quarta-feira, agosto 12, 2015

Pássaros

(Celeste Henriquez)


- Pai, venha para dentro! Olhe como tem os braços arrepiados de frio! Vá, venha!
- Senta-te tu aqui um bocadinho. Estou a contar os pássaros.
- A contar os pássaros? Ora, o disparate! Eles são tantos que nunca lhes vai ter a conta.
- Anda para aqui e vais ver como faço. Se te sentares do lado da grade, tiras-me o vento.

Puxou uma cadeira e sentou-se. O rosto enrugado do pai abriu-se num sorriso.

- A minha menina! Estás cá hoje?
- Estou, pois, desde há uns dias. Não se lembra? Então, ontem, até fomos dar um passeio pela quinta. Fomos ver as uvas a aprontarem-se para a vindima.
- Estava aqui a pensar nos pássaros. Nos pássaros e nos filhos deles. São amigos dos filhos. A minha mãe não gostava de mim.
- Como assim, não gostava de si? Gostava, claro!

A cara dele ficou sombria e os olhos encheram-se-lhe de lágrimas.

- Eu sei que não gostava. Batia-me. Uma vez, de tão cansado de apanhar que eu estava, fui procurar um poço, daqueles muito fundos, para me atirar.
- Não diga isso da avó! Ela tinha muitos filhos, estava cansada, era só isso.
- Os outros podiam fazer tudo, eu não. Apanhava logo. (...) Já viste aquela rolinha? Olha que linda, ali a arrulhar. Vieste agora, foi? Ficas para o jantar?

Ficaram ali, a ver os pássaros. Afinal, não era preciso saber contar e ela tirava-lhe o vento que atravessava as grades.


16 comentários:

  1. O Amor, tem uma capacidade de adaptação às circunstâncias incrível. É flexível. Mas para que assim seja, necessita de uma construção sólida, cimentada ao longo dos anos. Refiro-me ao Amor que mesmo contrariando acordos ortográficos, merece um A dos grandes, não de artificialidade, nem de dados que se presumem adquiridos por parentesco. O de A grande, pode até revoltar-se, que também não é nenhum santo, mas acaba por ficar "a ver os pássaros" e até a contá-los e faz de conta que a pergunta "vieste agora, foi?" só foi feita uma vez.

    Beijinhos, Maria. :)

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    1. Nem sempre é fácil, este amor, como qualquer amor.

      Beijos, Cláudia. :)

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  2. Um aconchego feito, aparentemente, de pequenas coisas.
    E há pais que não gostam dos filhos. É triste, mas há.
    [E tu não podes passar sem os pássaros!]
    Beijo, Maria.

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    1. Custa pensar que haja...
      (Não, não posso.)

      Beijos, Isabel. :)

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  3. sabe, é tão bom poder olhar para eles, para os nossos pais.
    parabéns pelo texto Maria.

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  4. Nós somos a mãe que tivemos e esse pai parece ser um homem bom!

    - É belo sentar-mo-nos
    junto de um contador de pássaros -

    (bonito, isto!)

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    1. Principalmente quando amamos esse contador.

      (obrigada, muito)

      Beijos, Rogério. :)

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  5. A contar pássaros se conferem laços que prendem
    num jogo de afectos e cumplicidades. E até pode haver a felicidade de uma rola.
    Boa noite

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    1. Pode haver, até, silêncios felizes.

      Beijos, Agostinho. :)

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  6. a vida e o amor são feitos de pequenos gestos e história ou texto foi bonito de se ler.

    "Só" porque a minha filha gosta de estrelas cadentes, ontem "preparei-lhe" uma surpresa, ver as estrelas cadentes, era ver uma criança muito feliz...
    Bom dia.

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    1. :))))

      Tão bom, surpreendermos os nossos filhos, não é?

      Beijinhos, Urso Misha. :)

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  7. Maria, como seria "estranho" se as crianças conhecessem como eram os seus pais antes de terem nascido, quando ainda não eram pais, mas simplesmente eles próprios.

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    1. Estranho e nada verosímil! :)

      Beijinhos, Legionário. :)

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  8. Que bonito!! seus contos são lindos Maria
    ficaria aqui a manhã inteira, lendo a extasiar...

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