Mariana, a mulher de olhar doce e fundas olheiras, chegara à empresa há pouco mais de um ano. Era Verão e estranharam-lhe as mangas compridas e as blusas de botões apertados até ao colarinho, embrulhadas naquela quietude tímida que trazia pela manhã e a deixava quase sempre calada até à hora de saída. De nada lhe valia a educação impecável ou o trabalho dedicado. As colegas de escritório não lhe perdoavam o distanciamento nas conversas durante as pausas para café ou as ausências nos almoços de convívio mensais.
"- Já viste a deslavada da contabilidade? Pffffffff! Sempre de olhos baixos, sempre coberta da cabeça aos pés!"
"- Coitada, deve ter uma doença de pele, para se cobrir daquela maneira!"
Foi então que, numa manhã de segunda-feira, Mariana tropeçou no tapete da porta de entrada, batendo com a cabeça e desmaiando. Chamaram o 112 e João Carlos, o telefonista que em tempos fizera dois anos na escola de enfermagem, começou a desapertar-lhe a blusa na tentativa de a ajudar a respirar melhor. Aos olhos de todos, apareceu a justificação para tanto cuidado. O peito estava coberto de cicatrizes, assim como o braço desnudado pelo técnico do INEM para medir a tensão.
Houve um murmúrio inquieto. Soube-se mais tarde que Mariana nem era sequer o nome verdadeiro da rapariga da contabilidade. Há muito que fugia de um companheiro violento que quase a matara de pancada porque ela se atrevia a ir tomar café sem ele.
Ela e a buganvília tinham crescido par a par. Teria uns três anos quando a mãe trouxe aquele arbusto pequenino e a chamou para a ajudar a plantá-lo ao lado das escadas da varanda. Conseguia recordar a sensação estranha das mãos na terra húmida, orientadas pelas da mãe.
"-Devagar, Clarinha! Vamos carregar mais um bocadinho junto ao pé. Olha que linda, vês?"
"-Assim, mãe? As mãos 'stão sujas! Não faz mal?"
Sentava-se ao lado dela, no primeiro degrau, com a boneca Marta, o urso Tino e os tachos e panelas de alumínio comprados na última romaria, e ali se deixava ficar, conversando, como se fossem duas amigas.
E assim foi subindo nas escadas, à medida que a buganvília trepava, espalhando sombra e flores rosadas. A Marta e o Tino foram ficando na prateleira, sendo substituídos pelos livros delicodoces de Max du Veuzit (Clara sabe, hoje, que Max era, afinal, pseudónimo de Alphonsine Vavasseur-Archer Simonete, num tempo em que às mulheres não ficava bem escrever romances), retirados da poeira do sótão e em cujas páginas havia sempre um amor difícil mas que terminava bem.
O arbusto era já bastante forte quando Eça de Queirós apareceu em casa, numa colecção novinha, encadernada a verde, com letras douradas. Foi um amor tão grande, mas tão grande, que não leu mais nada durante aquelas féria de Verão. Chegou, até, a ler passagens de A Relíquia em voz alta e a emocionar-se até às lágrimas com a história da morte do bebé de Amélia n'O Crime do Padre Amaro (mal sabia que iria enjoar-se dessa história quando a tivesse que estudar e decorar as versões que dela escrevera Eça até à final, apurada para não ferir tanto a susceptibilidade dos leitores, retirando gradualmente qualquer sopro de vida à criança no momento do afogamento). Leitura pela rama e ingénua mas que a fez entrar num outro mundo, onde as letras não vinham apenas com estruturas lineares ou histórias de amor lamechas.
Uma buganvília sabida, era o que era, aquela que se içava pela varanda fora, torneando-a em cachos floridos, servindo de refúgio a pássaros, abelhas, borboletas, lagartixas e, imagine-se, a meninas.
"(...) às vezes quando vou à confissão com outros tipos da escola o padre manda a gente esperar pela nossa vez na sacristia que é pra não fazermos barulho na igreja e então na sacristia há lá uns santos e umas santas e eu gosto sobretudo de ver o santo Espedido porque parece um gajo daqueles filmes que se passam antigamente porque tem uma espécie de armadura e tudo mas esse não é o problema o problema é a santa Filomena e também a santa Madalena que são muito bonitas e até o são Sabastião a modos que me incomoda porque é tão bonito que parece uma miúda a gente só vê que não é uma miúda porque está quase nu e as santas não se põem assim e então o que acontece é que se eu não tinha pecado em pensamento antes de entrar na sacristia quando vou pró confessionário aí é que já pequei."
