam Perca, Cherne e Alabote. Refogam tudo em alho e cebola enquanto juntam os temperos: sal, salsa ou os coentros e o louro. É o sexo das mulheres. Tem sabor, dedicação e oportunidade. Não se come é todos os dias.
Eles conduzem um carro até ao drive in mais próximo e pedem um Big Mac. Sim, todos os dias.
O melhor que pode acontecer a um homem é encontrar uma mulher que o ensine, não só a cozinhar, mas também a comer, para que ele possa conhecer receitas gastronómicas. É quando um homem deixa de ter a mania que é o melhor do mundo na cama que passa a ser alguma coisa de jeito. É também, nesse momento, que ela o acompanha uma vez por outra ao pior restaurante do mundo."

Bagaço Amarelo


sexta-feira, abril 17, 2015

Sombras

(Artemisia Gentileschi)


Há monstros nas esquinas da cidade. Há-os escondidos e, a um sopro de descuido, saem-nos ao caminho e conspurcam-nos, maculam-nos com a sua sordidez. Tocam-nos o corpo e ferem-nos a alma. 
Valham-nos os anjos!


quinta-feira, abril 16, 2015

Meu amor

(Robert Mapplethorpe)


Já te escrevi tantas palavras, meu amor, que não encontro mais para dizer-te. E, porém, neste silêncio de palavras aparentemente esgotadas, amo-te ainda mais.



À espera de Casanova



"La nuit revenant à la même place au centre plus blanche œil baissé courbes hésitantes perdu la mémoire ça s’étalait comme partout autour comme possession et vibrations, les premières lueurs du corps.
Là tout en mouvements concentriques elle oubliait, lentement. Espace resserré par où aucune lumière vraie ne passe. Expansions et rotations. Microfissures des lèvres invisibles.
Objets inanimés à la même place. Puanteurs dans les coins, couloirs délavés, raclements de gorges sans fin et comme en arrière du décor, la petite se pose sur son socle et attend.
Elle tourne, ça ne bouge plus. Comme casanova qui hante les murs. Le mariage. Elle pourrait tomber, se casser. Elle ne tombera pas. Elle ne se cassera pas. Dehors les phares interrompent au loin le jeu des bêtes. La petite attend sur son socle, casanova ne viendra pas la défaire. (...)"

Bérénice Biéli, in Norma




Espera, em equilíbrio perfeito, acreditando que não cairá, que não se magoará. Acho que ela não sabe, mas  Casanova não escalará os muros que a cercam.  

terça-feira, abril 14, 2015

O estranho caso da chave saltitona - Capítulo XIII


Trailer - Palmier Encoberto
Prólogo - Xilre
Capítulo I - Calma com o andor
Capítulo II - Dúvidas Cor de Rosa
Capítulo III - A Mais Picante
Capítulo IV - Mirone
Capítulo V - Pasme-se quem puder
Capítulo VI - A Uva Passa
Capítulo VII - Kiss and Make Up
Capítulo VIII - Amor Autista
Capítulo IX - Talqualmenteoutro
Capítulo X - Linda Porca
Capítulo XI - Sister V
Capítulo XII- A elasticidade do tempo

Capítulo XIII

Maria Eduarda levantara-se da cama devagar, a nudez a recortar-se na penumbra do quarto. Vestiu-se silenciosamente, apertando a custo o fecho das costas do vestido de veludo purpura. Hesitou em calçar-se, não fosse o ruído dos tacões acordar João Carlos, mas logo pensou que a carpete espessa abafaria o som e deslizou os pés para dentro dos sapatos pretos. Abriu a porta e, antes de sair, voltou-se para olhar o homem de quem tantas vezes se perdera e com quem, inevitavelmente, se reencontrara outras tantas. Sim, havia aquela questão do tamanho mas o talento dele com as mãos e aquele jeito sacana de falar era motivo para a endoidecer.
Percebeu-lhe os olhos abertos e voltou-se, de imediato, para a porta, franqueando-lhe a ombreira e fechando-a atrás de si. Ao rodar a maçaneta, sentiu o toque metálico da chave. Sorriu perversamente. João Carlos não tinha emenda e continuava a deixar a chave do lado de fora. Num impulso, rodou-a na fechadura, e meteu-a no decote, bem junto ao seio esquerdo. O contacto frio arrepiou-a, endurecendo-lhe os mamilos no veludo liso do vestido. Sabia que a dona da pensão tinha uma chave mestra mas era daquela que João Carlos iria à procura. 

