quarta-feira, março 30, 2016

O que vês da tua janela, Maria?

(daqui)

A sala está fria. Sento-me displicentemente à secretária, verifico a caixa de entrada das contas de email e abro um novo separador. A página do blog aparece ligeiramente desformatada. Mania de mexer no que está quieto. Clico no ícone que me leva à página em branco de uma nova mensagem. 

O que vês da tua janela, Maria? Olho para os vidros que ocupam o espaço frontal de lado a lado. Estão a precisar de ser limpos. Tem chovido e já há muito pó no ar. Dou-me conta de que nunca olhei verdadeiramente através desta janela. No entanto, já a abri e fechei inúmeras vezes. Até já a limpei cuidadosamente, com água e detergente, secando-a, de seguida, para logo lhe dar brilho com limpa-vidros e jornais velhos trazidos de casa. 
Ouve-se o ruído do trânsito, lá de baixo. Consigo distinguir o trabalhar característico do motor de um autocarro. Pelo horário, deve ser o que parte da paragem em frente para o hospital. Sempre que desço por esta hora vejo a Dona Gracinha, amparada pela filha, a subir o estribo demasiado alto para o seu metro e meio de gente curvado pelas mazelas da coluna. Vão visitar o vizinho, coitado, que está com um malzinho ruim, disseram-me, quando indaguei da sua saúde, estranhando-lhes as deslocações frequentes ao hospital.
Das vidraças empoeiradas, dizia eu, pouco vejo. Um prédio castanho onde pontuam varandas verdes, algumas ostentando plantas trepadeiras denotando pouca rega. Pensando bem, nunca vi ninguém a assomar a nenhuma delas. Talvez nunca tenha, realmente, visto nada desta minha janela, tão ampla e tão pouco usada.



domingo, março 27, 2016

Incompletude


(Helmut Newton)


Apenas quando  se entregavam,  ela recuperava o corpo inteiro: o que levava com ela e a parte que estava com ele.


quinta-feira, março 24, 2016

Pronuncio-te


(daqui)


Sacrilegio

Pronuncio tu carne
te haces verbo
entre mis labios
mis paredes en silencio
se guardan
esperan
que abras las ventanas

Descoses misterios
que nadie más escucha
y te quiebras en dos
revelando en ti
un universo entero
bajo la lluvia que soy
cuando caigo

Hay algo profano
en el vino tinto de tus venas
en el pan que como
antes de la comunión
de los espacios vacíos
que otros dejaron
pendientes

Nuestro tiempo no existe
pero él aún no lo sabe

Culmina el sacrilegio
volvemos a los cuerpos
que somos

Que San Pedro olvide mi nombre
ya no quiero salvarme


Eduardo Longa





Digo-te nas horas longas da insónia
Faço-te carne e sangue e gestos
Agitas-te em tropel nas minhas veias

Perdes-te nos caminhos do meu corpo
embriagado do perfume das magnólias
florescendo nacaradas no meu peito


Maria Eu

quarta-feira, março 23, 2016

Trocam-se beijos

(daqui)


"Trocam-se beijos por tranquilidade", rezava o enorme cartaz amarelecido na montra da loja de chocolates. Por baixo, alguém escrevera, claramente com um batôn vermelho, "Melhor não, beijos trazem mais agitação".


sexta-feira, março 18, 2016

O coração da saudade


(Brent Lynch)

"Saudade é um pouco como fome. Só passa quando se come a presença. Mas às vezes a saudade é tão profunda que a presença é pouco: quer-se absorver a outra pessoa toda. Essa vontade de um ser o outro para uma unificação inteira é um dos sentimentos mais urgentes que se tem na vida."

Clarice Lispector




Não sabia o que a inquietava. Sabia, apenas, que havia uma corrente de ar permanente, ainda que nenhuma porta ou janela parecessem abertas. Ainda agora estivera com José e ele a tivera nos braços, quente e terna. Era assim, Clara, sempre de olhos brilhantes e mãos doces, bebendo a presença de José que lhe adentrava o coração e a alma. Apenas, a cada vez que se despediam, se fazia Inverno e ventava.  

quarta-feira, março 16, 2016

Cansaço

(Kelly Rae Daugherty)

Não, não é cansaço...
É uma quantidade de desilusão
Que se me entranha na espécie de pensar,
E um domingo às avessas
Do sentimento,
Um feriado passado no abismo...

