sexta-feira, janeiro 15, 2016

Habitar



(Francesca Woodman, From Space, 1976, © Betty and George Woodman)

Havia tantos anos que habitava aquela casa que nem conseguia seguir os traços da memória até ao dia em que, pela primeira vez, pisara o soalho de carvalho. Curiosamente, recordava os sons e os cheiros de cada aposento, nesse passado longínquo. Sabia do ranger da tábua que dava passagem para a sala de jantar , bem junto à porta, do odor a cera acabada de espalhar por todo o lado, à excepção da cozinha, onde a mãe chegara cedo para cozer um bolo de canela e assar vitela com batatas novas. Ah, como era bom comer naquela cozinha grande, a mesa de madeira com bancos corridos a abrigar a fome da palavrosa família! Eram essas palavras que ouvia, agora, à mistura com as gargalhadas das mulheres perante as pantominas das crianças. Até conseguia repetir a cantilena do Pedro e da Mariana: 
Bichinha gata 
Que comeste tu? 
Sopinhas de leite 
Onde as guardaste? 
Debaixo da arca 
Com que as tapaste? 
Com o rabo do gato 
Sape, sape, sape!

Um arrepio percorreu-lhe o corpo agasalhado. Afinal, andara pela casa com o vestido vermelho sem mangas que a mãe lhe comprara aos quinze anos! Aconchegou melhor a manta polar nas pernas inchadas, acomodou-se na almofada que lhe amparava as costas ao sofá, fechou os olhos e adormeceu.
A casa habitava-a, agora, a ela.


45 comentários:

  1. ~~~
    Um 'post' muito interessante, ME.

    Muito
    apreciei da criatividade do seu texto.

    A lengalenga da «bichinha gata» conheço-a
    desde muito pequenina...
    Passavam-me os dedos pela cara e na altura do
    'sape, sape' saía uma sessão de cócegas hilariantes.

    ~~ Memórias de uma vida...

    ~~~~~~ Beijinhos.~~~~~~
    ~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~

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    1. Muito obrigada, Majo!
      Também terminava com cócegas, a minha lengalenga.

      Beijinhos :)

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  2. Está tão belo Tutu!

    Fui transportada para a casa dos meus avós paternos. Teve sabor.

    Pela segunda vez falas em bolo de canela, ainda vou ter que fazer um, só pela fome que fico. Adoro canela :)

    Beijoquinha Tutu

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    1. Temos recordações semelhantes e o gosto igual pela canela!
      Obrigada, Snowy!

      Beijocas :)

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  3. estava aqui num impasse... trouxe-me recordações, muitas.
    gosto, da fotografia, do texto, da música. sinceramente, gosto.
    beijinho
    :)

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  4. há memórias que me arrancas do mais fundo de mim, Maria.
    maravilhoso...

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  5. Que lindo, Maria.
    A nossa pele encerra muitas "casas". Eu diria que são os lugares que nos acolhem e que nós escolhemos. A nossa casa mora onde nos sentimos bem.
    Fica um beijo.

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    1. Obrigada, Sandra, muito!
      Sim, as casas que sentimos como nossas são indissociáveis de nós.

      Beijos. :)

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  6. Saudade é o que define o que me fizeste sentir e recordar quando a casa pulsava vida.
    Lindo!
    Beijinho Maria:))

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    1. Tão parecidas, as casas que vivem dentro de nós, pelos afectos que tinham dentro.

      Beijos, Helena, e obrigada! :)

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  7. Perfeita simbiose, Maria, de tudo. Inclusive da foto que acompanha o texto.
    Bom fim de semana.
    Beijinhos

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  8. AS casas deixam-nos marcas, cheiros memórias...
    Gostei muito bjs

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  9. Houve casas, algumas
    pelas quase passei
    falar sobre elas, não sei

    As habitadas,
    podia regressar a elas
    todas
    na mais profunda escuridão
    e de memória, saberia
    a porta de entrada, o corrimão
    os quartos, corredores,
    ombreiras, serventias, janelas
    e o que se via por elas

    Nós somos as casas que habitámos

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    1. Fecham-se os olhos e desenhamos as nossas casas em traço firme.