*(batata quente que me veio parar às mãos através do JM.) 

segunda-feira, abril 13, 2015

Na Primavera, partem.


Eduardo Galeano (3 de setembro de 1940 - 13 de abril de 2015)

"No consigo dormir. Tengo una mujer atravesada entre los párpados. Si pudiera, le diría que se vaya; pero tengo una mujer atravesada en la garganta."

 "La caridad es humillante porque se ejerce verticalmente y desde arriba; la solidaridad es horizontal e implica respeto mutuo."



Günter Grass (16 Out 1927 - 13 Abr 2015)

"Hoje em dia eu sei que todas as coisas são vistas, nada deixa de ser visto, até o papel de parede é melhor memorizado que os seres humanos."

"Desde o colapso do socialismo, o capitalismo ficou sem rival. Esta situação anormal desencadeou o seu ganancioso e - acima de tudo - o seu poder suicida. Agora a crença é que tudo - e todos - estão num jogo justo."



Toque

(foto de MusiClassroom)

Havia um piano no sótão. Ninguém o tocava, a não ser o menino que trepava pela árvore para colher figos. Parecia que, ao toque dos seus dedos, mais ninguém houvera ensaiado uma nota sequer, de tão doce era o som. Ainda que não fosse o tempo dos figos, o menino trepava, ramo a ramo, entrava pela janela e tocava como se acariciasse a teclas. Um dia, o menino não veio. Outro dia, também não. O piano emudeceu e, sem quê nem para quê, desfez-se em pedaços.


Dos bons

(Ariele Alasko)


"Os bons comem-se às colheres."




domingo, abril 12, 2015

Maria Antónia


Costumava subir a rua íngreme que levava à igreja a cada Domingo, logo que o Tone da Mila abria a pesada porta da frente. Quase corria, Maria Antónia, na ânsia de ser a primeira a ocupar um lugar no banco corrido junto ao altar. Rezava de olhos fechados, como se nada visse ou ouvisse, até durante a homilia. Era, também, a última a sair. Já o padre se desparamentava na sacristia e o Tone tinha apagado todas as luzes, extinguido todas as velas...
Saía, tal como chegara, em passo largo e apressado, quase correndo.
O povo da aldeia, sempre atento a todas as minudências Domingueiras, cochichava que  a pobre tinha endoidado depois que a notícia da partida de Luís Carlos para a estranja, na companhia de Teresa, tinha sido divulgada pela prima Joaquina, sempre atenta às novidades chegadas por carta aos lares dos conterrâneos.



sábado, abril 11, 2015

Piropo N.º 2 (desafio no Exclusive)

(Johnny Depp numa cena do filme From Hell)


Noutra encarnação, quero ser o patinho da tua banheira!







(Soft e levemente foleiro, em resposta ao desafio do Exclusive. )

Piropo N.º 1 (desafio no Exclusive)

(Mariusz Rusin em foto de Krysztof Wyzynski)


Emprestas-me os óculos para eu te ler (n)os detalhes?







(Soft e levemente foleiro, em resposta ao desafio do Exclusive.)

