Ajoelhara-se no chão, frente ao roupeiro, para melhor abrir a gaveta de baixo. Começou por puxá-la sem grande força mas concluíra que, ou estava empenada por não ser aberta há muito tempo, ou havia alguma coisa a bloqueá-la. Com ambas as mãos sacudiu o puxador em movimentos enérgicos até que sentiu uma leve cedência em simultâneo com o esvoaçar de um papel dobrado em direcção aos seus joelhos.
Era isso, então! Um papel!
Pegou-lhe. Desdobrado, revelou ser uma carta, escrita a caneta de tinta azul cobalto, em letra elegante e notoriamente feminina.
Meu amor
Não vou
escrever-te. O que escreveria, afinal, quando já te disse tudo? Dizer-te do meu
coração em sobressalto ao (pre)sentir o teu perfume, da doçura na minha boca
depois dos teus beijos, das mãos enlouquecidas nas horas roxas do sexo.
As palavras, meu
amor, quero-as ditas.
Digo-tas amanhã,
às seis da tarde, no banco sobranceiro ao rio.
Nenhuma assinatura. Uma carta numa gaveta, apenas.
Reparou que a madeira se inclinava ligeiramente para a direita. Voltou a dobrar o papel pelos vincos e viu que se encaixava perfeitamente na falha. Ao deslocar-se, tinha deixado a madeira com o empeno original. Fora um instrumento, afinal, aquela carta. Servira para endireitar a gaveta, nem mais, nem menos.
Retirou as roupas de Inverno da mãe. Estavam em bom estado para doar. Fechou a gaveta, agora com a carta dobrada no sítio preciso para que deslizasse na perfeição, levantou-se, pegou nas roupas e saiu.
Querida Maria Eu,
ResponderEliminarTerá falhado ao não alcançar a importância de o escrever? Há palavras que também se querem soletradas...
Uma carta de amor que não passa de um instrumento será tão pouco azul.
Um beijo,
Outro Ente.
Ah, mas julgo que não fora um instrumento para quem a escrevera. Talvez tenha ficado por enviar sem que saibamos a razão. Quem sabe o destinatário veio ao encontro da emissora antes que a mandasse e ela a escondesse ali para a rasgar mais tarde. Depois, ter-se-á esquecido. :)
ResponderEliminarBeijinhos, caro Ente. :)
Tão bom. É impossível não gostar desta forma de escrever a vida.
ResponderEliminarEscritas ou ditas, certas palavras não deviam ficar por dizer. Vou acreditar que a carta ficou para trás, porque a pessoa que a escreveu, fez o que combinou consigo própria e transformou as palavras que na altura teve vontade de escrever, em palavras faladas, no dia seguinte, "...às seis da tarde, no banco sobranceiro ao rio.", local onde costumava encontrar-se com o destinatário da carta não entregue. (Pode ser assim não pode? apetecem-me finais felizes :))
Boa tarde, Maria. :)
Eu também acho, Cláudia! Claro que foi dizer as palavras apetecidas e beijar, abraçar e sei lá mais o quê... :)
EliminarBoa tarde, Cláudia, e um beijinho. :)
Talvez tenha sido o destinatário da carta a guardá-la como se um pequeno grande tesouro se trata-se... Quem sabe :)
ResponderEliminarOu então foi mesmo isso, Gm! :D
EliminarBeijos. :)
Desconheço qual o proposito que leva a Maria a escrever estes textos.
ResponderEliminarSão belos nacos de prosa que sugerem diferentes resoluções. Desconfio tratar-se de excertos de contos, novelas ou romances.
Incursões por memórias, histórias, leituras. Vontade de escrever, mesmo, Agostinho. :)
EliminarMuito obrigada!
Beijinhos. :)
Por vezes, as palavras tomam vontade própria e mesmo sem terem sido totalmente escritas, elas estão lá. E estiveram com toda a certeza no dia seguinte, às 6h da tarde.
ResponderEliminarSão umas danadas, as palavras! :)
EliminarBeijinho, Maria Semedo, e obrigada pela visita. :)
Nem sempre as frases, pensamentos, musicas, revelam o que verdadeiramente sentimos por alguém...
ResponderEliminarNem sempre, Legionário. (embora ajudem)
EliminarBeijinhos. :)