      Beijinhos, Rogério. :)

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  10. Querida Maria Eu,
    Há séculos que não me lembrava das sopas de leite que cheguei a comer ao pequeno almoço, quando passava férias com os avós. Acredita que nunca me lembrei de as dar a provar aos meus filhos? Estou tentado a iniciá-los este fim de semana. Cá em casa...
    Um beijo de noite feliz,
    Outro Ente.

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    1. Fico feliz por despertar em si as memórias doces da infância.

      Beijos, caro Ente, e uma noite feliz para si, também. :)

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  11. Gosto imenso dos trabalhos desta fotógrafa.
    E as tuas palavras são deliciosas!
    Beijos, Maria.

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    1. Calhou ver a foto e vieram as memórias.
      Muito obrigada, Isabel!

      Beijos :)

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  12. É um texto muito bonito, Maria. Caloroso. :)

    Deixo-te um beijo. :)

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    1. Como as minhas memórias.

      Obrigada, Castiel, e um beijo. :)

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  13. Descreveste lindamente essa sensação que todos trazemos connosco - que os lugares podem ser afetos que nos habitam.

    Um beijinho e um sábado feliz :)

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    1. Os lugares estão tão vivos que perduram para além de nós.
      Obrigada, Miss Smile!

      Beijos, na esperança de te ver voltar. :)

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  14. a minha avó dizia qualquer coisa como chape chape e nã sape sape, mas agora faz mais sentido :)
    bonito o teu texto Tutu. beijo.

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    1. AS avós têm o direito de reinventar as lenga lengas!
      Obrigada, Stormyzinho!

      Beijocas :)

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  15. perpetuamento.
    muito bonito, mas a minha avó nunca me apresentou as Sopinhas de leite com pena minha, pois só agora conheci tal lenga lenga. e tal manjar não me passou no palato
    beijos de (bom) fim de semana

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    1. Nunca é tarde para provar sopinhas de leite, nem para brincar com esta lenga lenga com a tua filha! Ela vai gostar que a termines a fazer sape, sape, sape, numa sessão de cócegas!

      Beijinhos, Urso Misha :)

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    2. Desafio aceite ;)
      Grato pela ideia, talvez teste este fim-de-semana...

      Beijos Maria

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  16. Ohhh tâo bonito... Quase nostálgico!

    beijo amigo

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    1. Vem a ternura na memória...
      Obrigada, Daniel.

      Beijinhos :)

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  17. Todas as casas guardam memórias e são uma espécie de testemunhas de todas as vidas.

    Bjnhs

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  18. A casa é a morada do corpo, e o corpo, é a morada da alma; assim, a casa é a morada da alma...

    Bom Domingo, Maria!:)

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  19. Sons, cheiros, texturas, memórias. Embrulho-me suavemente neste texto. :)

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  20. Que bonito Maria. Faz-nos recuar no tempo e nas memórias. Bom final de domindo :)

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  21. Mesmo, Maria. Uma casa pode habitar-nos. Uma casa que, para além de paredes, de móveis, guarde memórias vivas. Há casas que, para além de nos habitarem, nos abraçam, é como se nas suas paredes tivessem nascido braços. Não, não é isto, as casas não têm braços, os braços são nossos, o que acontece é que, de tão habitadas por nós, de tanto nos habitarem, deixam de ser apenas casas passando a ser, também, uma extensão do nosso corpo.

    Beijinhos, Maria, uma excelente semana.

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    1. De todas as casas que habitei, nem todas me habitaram. Algumas houve que nunca foram capazes de sentir o ritmo do meu coração, talvez porque não tinham a gente certa dentro.

      Beijos, Cláudia, e uma noite feliz. :)

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  22. Impressões digitais que ficam para sempre na/à mão, no frio do puxador da porta, no ar quente que irradia a lareira, na travessa da cadeira que se arrasta. E quando se respira, o cheiro da roupa lavada, da canela e do guizado. O som que se ouve ainda das histórias e das janelas perras a abrir antes da Primavera.
    Muito bem, Maria

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