terça-feira, agosto 11, 2015

Azul cobalto

(Joan Miro - Blue III)

Ajoelhara-se no chão, frente ao roupeiro, para melhor abrir a gaveta de baixo. Começou por puxá-la sem grande força mas concluíra que, ou estava empenada por não ser aberta há muito tempo, ou havia alguma coisa a bloqueá-la. Com ambas as mãos sacudiu o puxador em movimentos enérgicos até que sentiu uma leve cedência em simultâneo com o esvoaçar de um papel dobrado em direcção aos seus joelhos. 
Era isso, então! Um papel!
Pegou-lhe. Desdobrado, revelou ser uma carta, escrita a caneta de tinta azul cobalto, em letra elegante e notoriamente feminina. 


Meu amor

Não vou escrever-te. O que escreveria, afinal, quando já te disse tudo? Dizer-te do meu coração em sobressalto ao (pre)sentir o teu perfume, da doçura na minha boca depois dos teus beijos, das mãos enlouquecidas nas horas roxas do sexo.
As palavras, meu amor, quero-as ditas.

Digo-tas amanhã, às seis da tarde, no banco sobranceiro ao rio.

Nenhuma assinatura. Uma carta numa gaveta, apenas.
Reparou que a madeira se inclinava ligeiramente para a direita. Voltou a dobrar o papel pelos vincos e viu que se encaixava perfeitamente na falha. Ao deslocar-se, tinha deixado a madeira com o empeno original. Fora um instrumento, afinal, aquela carta. Servira para endireitar a gaveta, nem mais, nem menos.
Retirou as roupas de Inverno da mãe. Estavam em bom estado para doar. Fechou a gaveta, agora com a carta dobrada no sítio preciso para que deslizasse na perfeição, levantou-se, pegou nas roupas e saiu. 




12 comentários:

  1. Querida Maria Eu,
    Terá falhado ao não alcançar a importância de o escrever? Há palavras que também se querem soletradas...
    Uma carta de amor que não passa de um instrumento será tão pouco azul.
    Um beijo,
    Outro Ente.

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  2. Ah, mas julgo que não fora um instrumento para quem a escrevera. Talvez tenha ficado por enviar sem que saibamos a razão. Quem sabe o destinatário veio ao encontro da emissora antes que a mandasse e ela a escondesse ali para a rasgar mais tarde. Depois, ter-se-á esquecido. :)

    Beijinhos, caro Ente. :)

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  3. Tão bom. É impossível não gostar desta forma de escrever a vida.
    Escritas ou ditas, certas palavras não deviam ficar por dizer. Vou acreditar que a carta ficou para trás, porque a pessoa que a escreveu, fez o que combinou consigo própria e transformou as palavras que na altura teve vontade de escrever, em palavras faladas, no dia seguinte, "...às seis da tarde, no banco sobranceiro ao rio.", local onde costumava encontrar-se com o destinatário da carta não entregue. (Pode ser assim não pode? apetecem-me finais felizes :))

    Boa tarde, Maria. :)

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    1. Eu também acho, Cláudia! Claro que foi dizer as palavras apetecidas e beijar, abraçar e sei lá mais o quê... :)

      Boa tarde, Cláudia, e um beijinho. :)

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  4. Talvez tenha sido o destinatário da carta a guardá-la como se um pequeno grande tesouro se trata-se... Quem sabe :)

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  5. Desconheço qual o proposito que leva a Maria a escrever estes textos.
    São belos nacos de prosa que sugerem diferentes resoluções. Desconfio tratar-se de excertos de contos, novelas ou romances.

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    1. Incursões por memórias, histórias, leituras. Vontade de escrever, mesmo, Agostinho. :)
      Muito obrigada!

      Beijinhos. :)

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  6. Por vezes, as palavras tomam vontade própria e mesmo sem terem sido totalmente escritas, elas estão lá. E estiveram com toda a certeza no dia seguinte, às 6h da tarde.

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    1. São umas danadas, as palavras! :)

      Beijinho, Maria Semedo, e obrigada pela visita. :)

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  7. Nem sempre as frases, pensamentos, musicas, revelam o que verdadeiramente sentimos por alguém...

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