Sal

(Patrick Gonzales)

Há sombras que ferem como punhais.
Frias, cortantes, fundas, ardem nas feridas, como sal.


sexta-feira, abril 10, 2015

Um buraco no coração

(Alrasyd, em deviantart)


Morre-se quando fica um buraco no coração e nada é capaz de o preencher. Morre-se quando sabes que foste arrumado numa prateleira onde ninguém chega, ainda que use uma escada e, na tua pele, está escrita a história das mãos que ali te depuseram. Morre-se quando deixas de ser digno que entrem na tua morada, mesmo que nela haja flores e perfumes exóticos. 
João morreu no dia em que Rosarinho foi embora.


quinta-feira, abril 09, 2015

Sobre isto de ter um blog

(paula goddard)


Desafiada pelo Ricardo, as minhas respostas a perguntas sobre isto dos blogs.

1- O que te incentivou a ter um blog?

Um dia, estava em processo de escrever uma dissertação de mestrado, comecei a ler uma miúda que tinha um blog . Já lá vão seis anos. Achava-lhe graça, pela juventude, pela honestidade, pela ingenuidade. Desse, passei a outros, de géneros totalmente diversos, e gostei. Comecei um blog sem saber nada do meio. Escrevi no motor de busca "como criar um blog" e segui os passos. Durou sensivelmente 3 anos. A blogosfera é um lugar estranho, às vezes, e abandonei, a custo, o canto que me iniciou nestas coisas para (re)começar aqui, num registo bastante diferente.


2- Qual a importância do blogue para ti?

É um escape e, reconheço-o, um vício, já. 


3- Quais são os assuntos do teu blog?

Aqueles que me vão apetecendo. Publico poesia, dos outros e minha, pequenos textos sobre família, amizade, amor, ternura. tristeza. Cada post é acompanhado por uma pintura, desenho, escultura, fotografia que me pareça adequada e uma música. 


4- Como te sentiste, ao ler o primeiro comentário?

Gostei, obviamente. Não tenho a pretensão de escrever só para mim, até porque, para isso, teria um diário. Saber o que pensam sobre aquilo que vou "postando" é interessante, bem como a possibilidade de interagir com aqueles que têm a generosidade de deixar umas palavras.


5- Quantos comentários tens ao todo no momento?


6 531, contando com as minhas respostas, claro.


7- Qual a meta deste ano para o teu blog?

Não tenho qualquer meta. Ir escrevendo sempre que me apeteça, até quando me apeteça.


8- Até onde desejas chegar com o teu blog?

Até onde ele me levar. Há momentos em que acho que não tenho nada de jeito para dizer, reconheço. 
Porém, criam-se laços curiosos, em que a virtualidade não impede amizade, admiração, ternura, até. Nitidamente, existem "famílias" na blogosfera. Às vezes até sinto saudades de quem por aqui andou e deixou de vir.




Quase sorriso


(Dante  Gabriel Rossetti)


Obrigado por não seres catalogável, escreveu-lhe.
Quase sorriu.




quarta-feira, abril 08, 2015

Alfa pendular


(imagem daqui)


Do Norte, chega de comboio. Calatrava rendilhou a estação sem complacência para o corpo dos viajantes, em contrapartida, encheu-lhes os olhos de beleza. Muitos a acompanharam desde há mais de três horas atrás. As raparigas muito arranjadas, de pasta novinha nas mãos, numa conversa desatada sobre a formadora que lhes calhara em sorte (uma chata, pelos vistos, compensada pelos formandos jovens e "podres de bons"). O homem atraente que não tirou o sobretudo e parecia, ainda assim, ter frio. O casal com o bebé, sempre com um sorriso nos lábios, a cada vez que o minúsculo ser agitava as mãozitas.
Agora, apartavam-se os companheiros de viagem. Espera-a Lisboa. Uma Lisboa que, mesmo sem estar ensolarada, tem sempre aquela luz que vem do Tejo. Ainda assim, estava triste, hoje, a cidade.



terça-feira, abril 07, 2015

O coração nos pés


Tem os pés frios. Os pés e o coração, que sem saber como, o coração sempre mandou nos pés. Como daquela vez, em que sentiu uma alegria enorme e se pôs a dançar, ali mesmo, na rua. Ou quando ele a veio visitar e o coração disparou fazendo os seus pés encostarem-se aos dele por baixo da mesa da confeitaria (e os dele, que também devem ser coração-dependentes, apressados a acolhê-los). 
Não sabe porquê, mas hoje não há meias, aquecedor, escalfeta que lhe aqueçam os malditos pés.


