segunda-feira, janeiro 30, 2017

Já morri e renasci


(Mark Rothko)

Já vivi depois de muitas mortes

morta na espera do grito inicial
demorava, mas veio, depois do vómito
cinquenta e um centímetros de altura
rosto marcado pela luta primeira 

morta de telefone na mão
foi agora, há destroços na estrada
viva ao segundo telefonema
a voz dela, da que te embalou

morta nas letras a negro na carta
ainda havia graus - Grau IV
viva, de bata azul, o medo frio
as palavras não - livre - descansar

morta no corpo ferido dele
mãe, não vejo, mãe, mãe
viva, a custo, nas salas brancas
no seu olhar menos preciso, mas seu


sábado, janeiro 28, 2017

Para lá do olhar


Mariana, a mulher de olhar doce e fundas olheiras, chegara à empresa há pouco mais de um ano. Era Verão e estranharam-lhe as mangas compridas e as blusas de botões apertados até ao colarinho, embrulhadas naquela quietude tímida que trazia pela manhã e a deixava quase sempre calada até à hora de saída. De nada lhe valia a educação impecável ou o trabalho dedicado. As colegas de escritório não lhe perdoavam o distanciamento nas conversas durante as pausas para café ou as ausências nos almoços  de convívio mensais. 
"- Já viste a deslavada da contabilidade? Pffffffff! Sempre de olhos baixos, sempre coberta da cabeça aos pés!"
"- Coitada, deve ter uma doença de pele, para se cobrir daquela maneira!"
Foi então que, numa manhã de segunda-feira, Mariana tropeçou no tapete da porta de entrada, batendo com a cabeça e desmaiando. Chamaram o 112 e João Carlos, o telefonista que em tempos fizera dois anos na escola de enfermagem, começou a desapertar-lhe a blusa na tentativa de a ajudar a respirar melhor. Aos olhos de todos, apareceu a justificação para tanto cuidado. O peito estava coberto de cicatrizes, assim como o braço desnudado pelo técnico do INEM para medir a tensão.
Houve um murmúrio inquieto. Soube-se mais tarde que Mariana nem era sequer o nome verdadeiro da rapariga da contabilidade. Há muito que fugia de um companheiro violento que quase a matara de pancada porque ela se atrevia a ir tomar café sem ele.


domingo, janeiro 22, 2017

Como a água à sede do deserto


MA PIÙ CHE MAI...

Dall'inizio mi manchi,
come l'acqua alla sete del deserto.

Mi manchi quando ti cammino a fianco:
non vanno nella  stessa direzione,
se non breve tratto,
due treni su binari paralleli.

Mi manchi quando sono con un'altra(o)
come manca la freccia alla ferita
che per la sua estrazine si dissangua.

Ogni giorno mi manchi; e in ogni dove
perché all'assenza di te
non c'è un altrove.

Corrado Calabrò


(Salvador Dali)


MAIS QUE NUNCA

Desde o início faltas-me
como a água à sede do deserto.

Faltas-me quando ando ao teu lado:
não procedem na mesma direcção,
senão por breve troço,
dois comboios em carris paralelos.

Também me faltas quando estou com outra(o)
como falta a flecha à ferida que pela sua extracção se dessangra.

Cada dia me faltas; e em toda a parte
porque para a ausência de ti
não há algures.

Corrado Calabrò, traduzido por Giulia Lanciani no livro A penúria de ti enche-me a alma



terça-feira, janeiro 17, 2017

Era uma vez uma buganvília



Ela e a buganvília  tinham crescido par a par. Teria uns três anos quando a mãe trouxe aquele arbusto pequenino e a chamou para a ajudar a plantá-lo ao lado das escadas da varanda. Conseguia recordar a sensação estranha das mãos na terra húmida, orientadas pelas da mãe. 
"-Devagar, Clarinha! Vamos carregar mais um bocadinho junto ao pé. Olha que linda, vês?"
"-Assim, mãe? As mãos 'stão sujas! Não faz mal?"
Sentava-se ao lado dela, no primeiro degrau, com a boneca Marta, o urso Tino e os tachos e panelas de alumínio comprados na última romaria, e ali se deixava ficar, conversando, como se fossem duas amigas.
E assim foi subindo nas escadas, à medida que a buganvília trepava, espalhando sombra e flores rosadas. A Marta e o Tino foram ficando na prateleira, sendo substituídos pelos livros delicodoces de Max du Veuzit (Clara sabe, hoje, que Max era, afinal, pseudónimo de  Alphonsine Vavasseur-Archer Simonete, num tempo em que às mulheres não ficava bem escrever romances), retirados da poeira do sótão e em cujas páginas havia sempre um amor difícil mas que terminava bem. 
O arbusto era já bastante forte quando Eça de Queirós apareceu em casa, numa colecção novinha, encadernada a verde, com letras douradas. Foi um amor tão grande, mas tão grande, que não leu mais nada durante aquelas féria de Verão. Chegou, até, a ler passagens de A Relíquia em voz alta e a emocionar-se até às lágrimas com a história da morte do bebé de Amélia n'O Crime do Padre Amaro (mal sabia que iria enjoar-se dessa história quando a tivesse que estudar e decorar as versões que dela  escrevera Eça até à final, apurada para não ferir tanto a susceptibilidade dos leitores, retirando gradualmente qualquer sopro de vida à criança no momento do afogamento). Leitura pela rama e ingénua mas que a fez entrar num outro mundo, onde as letras não vinham apenas com estruturas lineares ou histórias de amor lamechas. 
Uma buganvília sabida, era o que era, aquela que se içava pela varanda fora, torneando-a em cachos floridos, servindo de refúgio a pássaros, abelhas, borboletas, lagartixas e, imagine-se, a meninas.



