domingo, agosto 09, 2015

Da importância das mãos

(Chaekkyung em DeviantArt)

Ardente, o dia. Chegam fiapos cor de carvão trazidos pelo vento errático que cobrem o chão do terraço, o jardim, a água do poço. Há um corrupio de helicópteros, o ruído dos rotores das hélices a sobrepor-se ao habitual sossego do campo. É certo que os cães ladram ainda mais e os galos, estranhamente, cantam a espaços, estridulantes. Abafa-se. O céu, coberto de fumo, não deixa antever o sol que apenas se adivinha brilhante pela elevada temperatura. Maria Antónia vê a serra em chamas e entristece-se. Quantas vezes calcorreara os seus caminhos íngremes de mão dada com o pai. 
- Olha, menina, um bufo!
- O que é um bufo, pai?
- É aquele pássaro cinzento, ali, parecido com uma coruja.
- E aquilo ali, é o quê?
- É um lagarto, não lhe vês as escamas do dorso e a cauda? Deve estar a caçar algum insecto, por isso não lhe vemos a cabeça, escondida no meio da urze.
E era um sem fim de perguntas, a mão sempre apertada naquela outra, forte.
- Não há cobras aqui, pois não, pai?
- Ora, menina, se as houver eu dou-lhes com um pau que elas fogem logo! 
E ela acreditava que nunca, enquanto tivesse a sua mão assim segura, haveria perigo ou acidente que a atingissem.
Queimada, agora, a serra. Talvez porque já não havia nenhuns dedos à volta dos seus.


18 comentários:

  1. Num texto belo, entretenho-me a redescobrir as palavras
    Pau
    Tem um sentido preciso.
    Rima com mão...
    Dedos,
    com medos
    Pai,
    com ausências

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    1. Fico sem palavras perante um comentário como o teu, Rogério. Obrigada!

      Beijinhos. :)

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    1. E as sirenes que não param!

      Muito obrigada, caro MA. Beijinhos.

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  3. Fez-me lembrar muito a minha neta... A perguntadora de serviço, com três anos e meio. ;)))

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  4. Querida Maria Eu,
    É desolador. Há cerca de 15 anos houve um incêndio que me queimou uns hectares e chegou perto da casa da herdade. Na altura ainda não tinha coberto a piscina e alguns helicópteros chegaram a ir ali abastecer água. Depois, durante muito tempo, o cenário era mais do que dantesco-literário, era triste-carvão. A primavera não apaga a aflição nem as mãos dos que acorreram a ajudar. Serão outras mãos menina Maria, mas enquanto existirem boas mãos Antónia nada terá a temer.
    Um beijo,
    Outro Ente.

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    1. Há mãos que se queriam decepadas enquanto outras se querem cuidadas com todo o carinho.

      Beijinho, caro Ente, e uma boa tarde. :)

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  5. Para além de nos roubarem os caminhos de boas memórias, roubam a beleza à paisagem, roubam o modo de vida a gentes... e tantas vezes (vezes demais) por mãos e dedos armados apenas de maldade.

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    1. Não entendo essas mãos. Só as outras, as carinhosas.

      Beijos, noname. :)

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  6. Tem razão a Maria Antónia, é a mão que dá segurnça à outra mão.
    Falta à serra a mão que a acarinhe e à lebre e à cobra e à águia e à ...
    Parabéns, Maria, texto excelente, com tempêro e ritmo certos.

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    1. Faltam as mãos cuidadoras e sobram as outras, as que destroem...
      Muito obrigada pelas gentis palavras.

      Beijinhos e uma boa noite. :)

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  7. Olá, Maria.
    Tens um dom de fazer de pequenos textos uma poesia ímpar que ainda nos dá moral. Gosto. Demais.
    Realmente, faltam dedos bons e capazes de segurar com firmeza e carinho bastantes para não deixar que tanta vida arda, assim, como se nada fosse. O crime tornou-se banal num mundo de pernas para o ar que, quando põe os pés no chão, até estranhamos.

    bjn amg

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    1. Muito, muito obrigada, Carmem!
      Fazem muita falta algumas mãos...

      Beijos. :)

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  8. também acredito que existem mãos solitárias que, talvez, apenas precisem de uma mãozinha.
    creio que as mãos podem ser as obreiras dos sonhos, os seus anjos da guarda e o seu alimento.
    os teus posts são magníficos.

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    1. As mãos dizem de nós mais do que possa parecer.
      Obrigada, muito, Henrique!

      Boa noite. :)

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  9. Que lindo Maria :) Eu ainda acredito que não há perigo quando sinto assim a minha mão segura. Boa noite :)

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