terça-feira, fevereiro 27, 2018

Dilúvio

(Pupsikas, in Deviantart)

Há muito tempo que não me cruzava com Maria Antónia. Hoje, enquanto corria na rua, guarda-chuva aberto em protecção da água que tanto se fizera desejar, vi-a. Refugiara-se num recanto abrigado onde se intersectavam as varandas dos prédios azuis, cabelo e roupa encharcados, olhar fixo num ponto imaginário. Inverti o passo de corrida para lhe dar um beijo. Que sim. Que estava bem. Que não era nada daquilo que diziam. E eu, sem saber do que diziam, fiquei a olhá-la, muda. Foi então que choveram os olhos de Maria Antónia e o corpo molhado tremeu, tremeu, em soluços convulsivos, sem que disséssemos uma só palavra, para ali, abraçadas, como se o mundo dela desabasse sobre os meus ombros.
Que não. Que não teria muito mais tempo para andar à chuva, nem  para esperar que o seu João viesse, lá do outro lado do Atlântico. Talvez uma semana.
E não houve guarda-chuva que me salvasse desse dilúvio de desventura.


domingo, fevereiro 18, 2018

Menino


(Paul Bond)


Carlos envelhecera sem se dar conta. Ainda agora era o menino que corria em brincadeiras de esconde-esconde, soltava o pião e procurava tesouros escondidos na areia da praia.
O mar era já ali e o sol não precisava ser quente para entrar nas ondas mansas e ficar, boiando, olhos postos no céu, a sonhar com aventuras mil, voando com as gaivotas que rivalizavam com os farrapos brancos das nuvens.
Nada mudara. O mar e o céu, azuis de doer, o branco das gaivotas e das nuvens, ou a sua capacidade de sonhar. Sabia que havia rugas finas nos olhos que agora olhavam o céu e que os seus braços abertos abraçavam mais água, mas no seu coração corriam meninos, lutavam piratas, e havia beijos roubados na areia dourada.
E, de repente, o mar entrou-lhe em casa.




terça-feira, fevereiro 13, 2018

O traço de um (a)braço

                        (Gustav Klimt - detalhe de The tree of  Life)


Passo a passo
traço o laço
do enlace
Faço e desfaço
o desenho

de um (a)braço


segunda-feira, fevereiro 05, 2018

Asas contrafeitas

(Amy Judd)

Naquele tempo, aos homens bons era dado o dom de poderem ter asas. Era, pois, comum, verem-se homens alados em passeio pelas avenidas, nas salas de cinema (onde, note-se, tornavam a visão dos demais deveras difícil), nos supermercados, enfim, em todos os lugares.
Tudo parecia maravilhoso. Aqueles a quem cresciam asas resplandeciam, orgulhosos do atributo, e os que as não tinham procuravam comportar-se de maneira a atingirem a forma alada.
Não tardou, porém, que muitos se cansassem da monotonia das asas, todas tão brancas e, sobretudo, todas iguais. Começaram a pintá-las de cores diversas, a ornamentá-las com jóias e bordados, mal disfarçando os olhares de admiração e inveja quando algumas brilhavam  mais ao sol, ou se destacavam pela originalidade.
Pior do que essa ânsia de terem asas diferentes e melhores do que as dos outros, era o facto de já ninguém saber quais os critérios para que alguém pudesse tê-las. Tantas havia que chegava a ser difícil andar na rua em determinadas horas. 
Numa manhã fria de Fevereiro, a cidade acordou com a frase "Não às asas contrafeitas!" pintada por todos os muros. Nas caixas de correio, desabituadas de terem uso, um panfleto alertava para o logro do negócio das asas. Os homens bons, afinal, podiam nunca ter umas, enquanto outros, espertalhaços, conseguiam um par falsificado e se pavoneavam do alto da sua moral de pechisbeque.