sábado, janeiro 14, 2017

Confissão


(Bartolomeo Schedoni - The Martyrdom of Saint Sebastian)
"(...) às vezes quando vou à confissão com outros tipos da escola o padre manda a gente esperar pela nossa vez na sacristia que é pra não fazermos barulho na igreja e então na sacristia há lá uns santos e umas santas e eu gosto sobretudo de ver o santo Espedido porque parece um gajo daqueles filmes que se passam antigamente porque tem uma espécie de armadura e tudo mas esse não é o problema o problema é a santa Filomena e também a santa Madalena que são muito bonitas e até o são Sabastião a modos que me incomoda porque é tão bonito que parece uma miúda a gente só vê que não é uma miúda porque está quase nu e as santas não se põem assim e então o que acontece é que se eu não tinha pecado em pensamento antes de entrar na sacristia quando vou pró confessionário aí é que já pequei." 

João Aguiar, in Navegador Solitário





Clarinha entrou na sala num repente, cabelo em desalinho da correria desde a igreja.
"- Oh, mãe, o Sr. Padre fez-me perguntas esquisitas!"
"- Como assim, esquisitas, menina? Esta canalha!"
"- Sim! Fui à confissão esta manhã, depois da catequese, e o Sr. Padre... Mas não é pecado, eu dizer? Foi na confissão! Depois não tenho que me confessar disso?"
"- Mau! Diz lá que depois eu logo resolvo esse problema! Diabo da miúda!"
"- Eu disse que tinha batido no Zé da Mena e que (corou) menti ao pai ontem ao dizer que a mana estava no quarto quando estava ao portão com o José. Então, ele perguntou: E mais nada? Não tens tido pensamentos impuros? E eu nem sei o que ele queria dizer com aquilo, mãe! E repeti que só tinha aqueles pecados e mais nenhuns e ele a rir-se. E continuava: Tens a certeza que ainda não pensas em rapazes? E então eu..."
A mãe, com expressão carregada, interrompeu-a:
"- Tu nem me contes mais nada! Tu nem me contes mais nada!" Ia a sair da sala mas, virou-se para trás e ordenou:"- Tu nunca mais vais ao confessionário, ouviste? Nunca mais!"

Nem Clarinha, nem mais ninguém da família. Dali em diante, cada um se passou a confessar a Deus, em "ligação directa".




quinta-feira, janeiro 12, 2017

Tango


(Fabian Perez)

Pneumotórax

Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.

Mandou chamar o médico:
- Diga trinta e três.
- Trinta e três… trinta e três… trinta e três…
- Respire.

- O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado.
- Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
- Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.


Manuel Bandeira




E então, ainda que tomado pela vida que poderia ter sido e não fora, levantou-se, vestiu o fato preto de bom corte, onde sobressaía a camisa imaculadamente branca, ligou a Maria Eduarda pedindo-lhe que viesse e pôs a tocar um tango argentino.


sábado, janeiro 07, 2017

Escudo

(Alan McGowan)


Ela mantinha-se dentro de um limite de segurança. Saía para apanhar sol ou para andar à chuva, mas aquele círculo pairava à sua volta como se fosse um escudo. Podiam entrar nele a uma ordem sua e nunca sem antes serem escrutinados naquilo que tivessem de mais íntimo, as ideias.
Um dia, sem aviso prévio, ele entrou de rompante, e ela, de razão perdida e sem poder anímico para restaurar a defesa, ficou despida da sua couraça, à espera do dia seguinte.


terça-feira, janeiro 03, 2017

Festa na aldeia

(Lori Neill)

A música estridente acordou-a de um sono profundo. Enfiou a cabeça debaixo do edredão, resmungando contra a concertina que ecoava, juntamente com a voz aguda de uma mulher, entrando-lhe portadas adentro, a par com uma réstia de sol. De nada lhe valeu tentar abafar o ruído. Maldita aldeia! Os altifalantes que, se bem se recordava, eram colocados estrategicamente na torre da igreja, faziam chegar as escolhas duvidosas da empresa contratada pelo mordomo da festa a quilómetros de distância. 
Era isso! A festa! Sorriu, inconscientemente. O que agora a irritava, outrora fizera as delícias de uma menina. Escapulia-se bem cedo para cirandar pelo adro da igreja a observar todos os preparativos. Rira-se com os nós nos fios da aparelhagem de som, com o ar esgrouviado do padre, de pijama às riscas e chinelos, a dar instruções para o arranjo das flores que as irmãs Loureiro tinham deixado meio descompostas, e do trambolhão que o sacristão dava sempre que subia ao manco e tosco banco de madeira, na tentativa frustrada de limpar a fuligem das lamparinas do altar-mor. Sonhara com príncipes e princesas quando os pares de namorados dançavam, elas de vestidos com folhos, decotes mais atrevidos, o ouro típico das Minhotas nas orelhas e a rodear-lhes o pescoço, descendo-lhes pelo colo, eles de fato e gravata, com o cabelo cuidadosamente penteado, húmido de tanta brilhantina.
Mas o melhor de tudo, o melhor mesmo, era o vestido novo que a mãe lhe mandava fazer na Zulmirinha, a barriga a doer de tanto algodão doce, roscas e massapães e... o beijo que o José lhe roubara no escuro da barraca dos brinquedos de madeira!
Levantou-se, arranjou-se a preceito, e percorreu o caminho de terra batida até que a música lhe ferisse os ouvidos.