Das nuvens e dos incêndios

(Tamara de Lempika)

De ti e desta nuvem; desta nuvem
branca como voo de pássaro
em manhã de abril; de ti
e da íntima chama de um fogo
que não consente extinção;
de ti e de mim fazer um só acorde,
um acorde só; para não te perder.


Eugénio de Andrade





De mim e deste incêndio; desta chama
laranja como um pôr do sol
em tarde de junho; de mim
e do recôndito desejo a alastrar
que nunca se apazigua;
de mim e de ti fazer uma fogueira
uma só chama; para não nos perdermos.

Glosa a Eugénio de Andrade de Maria Eu

segunda-feira, abril 06, 2015

Procura-me


Aqui não precisas de me procurar
para me encontrares, que eu estou,
omnipresente, em todo o chão que pisas,
duplicando a tua sombra,
deixando um rasto de brisa,
um aroma de urze na marca dos teus passos.
Com esta roupa visitaremos os pátios,
os átrios de dança e do encantamento.
As nuvens aninhadas atrás da lua,
na olorosa paz da madrugada,
são o mapa das errâncias da fala
enquanto o coração, indefeso, capitula.


José Jorge Letria, in "Capela dos Ócios"



(Ana Barros)

Procura-me aqui, sempre,
porque aqui me encontrarás,
sendo que aqui é em toda a parte,
os meus olhos buscando os teus
luzindo íntimos desejos.
E os nossos olhares, juntos,
acariciarão praias de areia clara 
em dias de marés vivas.
Gaivotas cruzando o céu azul.
húmidas da rebentação branca,
indício de gritos emudecidos
pelo coração, abafado no peito.

Maria Eu

domingo, abril 05, 2015

Felinos


(Balthus)


Ode ao Gato

Tu e eu temos de permeio
a rebeldia que desassossega,
a matéria compulsiva dos sentidos.
Que ninguém nos dome,
que ninguém tente
reduzir-nos ao silêncio branco da cinza,
pois nós temos fôlegos largos
de vento e de névoa
para de novo nos erguermos
e, sobre o desconsolo dos escombros,
formarmos o salto
que leva à glória ou à morte,
conforme a harmonia dos astros
e a regra elementar do destino.


José Jorge Letria, in "Animália Odes aos Bichos"




Os felinos morrem de garras afiadas e corpo arqueado no momento do ataque, jamais revelando fraqueza. Tal como se entregam, indomáveis e intensos, recebem o golpe mortal, certeiro e limpo.

sábado, abril 04, 2015

Estio

(Manos Markakis)


Fizera das palavras rio, corrente em ressalto pelo leito, salpicando as margens, na ânsia de chegar ao mar, de se entregar às ondas, de saber do gosto a sal. Com o Estio, veio a seca. As palavras, feito rio, ficaram dentro do peito, feito dique. 


Memórias de uma Páscoa longínqua

(imagem daqui)