João Aguiar, in Navegador Solitário
Clarinha entrou na sala num repente, cabelo em desalinho da correria desde a igreja.
"- Oh, mãe, o Sr. Padre fez-me perguntas esquisitas!"
"- Como assim, esquisitas, menina? Esta canalha!"
"- Sim! Fui à confissão esta manhã, depois da catequese, e o Sr. Padre... Mas não é pecado, eu dizer? Foi na confissão! Depois não tenho que me confessar disso?"
"- Mau! Diz lá que depois eu logo resolvo esse problema! Diabo da miúda!"
"- Eu disse que tinha batido no Zé da Mena e que (corou) menti ao pai ontem ao dizer que a mana estava no quarto quando estava ao portão com o José. Então, ele perguntou: E mais nada? Não tens tido pensamentos impuros? E eu nem sei o que ele queria dizer com aquilo, mãe! E repeti que só tinha aqueles pecados e mais nenhuns e ele a rir-se. E continuava: Tens a certeza que ainda não pensas em rapazes? E então eu..."
A mãe, com expressão carregada, interrompeu-a:
"- Tu nem me contes mais nada! Tu nem me contes mais nada!" Ia a sair da sala mas, virou-se para trás e ordenou:"- Tu nunca mais vais ao confessionário, ouviste? Nunca mais!"
Nem Clarinha, nem mais ninguém da família. Dali em diante, cada um se passou a confessar a Deus, em "ligação directa".
Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos. A vida inteira que podia ter sido e que não foi. Tosse, tosse, tosse.
Mandou chamar o médico: - Diga trinta e três. - Trinta e três… trinta e três… trinta e três… - Respire.
- O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão direito infiltrado. - Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax? - Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.
E então, ainda que tomado pela vida que poderia ter sido e não fora, levantou-se, vestiu o fato preto de bom corte, onde sobressaía a camisa imaculadamente branca, ligou a Maria Eduarda pedindo-lhe que viesse e pôs a tocar um tango argentino.
Ela mantinha-se dentro de um limite de segurança. Saía para apanhar sol ou para andar à chuva, mas aquele círculo pairava à sua volta como se fosse um escudo. Podiam entrar nele a uma ordem sua e nunca sem antes serem escrutinados naquilo que tivessem de mais íntimo, as ideias.
Um dia, sem aviso prévio, ele entrou de rompante, e ela, de razão perdida e sem poder anímico para restaurar a defesa, ficou despida da sua couraça, à espera do dia seguinte.
A música
estridente acordou-a de um sono profundo. Enfiou a cabeça debaixo do edredão,
resmungando contra a concertina que ecoava, juntamente com a voz aguda de
uma mulher, entrando-lhe portadas adentro, a par com uma réstia de sol. De nada
lhe valeu tentar abafar o ruído. Maldita aldeia! Os altifalantes que, se bem se
recordava, eram colocados estrategicamente na torre da igreja, faziam chegar as
escolhas duvidosas da empresa contratada pelo mordomo da festa a quilómetros de
distância.
Era isso! A festa! Sorriu, inconscientemente. O que agora a
irritava, outrora fizera as delícias de uma menina. Escapulia-se bem cedo para
cirandar pelo adro da igreja a observar todos os preparativos. Rira-se com os
nós nos fios da aparelhagem de som, com o ar esgrouviado do padre, de pijama às
riscas e chinelos, a dar instruções para o arranjo das flores que as irmãs
Loureiro tinham deixado meio descompostas, e do trambolhão que o sacristão
dava sempre que subia ao manco e tosco banco de madeira, na tentativa
frustrada de limpar a fuligem das lamparinas do altar-mor. Sonhara com
príncipes e princesas quando os pares de namorados dançavam, elas de vestidos
com folhos, decotes mais atrevidos, o ouro típico das Minhotas nas orelhas e a
rodear-lhes o pescoço, descendo-lhes pelo colo, eles de fato e gravata, com o
cabelo cuidadosamente penteado, húmido de tanta brilhantina.
Mas o melhor
de tudo, o melhor mesmo, era o vestido novo que a mãe lhe mandava fazer na
Zulmirinha, a barriga a doer de tanto algodão doce, roscas e massapães e... o beijo que o José lhe roubara no escuro da barraca dos brinquedos de madeira!
Levantou-se,
arranjou-se a preceito, e percorreu o caminho de terra batida até que a música
lhe ferisse os ouvidos.