quinta-feira, dezembro 28, 2023

Útero

Maria Antónia deu por si a mudar por dentro. Tinha dores (de crescimento?) pelo corpo inteiro. Até para dormir se estranhou. Ela, que sempre encontrara consolo a adormecer de barriga para baixo, uma perna encolhida e outra esticada (tal e qual o pai), mãos debaixo da almofada de cetim, viu-se em posição fetal, enroscada em si mesma, evitando mexer-se um milímetro.

Atacavam-na lembranças de anos remotos, criança viva em correrias, gargalhadas a ecoarem na casa grande e no quintal. A mãe a manejar com destreza a agulha de croché, dando vida a colchas que dizia irem, um dia, cobrir as camas de sua casa. Sua? Pois se aquela era a sua casa!!!

O pai não costumava falar no futuro, à excepção da poupança! Sempre a ensinara que não podia deixar a luz acesa num aposento vazio ou que a marmelada a secar na janela era para comer quando houvesse uma ocasião especial (a lembrar-lhe da vez em que ela, matreira e ingénua, fora comendo o conteúdo de uma tigela, deixando o redondo da "capa" dura a disfarçar).

Naquele dia de Inverno, deixou-se ficar no quente dos lençóis, arredondou-se o mais possível, como que a abraçar-se, e desnasceu.


6 comentários:

  1. "Desnascer" é tão "Mia Couto", adoro as histórias dele e esta sua que muito me fez lembrar as dele lá no outro lado do atlântico. Bom ano Maria.

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  2. Olá, ME, sempre trazes aqui magias e coisas lindas.
    Útero: um filão de segredos lunares onde cabe tão bem a concavidade vazia da marmelada curada à janela. Toda a gente, agora, mais descansada, já não toma ninguém de surpresa e a agulha de crochet caiu em desuso. E o paternal cuidado, ditado pela precisão, passou à história?
    Pode a Maria Antónia desnascer e anunciar tranquila a maravilha da lua cheia.
    Beijo.

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    1. Tens sempre a maravilha da palavra que transforma a caixa de comentários em beleza!
      Obrigada!
      Beijinhos, Agostinho.

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