Havia aquele perfume a licor de leite pela casa, a garrafa à espera que o líquido passasse pelo papel pardo de onde escorria, dourado e doce. Começava-se na Sexta-feira a fazer os biscoitos de limão, o bolo de laranja e os queques. No Sábado, era a vez da torta de chocolate, do leite-creme, das empadas de galinha, da bola de carne. À noite, já ficava a toalha de renda branca na mesa da sala de jantar, acomodando ao centro um arranjo profuso em cravos e gipsofila. Sim, porque no Domingo, a excitação era grande. A missa, muito cedo, o estômago vazio para podermos comungar e que, de vez em quando, fazia os mais débeis fraquejar num desmaio. ainda antes de receberem a  hóstia, ou beijarem a Cruz.
Regressadas a casa, enquanto as mais velhas da família punham as iguarias na mesa, cabia-me a tarefa de ir buscar alecrim e desfolhar rosas para, numa mistura perfumada e colorida, atapetar o trajecto desde o portão até à entrada de casa. Por ele viriam o Padre, os Mordomos, o escolhido carregando a Cruz de prata, mais o menino da água-benta, vizinhos, conhecidos e curiosos, perante os quais exibia, orgulhosa, o vestido a estrear e os meus dotes de anfitriã, oferecendo os pratos cheios de doces e salgados, com um sorriso aberto. Os copos e os cálices, esses, era o meu pai que enchia de vinho branco, sumo de laranja ou licor de leite. A minha mãe ficava sentada, a fazer companhia ao Padre, e a olhar, aflita, para o chão de madeira que ia sendo pisado pelos sapatos sujos da terra dos caminhos e que dera tanto trabalho a encerar (duas mulheres a dar ao braço um par de horas).

(obrigada ao Outro Ente, pela lembrança)




(perdoem a escolha, sei que ainda não é dia, mas é assim que lembro a Páscoa, com alegria)

sexta-feira, abril 03, 2015

Sem asas



(José Rodrigues)



Alla Fine di un altro Giorno

Now we are women grown, and men,
That were but careless children then;
Wise with our realistic lore,
The shining mystery we explain,
Only a vapor born of rain!
And dream of angels' wings no more.


Mary Bradley - Angel's Wings



No final de um outro dia

Agora, somos mulheres adultas, e homens,
Que então não eram senão crianças descuidadas;
Sensatos no nosso conhecimento prático,
Explicamos o mistério da resplandecência,
Apenas vapor nascido da chuva!
Não mais sonhámos com asas de anjos.

Mary Bradley - Asas de Anjo, traduzido por Maria Eu

quinta-feira, abril 02, 2015

Marcas

(David Anthone)


Ficara-lhe uma sombra na esquina da alma. Era Primavera. Tentara a velha técnica da limpeza geral que vira antepassados usar antes da Páscoa. Mas a sombra, essa, nem sequer  se desvaneceu.


Do amor primeiro

Tu já sabias, Manoel, em 1942, como contar do amor primeiro. Carlitos e Teresinha, os meninos que ficaram no coração de muitos de nós.




quarta-feira, abril 01, 2015

Livro inacabado


Maria do Carmo inquieta-se. Cansaço. Muito. Viagens curtas e rápidas. Inspecções. Hospitais. Grupos de pessoas. Um agora, outro mais logo. Desgasta-se em conversas que lhe ferem os ouvidos e a boca enquanto se ausenta por dentro. Senta-se no escritório, cruza e descruza as pernas na leitura de um livro que nunca fora capaz de acabar. Olha, nervosamente, em volta. As chaves do carro estão ali. Só o conduziu uma vez. Potente, desportivo, veloz, muito veloz. Levanta-se de um salto, agarra as chaves e desce as escadas, duas a duas, até à garagem. (foda-se! esqueci-me dos documentos!) Volta atrás e procura a carteira. Corre de novo. Parece que o mundo lhe foge. As estradas lhe fogem. Os estofos de couro ainda cheiram a novo. Tem que pensar como fazer com as mudanças automáticas. Arranca um pouco aos soluços, vai avançando para a rua e, logo, em direcção à autoestrada. Começa a acelerar. Cento e quarenta é o habitual. Cento e sessenta. Cento e oitenta. Ah! Que se lixe! O pé pesa mais e mais, 220, marca o indicador de velocidade. Quer mais. Atinge os 240. Voa do lado esquerdo. Conhece bem o trajecto. Sabe que, lá à frente, há uma curva apertada. (e se?) Respira fundo e desacelera. (hoje, não!) Segue em condução rápida e desportiva, sentindo o roncar do motor. Em pouco tempo, estará em casa, a ler o livro que não terminou.