quinta-feira, agosto 07, 2014

Vento de Verão com dedicatória

Descalçou-se, em ligeiro desiquilíbrio. O pára-vento numa mão, a toalha e o saco colorido na outra. Quase caiu ao desapertar as fivelas das sandálias brancas que segurou nas pontas dos dedos até chegar ao recanto das dunas. O vento fustigava a praia, trazendo nuvens de areia que magoavam as pernas. Desertavam os veraneantes enquanto ela chegava. Louca! Pensariam os que abandonavam o areal. 
Sem hesitar, a mulher pousou no chão o que transportava, montou o pára-vento, estendeu a toalha, tirou um livro do saco e, indiferente, deitou-se de barriga para baixo e embrenhou-se na leitura. Leu-o do princípio ao fim. Só então se levantou, sacudiu a areia do cabelo revolto e da toalha, recolheu o pára-vento e as sandálias, e foi embora, deixando ali o livro. O vento parara. O rapaz que viera passear o cão pegou no livro abandonado, "Navegação de acaso", de Nuno Júdice. Na primeira página, uma dedicatória: À Clara, para ler na praia onde fomos felizes. Beijo apertado, António.

 (Kumi Yamashita)


PREPARATIVOS DE VIAGEM

Ao fazer a mala, tenho de pensar em tudo o que lá
vou meter para não me esquecer de nada. Vou ao
dicionário e tiro as palavras que me servirão
de passaporte: o equador, uma linha
de horizonte, a altitude e a latitude,
um lugar de passageiro insistente. Dizem-me
que não preciso de mais nada; mas continuo
a encher a mala. Um pôr-do-sol para que
a noite não caia tão depressa, o toque dos teus
cabelos para que a minha mão os não esqueça,
e aquele pássaro num jardim que nasceu
nas traseiras da casa, e canta sem saber
porquê. E outras coisas que poderiam
parecer inúteis, mas de que vou precisar: uma frase
indecisa a meio da noite, a constelação
dos teus olhos quando os abres, e algumas
folhas de papel onde irei escrever o que a tua ausência
me vem ditar. E se me disserem que tenho
excesso de peso, deixarei tudo isto em terra,
e ficarei só com a tua imagem, a estrela
de um sorriso triste, e o eco melancólico
de um adeus.


Nuno Júdice, in "Navegação de Acaso" 



12 comentários:

  1. Sou cúmplice
    de Nuno Júdice
    Contudo
    nunca me disseram ter excesso de peso
    pois viajo sempre sem bagagem
    meto um rio na algibeira traseira
    e toda a tralha
    que mal lhe cabe na mala
    levo-a debaixo do braço

    Tenho é pena de não ter, na minha escrita
    "Navegação de Acaso"
    com dedicatória tão bonita

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    1. Nada como saber transportar a bagagem, ainda que sem mala.

      Beijinhos Marianos, Rogério! :)

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  2. O verão dá azo a tanta coisa.

    A tua inspiração tem cheiro a maresia, de areia colada aos pés.

    Gostei muito.

    Beijinhos

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    1. Mistura de memórias com sonhos...
      Obrigada!

      Beijinhos Marianos, Pérola! :)

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  3. Conseguiste com que a saudade do tempo, em que as dunas eram minhas conhecidas e numeradas,chegasse até mim...ai esse mar sem fim e aquele imenso areal brilhante, finíssimo e sensual...

    Boas leituras marítimas...
    Beijinhos e bom fim de semana***

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    1. Saudade, quando chega é danada!!

      Beijinhos Marianos amigos, Maria! :))

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  4. Queria ser prolífera em palavras para expressar o quanto gostei deste post.
    Um beijinho

    ahh e sou fã da Anne Brun!

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    1. Muito obrigada, S!

      Beijinhos Marianos e bom fim de semana! :))

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  5. Esse Vento de Verão Maria, deixou um certo aroma de mar no ar.

    A arte de viajar...
    A gente sempre deve sair à rua como quem foge de casa,
    Como se estivessem abertos diante de nós todos os caminhos do mundo.
    Não importa que os compromissos, as obrigações, estejam ali...
    Chegamos de muito longe, de alma aberta e o coração cantando...!:)

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    1. Os sonhos de Verão são mais doces...

      Beijinhos Marianos, Legionário! :)

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  6. A única coisa que destoou foi o livro ter ficado abandonado na praia, depois de Clara o ler. Fiquei a pensar porquê e acho que foi do aperto do beijo do António. Um beijo apertado só se dá aos filhos. E é se eles deixarem.
    (mas apertado pode ser o abraço)

    Beijinhos livres, Maria! :-)

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    1. Beijo apertado pode ser daqueles looooooongooooooos, ou então dado num abraço, sim! :)
      O livro abandonado pode ser um sinal de partida para outra etapa, não sei. Hei-de perguntar à Clara!

      Beijinhos Marianos repenicados, Susaninha! :)

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