Não, cansaço não é...
É eu estar existindo
E também o mundo,
Com tudo aquilo que contém,
Como tudo aquilo que nele se desdobra
E afinal é a mesma coisa variada em cópias iguais.

Não. Cansaço por quê?
É uma sensação abstrata
Da vida concreta —
Qualquer coisa como um grito
Por dar,
Qualquer coisa como uma angústia
Por sofrer,
Ou por sofrer completamente,
Ou por sofrer como...
Sim, ou por sofrer como...
Isso mesmo, como...

Como quê?...
Se soubesse, não haveria em mim este falso cansaço.

(Ai, cegos que cantam na rua,
Que formidável realejo
Que é a guitarra de um, e a viola do outro, e a voz dela!)

Porque oiço, vejo.
Confesso: é cansaço!...

Álvaro de Campos, in "Poemas"






Pesam-lhe os braços e as pernas. Custa-lhe mover-se, falar, até pensar. Apetece-lhe parar, deitar-se, adormecer. Parece-lhe que não dorme há uma eternidade. Cansaço. Um cansaço que se entranha nos ossos e quase a paralisa. Mas não pode parar. Ainda que quase morta por dentro, há que continuar. Afinal, o mundo não se compadece com fraquezas e ela é forte, dizem.


domingo, março 13, 2016

Guia para (não) aprender Inglês


(daqui)

O novo guia da conversação em portuguez e inglez, publicado pela primeira vez em 1855, faz corar o mais incipiente falante da língua Inglesa. Pedro Carolino, português bem intencionado, escreveu um livro com o objectivo de ensinar a falar Inglês quando o próprio tinha dele um conhecimento no mínimo primitivo. 
Uma obra que seria didáctica transformou-se num livro de humor, traduzido para Inglês com o título English as she is spoken, foi publicado em Londres em 1883 e, no mesmo ano, em Boston, numa edição prefaciada por Mark Twain.
Escreveu Twain "Nobody can add to the absurdity of this book, nobody can imitate it successfully, nobody can hope to produce its fellow; it is perfect, it must and will stand alone: its immortality is secure." Sobre o Carolino, diz ser um «honest and upright idiot».
São inúmeras as "pérolas" que resultam da tradução literal que, para além de tudo, teve por base um livro de conversação de Português-Francês. 
Citam-se alguns exemplos hilariantes:

Familiar Phrases  

Go to send for. 
Have you say that? 
Have you understand that he says? 
At what purpose have say so? 
Put your confidence in my. 
At what o'clock dine him? 
Apply you at the study during that you are young. 
Dress your hairs. 
These apricots and these peaches make me and to come water in the mouth.
I am catched cold in the brain. 
I dead myself in envy to see her.

Familiar Dialogues 

What o'clock is it? 
What o'clock you think it is? 
I think is not yet eight o'clock. 
How is that, eight o'clcok! it is ten 'clock struck. 
It must then what I rise me quickly.

With a hair dresser 

Your razors, are them well? 
Yes, Sir. 
Comb-me quickly; don't put me so much pomatum. What news tell me?

The fishing 

That pond it seems me many multiplied of fishes. Let us amuse rather to the fishing. 
I do like-it too much. 
Here, there is a wand and some hooks. 
Silence! there is a superb perch! Give me quick the rod. 
Ah! there is, it is a lamprey. 
You mistake you, it is a frog! dip again it in the water.



*Post inspirado neste, do blogue Certas Palavras. Para aceder ao texto completo do livro de Pedro Carolino, clicar aqui.

quinta-feira, março 10, 2016

Um frasco de colorau

(Lidia Wylangowska)

Era depois das cinco da tarde, a escola já fechada, sala limpa pela D.ª Maria José, flores frescas na jarra da secretária, retratos do Presidente da República e do Presidente do Conselho de Ministros sem um grão de pó, e crucifixo a brilhar entre ambos, que Clarinha ia fazer recados à mãe. Saía pelo portão verde, seguia pelo acesso à casa uns cinquenta metros e virava à esquerda para seguir o caminho que ia desembocar na igreja. À volta da igreja ficava tudo o que era importante para os habitantes da aldeia, a venda do Sr. Joaquim, a loja da Sr.ª Quina (que vendia desde cuecas de pano até vassouras e detergentes) e a casa da Zefa costureira. 
Do que Clarinha gostava mesmo era de ir à venda. Uma odisseia, essa jornada! Todo o caminho de nota ou moedas apertadas na mão, a repetir, baixinho, o que haveria de trazer para casa: um quilo de arroz, um quarto de farinha-milha, vinte e cinco tostões de colorau e um quartilho de vinho. Tantas vezes, demorando-se mais do que seria necessário a apanhar pedrinhas ou a olhar para um ninho. 
Muito haveria de recordar o dia em que pedira vinte e cinco escudos de colorau e todos se tinham desatado a rir a bandeiras despregadas. Oh, Clarinha, tu queres levar os teus pais à falência ou vais barrar um bácoro inteiro com colorau? E lá veio, envergonhada, dizer à mãe que não lhe tinham aviado o pedido para ouvi-la rir, também. Vinte e cinco escudos de colorau, menina? Credo!
Lembrara-se dessas incursões à venda quando vira, na prateleira do supermercado, um frasco de vidro com 45g de colorau, marcado por onze euros. 


