segunda-feira, junho 21, 2021

Hoje, o futuro.

(Marc Chagall)


Durante quase toda a vida, Joana pensara no futuro.

Primeiro, quando seria capaz de ler os livros colocados na estante mais alta da sala. Depois, quando lhos permitiriam ler.

Pelos seus 10 anos, perguntava-se como seria “ser mulher”. Ouvia as conversas sussurradas das mais velhas e não se lhe afigurava coisa de muito interesse. De grande interesse, por outro lado, eram as perspectivas de descobrir a que saberia um beijo, daqueles longos e apaixonados dos romances, lidos aos 13 anos.

O beijo veio aos 15. Não foi longo nem apaixonado. Oh, desilusão! Ficou o futuro prometendo melhor. E foi! Paixão, ardor, namoro dos 17! Nem imaginava outro assim! Mas houve outros beijos, de outros lábios. Mais os beijos que os lábios, é certo, mas bons por demais, antevendo não desapontarem.

Universitária, sonhava com a profissão. 

Curiosamente, chegou um tempo em que o futuro era o agora. Celebrava os momentos como se fossem únicos e últimos. Os livros começaram a ser (re)lidos ainda com mais entusiasmo e os beijos (ah, os beijos), sempre ardentes e demorados.


(Gustavo Santaolalla - Alma)

sexta-feira, junho 11, 2021

Dia de Todos os Santos

 

(Norman Rockwell)

Era no Dia de Todos os Santos que a família se reunia. Primeiro à volta da mesa, onde o peru era rei e Joana se arrepiava com a visão ávida dos tios, que atacavam as travessas com as mãos e terminavam a refeição com o queixo a pingar gordura, os dentes roxos do vinho tinto e a camisa com nódoas de várias cores, quando não com bocados de arroz ou leite-creme em versão minimalista e seca.

Enquanto os homens se arrastavam até à mesa de pedra do quintal para fumarem e acabarem com a garrafa de bagaço e as crianças jogavam ao esconde-esconde ou à macaca, as mulheres afadigavam-se para arrumarem a cozinha. No dia anterior, a elas tinha cabido a ida ao cemitério, levar os baldes, os materiais de limpeza e as flores, para as “suas” campas ficarem a brilhar e os arranjos dignos de inveja.

Juntavam-se, então, ao portão da quinta e iam, em passo lento, até ao cemitério. Uma pequena feira de vaidades, essa visita. Sussurravam-se críticas e elogios, cumprimentavam-se aqueles que só nesse dia se deslocavam à aldeia, enchiam-se os caminhos esconsos de “filhos Pródigos”.

Joana nunca gostara dessa data. Os primos mais velhos, João Maria e Manuel António, olhavam-na do alto dos seus 15 e 17 anos vividos no Porto, como se fossem príncipes e ela encolhia-se no vestido novo, soquetes brancas e sapatos de verniz devidos ao Domingo, apesar de os 14 anos já lhe permitirem umas meias de vidro e uns sapatos de meio tacão. Vingava-se a atiçar-lhes o cão e a meter-lhes minhocas pela roupa dentro!

Havia, porém, uma coisa que a incomodava ainda mais do que a atitude altiva dos primos, o tempo passado junto às campas. Jurava que os mortos se agitavam, falavam entre si e, no caso das crianças falecidas, até choravam, despertadas do seu sono.

Quando eu morrer, pensou Joana, quero ser feita em cinza. Assim, estarei em todos os lugares sem estar em lugar nenhum.


 

(Dead Can Dance Anabasis)