segunda-feira, março 07, 2016

Acordar


(Luísa, no blog À Esquina da Tecla)

Pisava vidros. Coloridos, os vidros, mas cortantes. Fora um tempo de escuridão, dizia. A dor no peito. Os pesadelos em que havia escadas, quedas, corpo estropiado a não deixar que saísse de casa. Não queria nada nem ninguém. Não se queria. Rastejou para fora do desespero a custo. Havia sempre comprimidos na mesa de cabeceira e as visitas tinham deixado de aparecer quando se cansaram dos olhos fixos num ponto qualquer para lá das suas cabeças e dos lábios cerrados. 
Fora num dia de nevoeiro, afirmava, tão denso como o que sentia a penetrar-lhe o corpo até aos ossos, que vira um pássaro ferido na asa direita a debater-se pela vida. Erguia-se nas patas frágeis e procurava o abrigo do arbusto que, reparara apenas nesse momento, explodia em flores rubras. Chegou lá precisamente quando o gato amarelo da vizinha saltou do muro, elástico e perfeito. Desde aí, ela acordava cedo para ficar na janela a seguir a recuperação do pássaro. Entreabria as vidraças e atirava-lhe migalhas de pão. Não tardava que  o convalescente mostrasse a cabeça e bicasse a dádiva. Primeiro devagar, depois, à medida que os dias decorriam, mais agilmente. Numa manhã soalheira, quando abrira a janela, lá estava ele, de pé no parapeito, olhando-a sem medo e num chilreio alegre que só ouvido!
Nessa tarde, perfumou-se, vestiu-se, maquilhou-se e foi passear.  

sexta-feira, março 04, 2016

Poda

(Odilon Redon)

O azul de ontem é o cinzento de hoje. Soprando furiosamente, o vento assobia na esquina da sala onde me sento a trabalhar. Páro de vez em quando e olho pela janela. Funcionários da Câmara, um deles empoleirado numa geringonça que não a governamental, procedem ao corte dos ramos das árvores onde, no azul de ontem, se empoleiravam pássaros em alegre chilrear. Costumo ficar a vê-los, aos pássaros, voando em loop, com manobras dignas de um avião em festival aéreo e, melhor ainda, sem risco  de caírem. 
Entristeço-me, por isso, com o corte limpo da máquina que deixa as árvores despidas de braços. Esses braços que se erguem ao céu em prece ou agradecimento, não sei qual dos dois, e servem de poiso aos pássaros, quer em descanso, quer em maior permanência, nos ninhos equilibristas.
Talvez seja do cinza-chumbo do céu, ou da chuva batida pelo vento, mas sinto dores ali, onde os braços se unem ao tronco, como se fosse a mim que os cortassem. Árvore amputada.


quinta-feira, março 03, 2016

Fuga

(daqui)


Tenho frio. Chove, aqui, e quando não chove, a lama não desaparece. O frio aperta e o cheiro é nauseabundo. Não tomo banho há muitos dias e os que se amontoam nos cobertores cinzentos ao meu lado também não. Há um travo amargo na minha boca, a cada dia. Sabe a restos de pão e a leite em pó. Sabe a espera desesperançada. Deito-me no catre húmido e fétido e pergunto-me se valeu a pena ter escapado às rajadas das metralhadoras e às bombas. Não morri no meu país em dia certo para morrer aos poucos longe dele.


terça-feira, março 01, 2016

Das danças e dos arpejos



(Anisia Kuzmina)



Arder como se os teus dedos
orquídeas rajadas a sangue
brancas de neve as coxas
traços ensandecidos, rasgos

Arderes como se os meu dedos
pontas de bailarina russa
roxo de desejo o sexo
desvairadas danças, arpejos